Vivemos, como sempre faço questão de lembrar, nos estertores da Modernidade. Ela é, ou antes – felizmente – foi, uma loucura coletiva que tomou conta do mundo quase todo. Aqui no Brasil, para nossa sorte, ela sempre foi algo superficial, pra inglês ver. Em outros lugares, contudo, a substituição da realidade pela ideia como local de percepção do real foi introjetada ao ponto de as pessoas acharem normal esperar o sinal abrir para pedestres na alta madrugada, quando não vem carro algum, antes de atravessar a rua. É o símbolo que toma o lugar da realidade; não duvido que, se vissem que vinha um caminhão em disparada, atravessariam confiantes se o sinal estivesse verde para eles, sacrificando a própria vida à preponderância do sinal sobre o sinalizado, do símbolo sobre a coisa, da ideia sobre a realidade.
Uma das consequências da modernidade foi a transformação da cidade em uma espécie de câncer devorador, aumentado ao quase infinito, retirando os homens da ordem natural e inserindo-os numa fantasia de massa. Aqui mesmo, por exemplo, está em curso a conurbação de Rio e São Paulo, gerando um monstro de centenas de quilômetros de casinhas coladas umas nas outras, sem uma vaca que seja no meio a separá-las. Ora, bem diziam Chesterton e Corção que precisamos de três alqueires e uma vaca para sermos felizes. Na cidade de hoje a vaca é uma impossibilidade. Ou, antes, uma ideia. Nunca me esquecerei duma pobre vaca que vi amarrada num coreto num posto de gasolina na descida de São Paulo para o litoral. O pobre animalzinho estava sendo torturado para deleite dos veranistas. Com os úberes cheios de leite, esperando o alívio de um bezerro sequioso ou ao menos um ordenhador, o monstro que a explorava vendia copos de leite, tirados um a um do pobre animal e sofisticados com uma colherada de achocolatado. O bicho mugia de dor e de desespero, com os úberes empredrando de tão cheios, mas os viajantes só viam um copo de “leite ao pé da vaca”, ignorando felizes o sofrimento do pobre animal. Eram gente da cidade, como o proverbial menino que, ao ver uma galinha, correu contente a contar à mãe que vira uma “knorr”.
A megalópole é o lugar da modernidade, por excelência. Nela todos os homens são iguais, e nenhum deles é homem. São como formigas, que chegam em tamanha quantidade que seria impossível perceber em cada uma delas o valor infinito de um ser humano. É, na verdade, o oposto diametral da pólis grega, da cidade em que todos têm interesse, conhecem um ao outro e sobre a qual agem “politicamente”. A megalópole é o lugar do homem desenraizado, sem querência e sem querença, do anônimo na multidão.
A megalópole é o lugar da modernidade, por excelência. Nela todos os homens são iguais, e nenhum deles é homem
Carlos Drummond de Andrade disse certa feita que o interiorano não tem o privilégio do anonimato. Este privilégio, que segue de certa forma o antigo adágio alemão de que o ar da cidade liberta (os servos eram libertados após morar tantos anos numa cidade), é o cerne do habitante da megalópole. Ele pode ser uma pessoa em cada momento da vida, sendo todas elas perfeitamente anônimas. No trabalho ele é monarquista convicto, na padaria torcedor dum time, e no bar à noite fanático de algum político de estimação; os seus colegas de bar nem sabem onde trabalha, e no dia em que trocar de emprego desaparecerá para todo o sempre da vida de seus colegas de firma. As pessoas vêm e vão, mas quase nenhuma delas persiste em fazer parte da vida de quem quer que seja. Para Heidegger, o mundo seria o lugar por onde andamos e onde entramos em contato com o outro. Na megalópole, cada pessoa é seu próprio mundo, frequentemente isolado auditivamente dos demais por fones de ouvido ou janelas de carro fechadas. A pessoa ao lado pode viver num mundo radicalmente diferente do nosso, e jamais saberemos. O vizinho de andar no prédio é um absoluto desconhecido. As pessoas com que se cruza na rua são formigas, sem identidade própria.
Mesmo a vida religiosa, em todos os seus aspectos, na megalópole é perdida. A paróquia é grande demais, e é mais fácil fingir que não se vê os irmãos com fome, morando na rua, procurando na cola ou no crack a satisfação de uma dignidade que lhes é negada. A oração de um contrapõe-se à maratona de séries de outro, todos juntos e ao mesmo tempo vivendo em mundos separados.
A separação total da pessoa e da realidade, este ápice da modernidade, consegue ocorrer na megalópole. Só nela se pode comer coisas que vêm em caixas, beber água que vem em garrafas e ver as fezes desaparecerem, sem que haja relação traçável entre a água que cai do céu e inunda as ruas (bem como irriga as invisíveis plantações distantes) e a mesma água com que se toma banho ou se dá descarga. A fase da lua é irrelevante, pois a luz à noite vem dos postes e faróis, não dela. Até mesmo a temperatura “lá fora” é não apenas um mistério para o habitante de ambientes refrigerados, que mal a percebe no curto espaço entre o elevador e o carro no trabalho e em casa, mas é um dado falso, aumentado em sei lá quantos graus centígrados pelo bafo quente de cada condicionador de ar. Fica fácil acreditar em um aquecimento global minuciosamente previsto em centésimos de grau ao ano quando o ar ao redor do carro é aquecido pelo próprio veículo.
