A superstição política mais difundida da modernidade foi a democracia representativa. A ideia é simples, ainda que a prática dificilmente o seja e, aqui no Brasil, ela jamais tenha “colado”. Neste sistema, os eleitores atomizados (ou seja, os indivíduos, não as famílias ou corporações) escolhem um partido que tenha a ver com suas prioridades, tendo contudo todos os partidos o mesmo amor de base pela democracia representativa. Este pressuposto faz com que os partidos extremistas não tenham lugar de ser ou, no máximo, possam ser aceitos como formando uma minoria ínfima, de um só ponto percentual e olhe lá, tendo algumas de suas propostas mais “mansinhas” adotadas pelos partidos mais ao centro.
Os políticos propriamente ditos, ou seja, aquela massa de gente de verdade, com interesses próprios e/ou de aluguel, que compõe os partidos políticos, em tese, seriam intercambiáveis. É daí que vem o delirante “voto de legenda” na legislação brasileira, por exemplo: se alguém vota num político do Partido X, botar mais gente do mesmo partido no poder seria uma boa. Mas, claro, não é em absoluto assim que funciona. Fora os partidos de extrema-esquerda, o que se tem no Brasil são legendas de aluguel, usadas por gente famosinha por algum motivo (inclusive a própria política: o que não falta é filho e neto sucedendo figurão na política brasileira). Ninguém conhece nome de partido que não seja de extrema-esquerda, e todos votam na pessoa de algum político, não no partido a que ele por acaso pertença.
Nos países mais centrais da modernidade – a Europa Ocidental e os EUA, também chamados “Primeiro Mundo”, ou “Ocidente” – a modernidade introjetou-se ao ponto de mais ou menos haver ligação pessoal ou familiar do eleitor com um partido, além de partidos “monotemáticos” como os Verdes europeus (o PV brasileiro nunca se levou suficientemente a sério para poder se equiparar aos europeus neste quesito). A ascensão de Trump, todavia, um sujeito que sempre se identificara mais com o Partido Democrata, mas foi eleito pelo Republicano, supostamente seu inimigo, deixa bem claras as rachaduras do edifício político bipartidário americano. Na França e na Alemanha, a ascensão de partidos de extrema-direita vem assustando muita gente.
E então veio o coronga. É interessantíssimo – do ponto de vista do futuro historiador, porque para quem está no meio do furacão é uma tremenda roubada, claro – como a chegada da pandemia forçou a mão dos jogadores, adiantando alguns processos e atrasando outros. No fim disto tudo, todavia, já se pode saber que a coisa será bem diferente, tanto na política interna dos países quanto na externa. Bill Gates, que pela fortuna que tem é mais poderoso que muitos governantes, abriu o jogo, colocando-se ao mesmo tempo como provedor de vacinas e antinatalista, o que levou muitos a deduzir que suas vacinas serão esterilizantes. Os EUA nem tentaram fingir para consumo externo serem os “mocinhos” de chapéu branco dos filmes de caubói, roubando levas e mais levas de máscaras e respiradores que passavam por seu território a caminho dos compradores. A União Europeia esfacelou-se na prática, com cada país fechando as portas, com Schengen ou sem Schengen. Diversos projetos de totalitarismo, a exemplo do chinês, apareceram nos países de Primeiro Mundo.
Enquanto isso tudo ocorria, as grandes massas estavam trancadas em casa, olhando para as mesmas quatro paredes. E isto cansa. O resultado, quando aconteceu, foi algo que poderia ter sido predito, mas não foi: manifestações, motins, vandalismo. As razões que supostamente moveram as manifestações na verdade nem importam tanto; ao menos, não importam mais que os famosos vinte centavos das manifestações brasileiras de 2013. A França pulou de manifestações pró-imigração a manifestações contra o racismo americano, com até o mesmo lema em inglês: “Black Lives Matter”. Nos EUA, manifestações viraram motins, com vandalismo em massa, saques, incêndios, etc.
