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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Medicina cartesiana

(Foto: Bigstock)

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“Minha mãe sempre dizia que havia pedido um doador de esperma parecido com o Tom Selleck, mas eu me parecia era com o Dr. Wortman”, disse o americano David Berry. O tal doutor era o ginecologista contratado para a inseminação artificial e, como se acabou descobrindo por exames de DNA, o “doador”. Usar o próprio sêmen enquanto afirmava obtê-lo de doadores anônimos, contudo, está longe de ser um caso único entre profissionais que realizam tais procedimentos. Inúmeros casos já pipocaram mundo afora, Brasil inclusive, e em muitos deles há ainda um componente de abuso sexual das pacientes desacordadas.

Isso sempre foi, contudo, algo perfeitamente previsível. Afinal, o que se faz na inseminação artificial é apenas o outro lado da mesmíssima moeda falsa da contracepção: separar o que é naturalmente unido. Tanto o sexo estéril quanto a fertilidade assexuada tentam tratar como se fossem coisas diversas o que na natureza humana é uma coisa só. Daí os “garanhões da proveta”, daí os corações partidos.

A medicina moderna adota irrefletidamente uma posição filosófica insustentável, baseada na visão cartesiana do ser humano como uma máquina habitada por um fantasminha. A máquina seria o corpo, e seu “habitante” a psique. Sendo o corpo uma máquina, não há limites para sua manipulação. Afinal, que mal há em consertar um carro, aumentar a potência dum motor, ou mesmo usar peças duma máquina em outra totalmente diferente? Quando se aceita a premissa cartesiana, com efeito, o que se aplica a um carro deve poder aplicar-se ao corpo humano. Só há um probleminha: Descartes estava estrondosamente errado, e nem o corpo humano é uma máquina, nem pode como tal ser tratado. Vou ainda mais longe: só existe “corpo humano” sozinho quando, justamente, a máquina já parou de funcionar. Só é “corpo humano” independente duma psique o cadáver.

Ao adotar tal antropologia filosófica, a medicina teve, por um lado, a possibilidade de estudar bioquimicamente o funcionamento do corpo são, bem como do corpo doente, começando a entender processos cuja complexidade sempre acaba por se revelar infinita. Por outro lado, ela tirou de campo o que deveria ser óbvio: tais processos dependem de algo extracorpóreo. A “alma” cartesiana – que trato aqui de “psique” para facilitar a vida de meu solitário leitor – é na verdade uma coisa só com o corpo, não um mero fantasminha a habitar o sótão da máquina. Separá-los significa matar o corpo, porque não é apenas a química que o mantém funcionando. Quando uma pessoa morre, e passamos a ter apenas seu corpo diante de nós, ocorre uma revolução interna pior que a francesa ou a cambojana: os sucos gástricos devoram os órgãos que os continham, as infinitas trocas celulares se desfazem, e a putrefação segue seu curso. O corpo perdeu num instante o que lhe dava coerência, aquilo que fazia com que trabalhassem juntos todos aqueles elementos, e de maneira imediatíssima, sem que haja sequer tempo para a transmissão dalguma “ordem” central, todos aqueles mecanismos param de funcionar.

Do caso mais grave podemos passar a outros em que igualmente aparece o erro da antropologia cartesiana adotada pela medicina. Estando eu internado, uma vez, uma enfermeirinha chegou rindo do quarto ao lado, de onde viera diretamente ao meu. Lá estava um menininho muito inteligente e falador, que se queixara a ela: “num hospital desse tamanho deve ter sempre algumas crianças internadas; por quê não há um canal de desenhos animados na TV?”. O precoce defensor dos pacientes-mirins tinha toda a razão. A resposta verdadeira, todavia, poria a nu o erro da filosofia por trás da medicina: não havia canal de desenhos porque ali se tratam os corpos, e a psique que se lasque. É a mesma razão pela qual as janelas do meu quarto não se abriam, todas as paredes eram nuas e feias, não havia uma samambaiazinha para remédio, muitos médicos preferiam apenas examinar a papeleta, sem sequer olhar para o paciente pacientemente deitado… Na inevitável hora em que um paciente surta por não aguentar mais viver em um ambiente francamente desumano – mais assemelhado a uma oficina de luxo que a uma habitação humana – só o que passa pela cabeça do médico é ou bem chamar o psicólogo (algo entre a bruxaria e a picaretagem, na visão de muitos médicos renomados) ou bem receitar-lhe um calmante. O fantasminha não pode atrapalhar o que é importante, que é examinar e consertar a máquina!

Mesmo já havendo fartíssima comprovação científica, publicada em revistas conceituadas e tudo o mais, de que o bem-estar do paciente acelera sua recuperação, enquanto o desconforto ou depressão a dificultam, persiste o erro por estar ele na base. Seria necessário reconstruir todo o edifício da medicina moderna para livrar-se dele, examinando novamente cada mecanismo descoberto em busca de suas ligações psicossomáticas e aceitando a realidade da psique e da consciência, sem tentar fazer delas meros epifenômenos irrelevantes da bioquímica.