É esta separação que, já na pós (ou hiper) modernidade, levou às tentativas atuais de negação dos elementos mais básicos do ser-se humano. O masculino e o feminino se confundem, e qualquer aglomeração de pessoas debaixo do mesmo teto – forçando, pela convivência, o outro a perceber-nos como parte de seu mundo – faz as vezes de família. A família, que sempre foi a aposta da sociedade no futuro (uma festa de casamento é uma festa de batismo em potência, celebrando as crianças que virão e um dia também se casarão ali mesmo, naquela mesma igreja), passa a ser, na melhor das hipóteses, um local de convivência presente, sem passado e sem futuro discernível. As pessoas, presume-se, depois de cansarem daquele arranjo doméstico, retirarão de seu mundo os então participantes dele, passando no máximo a reconhecer sua existência pelas redes sociais (o bloqueio ou cancelamento continuam sempre possibilidades presentes). O que era não é mais, e o que é agora pode não ser amanhã. Tudo o que é sólido desmancha-se no ar; desaba como um viaduto corroído pela maresia.
É apenas ali, onde um cachorro pode ser torturado tratando-se-o como se fosse um bebê, é que se pode negar algo tão elementar quanto o masculino e o feminino na natureza humana. Quanto a humanidade absoluta, pujante e evidente dum bebê na barriguinha da mãe. Quanto a Encarnação do Verbo, que Se fez homem, não formiga. Só ali pode haver uma celebração do homem-formiga, esmilinguidamente pregando um deus que se resume a não incomodar, não cutucar, não tirar os demais de seus mundos particulares forçando-os a encarar a realidade.
E nas “quebradas”, na periferia, uma forma de lei da selva reina, sem que com ela venha a ordem de todas as coisas, que faz da selva de verdade não um caos, mas participação numa ordem infinitamente complexa. A megalópole expulsa alguns para a periferia, marginaliza-os, exila-os de tal forma que lhes parecem humorísticos os discursos meritocráticos. A mulher que sai de casa de madrugada para fazer as vezes da mãe de uma ou duas crianças da mãe rica que passa o dia empurrando bits e bytes num escritório no Centro, e que para poder fazê-lo deixa o filho sozinho com a tevê no barraco, não acredita em meritocracia. Seu filho vai crescer aprendendo na rua o valor de uma “masculinidade tóxica” que o torna guerreiro do niilismo aos 12 e preto-pobre-morto-na-quebrada-de-arma-na-mão aos 19.
Ninguém na megalópole é gente de verdade, na medida em que cada um está sempre prestes a desaparecer completamente do mundo em que habitamos
Ninguém ali faz parte duma cidade. A política é impossível, por não haver mais pólis alguma, e mesmo a polícia não está a serviço de uma pólis inexistente, tornando-se apenas mais uma força entre tantas a disputar domínio de território e de almas. Cada um, trancado dentro de seu castelinho (vulnerável, no caso dos pobres, e invulnerável ao ponto de parecer surreal a intrusão de uma gangue armada, no caso da classe média para cima), ao fechar a porta de casa tranca do lado de fora todos os demais mundos que coabitam, sem se tocar jamais, no superpovoado espaço da megalópole.
Nada ali existe de verdade. Ninguém ali é gente de verdade, na medida em que cada um está sempre prestes a desaparecer completamente do mundo em que habitamos. Se não em ato, ao menos em potência, o mais certo é que daqui a tantos anos não teremos mais contato algum com as pessoas que estavam conosco naquele mundo tão efêmero que construímos e reconstruímos a cada segundo na gigantesca tela da megalópole, onde nada perdura e nada pode existir. A megalópole, na verdade, não é um lugar senão geograficamente. Na prática ela é uma tela em olho de mosca onde são projetados – com a multidão de homens-formiga a fazer o papel de extras sem nome – os sonhos, delírios e construções mentais de mundos falsos em que cada um viaja todo o tempo. Ali não há vizinho, e se houver ele amanhã pode desaparecer. Não há parente, senão naqueles curtos momentos de (re)construção periódica dum mundo de que eles participam, ao redor dum peru ou dum bolo.
Toda relação na megalópole, por ser efêmera, é falsa como uma nota de três reais. Escolhemos a fantasia do dia ou do momento, podendo, no anonimato absoluto que a multidão de homens-formiga nos propicia, fazer o que quisermos, ser quem quisermos. Podemos ser tudo e todos, menos a nós mesmos. Afinal, como bem disse Ortega y Gasset, “eu sou eu e minhas circunstâncias”. Se estas são perpetuamente cambiantes, se vivemos num fluxo perpétuo de reconstrução de mundos perfeitamente distintos que apenas em nós mesmos têm interseção, o próprio “eu” nos acaba faltando por efemeridade total das circunstâncias. E assim lentamente enlouquecemos, negando o masculino, negando o feminino, negando as relações necessárias entre sexo e reprodução, entre fertilidade e juventude, entre pênis e vagina, entre calor e suor, entre trabalho e renda, chuva e água para beber, terra e comida. Toda causalidade, na megalópole, é tida por construção mental. Toda realidade, na megalópole, parece estar a ponto de se dissolver, quiçá ao apertar um botão dum controle remoto ou ao clicar em algo nalguma tela.
Na megalópole, o homem não existe mais.
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