Na verdade – e é isso o mais curioso – manifestações, na modernidade, tinham o objetivo de garantir que os eleitos prestassem atenção em demandas sociais. Nelas, inclusive, muitas vezes começavam carreiras políticas, com seus líderes sendo alçados a posições importantes, como ocorreu aqui mesmo no Brasil nas últimas eleições. Manifestações eram vastas reuniões de pessoas em torno de algum ponto de política prática, pedindo a atenção de seus representantes eleitos. Estas de agora, todavia, são mais uma demonstração de desespero que um pedido de atenção. Cada pessoa que sai pra rua tem uma pauta própria, se tiver pauta. São manifestações negativas, não positivas ou, menos ainda, propositivas. Elas demonstram na verdade o desespero por estar trancado dentro de casa, sem saber quando se poderá sair; desespero por o sistema de governo ter perdido quase toda a pouca legitimidade de que dispunha, ao lidar como lidou com a pandemia; desespero, em suma, por não se perceber mais nem mesmo partícipe da escolha de elenco da atuação política.
Daí “Black Lives Matter” na França, daí a exigência de simplesmente acabar com a polícia (a instituição mais moderna de todas, aliás) em Minneapolis, nos EUA. É simplesmente um grito de desespero, um “chega” dirigido a toda a sociedade, desde o sistema de governo até a economia. A parada brusca imposta pelo coronga – ou antes pelos Estados – fez com que tudo o que estava mais ou menos escondido, submisso, no fundo da garganta, saísse em pós-moderníssimos gritos de “Basta!”, sem que se saiba muito bem o que é se se está pedindo que baste e sem ter nada para pôr no lugar.
Antes, as manifestações, de uma ou de outra maneira, tinham fins políticos mais ou menos claros. Queria-se que os representantes eleitos não esquecessem disso ou daquilo. Já agora cada pessoa tem uma razão própria, ainda que haja discursos mais ou menos partidários; “Black Lives Matter” nos EUA é mais ou menos a linha do Partido Democrata, que é mais ou menos o dono do voto de cabresto das pessoas da nação dita “black”. Para este partido, todavia, seria muito melhor se não houvesse saques, se não atassem fogos às casas e lojas, mesmo porque quem recorre à violência perde logo a razão. Daí políticos afirmarem que os saques e incêndios são de responsabilidade de ativistas vindos de outros lugares; não chegam, via de regra, a culpar o Partido Republicano, mas chegam bem perto.
Mas e na França, que sentido faz repetir o slogan americano? E no Brasil, as manifestações anti-Bolsonaro, por acaso estão pedindo algo ou apenas dando vazão à frustração de quem vê no bolsopresidente um incompetente? O que se tem, na verdade, tanto cá quanto nos diversos outros “lá”, é um sentido de frustração generalizada. O alvo desta frustração é a ordem social moderna, que realmente não funciona mais, se é que algum dia já funcionou. Fenômenos de dissolução desta ordem já existem faz tempo, das muitas centenas de bairros muçulmanos espalhados pela França em que a polícia só entra armada até os dentes com carros blindados à substituição de pautas tradicionais da esquerda nos EUA por delírios de gênero e quetais.
Mas o que virá? Isto é o que não se sabe. Há quem defenda, com uma pequena dose de razão misturada a uma dose um tanto maior de teoria conspiratória, que a pandemia “serve para” a imposição de ditaduras. Num dos extremos, há quem diga que a pandemia foi provocada para que elas sejam instaladas, e no outro que ela será aproveitada para tal. Parece-me evidente que haverá quem tente, mesmo por justamente a Modernidade estar em seus estertores, e é nos estertores de uma ideia que ela passa a ser imposta pela força. É comum que quem não tenha estudado um mínimo que seja de História (ou só a tenha estudado em sua versão delirante ensinada nas escolas tupiniquins) associe a Inquisição Espanhola à Idade Média, quando na verdade ela foi um fenômeno da Era Moderna, coetânea das Guerras de Religião do Norte europeu. Na Idade Média ela não seria necessária, e na Era Moderna ela dificilmente adiantaria, mas é assim que a coisa funciona. Toda a modernidade aponta para o hipercentralismo totalitário, já tentado pelos nazistas e pelos comunistas. Ali foi o auge daquilo cujos estertores vemos hoje. E por ter sido o auge, é ele que há de ser imitado nos últimos gestos da ordem agonizante, que tentará fazer com que a Modernidade volte, um pouco como a Inquisição Espanhola queria trazer o Medievo de volta.