O mingau acaba sendo comido pelas beiradas; a fonoaudiologia, por lidar com fenômenos com raízes tanto na psique quanto no corpo físico, está anos-luz à frente das especialidades médicas em tal afã. Provavelmente, diria eu, ainda mais próxima dalgum começo de percepção integrada do ser humano que a própria psiquiatria. O fantástico sociólogo radical do século passado Ivan Illich escreveu um libelo contra a medicina moderna em que a acusa de “desapropriar a saúde”. Em grande medida ele tem razão, e um projeto meu é reescrever seu livro de maneira a torná-lo mais atemporal. O médico considera-se “dono da máquina” que seria o corpo, exatamente como o mecânico de ferraris ou o consertador autorizado de iphones são “donos” das entranhas daquilo com que lidam. Só quem tem o direito de levantar o capô da máquina é ele, e por ser seu tal direito ele pode fazê-lo quando bem entender. Daí o caso contado pelo Illich de um sujeito que, sentado a seu lado num avião, pôs-se a apalpar um tumor que ele tinha no rosto sem ao menos um “bom-dia”: era um médico, especialista em tumores. Eu mesmo já dei um tapa na mão dum subordinado meu, estudante de medicina, que resolveu do nada bolinar o doído joelho que me dificultava os movimentos.

A medicina moderna adota irrefletidamente uma posição filosófica insustentável, baseada na visão cartesiana do ser humano como uma máquina habitada por um fantasminha

Um dos efeitos de tal desapropriação é a desumanização absoluta dos dois momentos mais importantes da vida, o nascimento e a morte. Enquanto os antigos morriam na cama em que nasceram, hoje o nascimento é tão medicalizado que se torna muitas vezes difícil evitar que seja efetivamente cirúrgico, com cesarianas desnecessárias sendo mais a regra que a exceção. Mais ainda a morte; a pessoa que já se sabe estar nas últimas é hoje ordinariamente levada para um leito hospitalar impessoal onde é tratada como uma posta de carne, muitas vezes sendo-lhe negada até mesmo assistência religiosa, para que morra na mais cruel solidão. A situação é muitas vezes piorada ainda mais por tratamentos e intervenções que visam apenas esticar a agonia do moribundo, sem perceber que as dores e a humilhação que lhe são infligidas não apenas impedem que morra em paz, mas transformam seus derradeiros dias num inferno na terra.

Outro efeito pouco mencionado da desapropriação da saúde é que ao torná-la exclusividade do profissional de saúde a pessoa de cuja saúde se trata dificilmente toma as medidas higiênicas e alimentares que deveria tomar; afinal, mantê-la saudável é o ofício do médico, não dele. Ao visitar o médico, por sua vez, ela exige que lhe sejam receitadas medicações eficazes, ao mesmo tempo em que se nega a seguir as recomendações alimentares e outras que lhe sejam feitas.

É por isso que os hospitais são mais assemelhados a oficinas de carros de luxo que a habitações humanas: seres humanos não são tratados ali. Tratam-se ali apenas de máquinas, necessária e efetivamente colocadas à disposição do profissional em nuas enfermarias, garagens de corpos e penitenciárias de psiques. Acabo de saber dum molequinho de quatro anos que acaba de ter alta dum hospital, onde ficou tão impressionado com a nudez absoluta das paredes que, nos dias que lá passou, dedicou-se a garranchar desenhos coloridos para desenfeiar o ambiente. O médico, preocupadíssimo com as máquinas de que tratava, tentou ainda por cima proibir que ele brincasse com outro molequinho, quase da mesma idade, com que dividia o quarto. Ora, quem quer que já tenha convivido com molequinhos, esse elo perdido entre o sagui e a maritaca, sabe que são animaizinhos gregários. O tamanho da deformação necessária para sequer cogitar tal proibição é estarrecedor.

Não que tão pertinaz negação do que salta aos olhos – a natureza humana – seja apanágio dos médicos. A arquitetura moderna, sempre decidida a tornar o mundo um lugar mais feio e desconfortável com seus cubos pretos e construções angulosas, é outro exemplo do mesmo problema. Le Corbusier falava de “máquinas de morar”, aparentemente sem se dar conta de que eram máquinas onde apenas outras máquinas estariam felizes. Psicologicamente falando, suas construções eram fábricas de neuroses, máquinas de adoentar psiques. O mesmo acontece por toda parte em escala monumental, onde quer que a modernidade tenha conseguido se impor: fábricas, escolas, quartéis e demais espaços institucionais têm-se dedicado, ao longo dos últimos 500 anos, a agir como se a natureza humana não existisse. Só o que conseguiram foi criar multidões de neuróticos e histéricos.

Hoje, já na sua decadência final, é a redução ao absurdo das fantasias cartesianas que vem sendo imposta, negando-se em bloco até mesmo o dimorfismo sexual humano. Como com qualquer outra mentira, qualquer outra negação ativa da realidade, entretanto, uma coisa se pode saber: não há como dar certo. A natureza humana é um fato, e contra fatos as ideologias são impotentes.

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