Aqui no Brasil estamos, graças a Deus, livres desse problema, devido à incompetência de nosso Estado e à ausência de introjeção da modernidade por nossos cidadãos. Mas certamente os Estados do dito Ocidente, ou Primeiro Mundo, tentarão fazer os ponteiros do relógio girar para rás, em busca de uma “época de ouro” moderna que jamais existiu. E isso gerará sistemas totalitários, pois não há outro jeito. Com a tecnologia hoje existente, aliás, será bem fácil montá-los de maneira relativamente eficiente. Estão aí os chineses, que não me deixam mentir (e que, junto com o Google, ouvem tudo o que é dito ao alcance do microfone do meu telefone; devem morrer de tédio!)
Por outro lado, a atomização do trabalho em “home office”, que deve continuar, assim como a “uberização” das relações trabalhistas no Ocidente colocam alguns obstáculos ao totalitarismo: é bem mais fácil para o Estado lidar com uma firma enorme que com milhares de pequenos prestadores de serviço. Por outro, a vigilância é facilitada pela necessidade de comunicações eletrônicas; o problema na verdade é que há tantos dados, que os examinar regularmente se torna impossível, mesmo a Estados gigantescos.
Aqui no Brasil não sabemos ainda o que virá a acontecer, mesmo por termos, além das mesmas questões da Europa e dos EUA, as nossas questões culturais e políticas e a bendita incompetência de nosso Estado. Talvez, indo na contramão, possamos nos adiantar aos demais, um pouco como já nos adiantamos em 2013 ao recusar aos movimentos de extrema-esquerda o protagonismo das manifestações, e aproveitar o coronga para prestar cada vez menos atenção no Estado. Para recuperar o poder que foi roubado às instâncias menores da sociedade: os pais educarem seus próprios filhos, por exemplo, em vez de terceirizar esta educação, já é um passo enorme, que pode levar até mesmo à formação de uma elite. Do mesmo modo, as modalidades de trabalho “uberizado” podem conduzir à formação de cooperativas, que substituam com vantagem o absurdo sistema trabalhista brasileiro, baseado num modelo fascista corporativista que não tem nenhuma razão de ser e vai contra nossa cultura e tradição.
Ninguém, assim, pode saber o que nos espera, ou o que espera o pessoal do Primeiro Mundo. Só o que sabemos é que o grito de “basta” já foi dado, e que não há nas sombras dos bastidores nenhum ator novo esperando sua deixa para entrar. Esta peça já acabou, ainda que a cortina não tenha baixado ainda. Destarte, o que pode entrar por lá é a dissolução social ainda maior (levantes muçulmanos na França, movimentos separatistas nos EUA, etc.) ou a ditadura. Ou mesmo os dois, porque a dissolução social faz com que a ditadura pareça uma solução.
Como no Brasil a modernidade nunca conseguiu penetrar mais que uma fina camada discursiva, é a nossa chance de criar mecanismos vários que, unidos, resultem em uma ordem social não moderna. Seguindo a nossa tradição, aliás, isso pode e deve ser feito sem derramamento de sangue. Só derramamos sangue nas duas tentativas maiores de impôr uma ordem moderna: Canudos, em que a modernidade venceu a batalha, sacrificando milhares de homens, mulheres e crianças inocentes, mas perdeu a guerra ao não instaurar uma ordem moderna no sertão nordestino, como a França fez na Vendeia; e a Revolução Constitucionalista, que felizmente São Paulo perdeu. Fora isso, sempre houve uma turma do deixa-disso em ação, fazendo que passássemos pelo século do genocídio quase ilesos. Não seria agora que começaríamos a arranjar razões para cortar o pescoço dos irmãos.
Felizmente.
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