Dependendo de por que lado o olhamos, o ser humano pode ser uma infinidade de coisas. O homem é o único animal que planeja imaginativamente, por exemplo: todo joão-de-barro faz a mesma casa, mas cada casa humana é de um jeito. Mesmo quando um político resolve provar que odeia os pobres construindo-lhes miríades de casinhas exatamente iguais (em que nem ele nem sua família jamais morariam), a primeira coisa que cada morador faz é deixar a casa do seu jeito; tirá-la do padrão. Do mesmo modo, o homem é o único (ou quase único) animal que mata por gosto. Coisas boas e coisas ruins, temo-las todas. O que ninguém pode negar, todavia, é que Aristóteles estava certo ao dizer que o homem é um animal naturalmente social. Em outras palavras, é de nossa natureza, é do modo que somos feitos que nos vem o desejo de viver em sociedade.
Mas o que é a sociedade? Nos dois últimos séculos, passamos por um processo de acumulação gigantesca de população em espaços ínfimos, com uma densidade habitacional inimaginável para um homem de qualquer outro período de tempo. Não precisamos ir a Hong Kong e sua lendária densidade demográfica quando sabemos, por exemplo, que em Copacabana (ao menos é o que diz a lenda) não haveria espaço nas ruas para todos os habitantes de uma só vez, nem que ocupassem calçadas e asfalto.
Uma cidade antiga tinha, estourando, o tamanho de uma cidade média para pequena de hoje. Algumas poucas – Bagdá no seu auge, por exemplo, antes de ser devastada pelas hordas mongóis – chegavam a ultrapassar o milhão de habitantes. E mesmo esse milhão de pessoas (que por alguns relatos chega a 2 milhões de habitantes!: uma Curitiba hodierna) estava espalhado numa área bem maior que a que hoje pode dar a Copacabana a espantosa densidade demográfica de mais de 20 mil pessoas por quilômetro quadrado.
Na cidade monstruosamente enorme é não só fácil, mas realmente necessário para a própria sanidade mental tratar como ser humano apenas as pessoas que pensam exatamente da mesma maneira
Dizem alguns especialistas que nos é possível reconhecer e tratar como seres humanos diferenciados entre si apenas coisa de 150 pessoas. Passou disso, as pessoas entram para o que Heidegger dizia ser “categorial”, ou seja, gente sem identidade. Gente que não é gente, mas, em vez disso, meramente pertence a uma categoria: guarda de trânsito, caixa de supermercado, pedestre, camelô, o que for. Ora, 150 pessoas são bem menos que a população de um único edifício de Copacabana. Todos os outros, lembro, ficam de fora, por simples incapacidade humana de manter em mente tanta gente ao mesmo tempo.
Um amigo comentou outro dia, com certa dose de razão e boa dose de maldade, que a única coisa que pode levar alguém a querer viver numa dessas megalópoles defecadas pelos fados no século passado é o desejo de conseguir esconder-se na multidão e assim perpetrar os piores atos. Maldade. Em geral é mais simples que isso: a pessoa se acostumou a não ver as demais pessoas como gente. Acostumou-se a esbarrar nelas e não só não ter absolutamente reconhecimento algum, como não ver razão para tentar o ter. As demais pessoas são mera paisagem, como as árvores ou os tijolos; quem, afinal, pensaria em conhecer cada tijolo?!
Numa cidade pequena, além de nossa cota de 150 conhecidos com nome e endereço conhecidos, temos umas outras centenas de pessoas que sabemos que vemos quase sempre na missa ou no mercado; mesmo assim, são mais comuns as caras vagamente conhecidas que as totalmente desconhecidas. E por cidade pequena refiro-me a cidades que rivalizam em população com as grandes metrópoles de há algumas centenas de anos, tamanha a inflação do tamanho das cidades. A população da Paris de São Tomás de Aquino ou de Abelardo e Heloísa, afinal, equivalia a aproximadamente metade da população da Petrópolis de hoje, ou a menos de um décimo da Curitiba atual.
E aqui volto ao início: o que é ser um animal naturalmente social? Será que tratar as pessoas como tijolos ou árvores é um modo de ser social ou uma violação de nossa própria natureza? É daí que surgem estes horrendos corolários das megalópoles, que são as tribos urbanas. Quando se as mencionava há algum tempo, estava-se falando de grupos mais ou menos fechados, que ouviam apenas determinado tipo de música, vestiam-se de maneira mais ou menos uniforme e frequentemente enfrentavam violentamente outras tribos. Skinheads, punks, metaleiros, este tipo de coisa. Hoje, contudo, o tribalismo recrudesceu a tal ponto que é difícil encontrar quem não faça parte de uma tribo. Cada seita protestante é uma tribo, assim como formam uma triste tribo os rapazes que acham que precisam de suspensórios e gravata-borboleta para serem católicos. E os funqueiros. E os marombeiros. E os viciados em historietas japonesas, ou o que for. Tribos, aos milhares.
Isso é decorrência inevitável da cidade monstruosamente enorme, em que é não só fácil, mas realmente necessário para a própria sanidade mental tratar como ser humano apenas as pessoas que pensam exatamente da mesma maneira. Do vizinho de andar no mesmo prédio não se sabe nem o nome, mas todas as pessoas com quem se tem contato mais assíduo – gente que está, por assim dizer, no cerne daqueles 150, no núcleo duro de nossa parca socialização – acabam sendo gente que pensa como nós, age como nós, tem os mesmos valores... Que muitas vezes são tão radicalmente distintos dos do vizinho de andar que um julga o outro louco pelas poucas atitudes dele a que acaba tendo inevitável acesso pela excessiva proximidade. Por exemplo, o músico clássico que ensaia suas escalas horas por dia julga ser louco o vizinho que bate panelas na janela a cada vez que aparece um determinado político na tevê, e vice-versa.
Para colocar o problema de outro modo, a nossa socialização, que nos é natural, na cidade ocorre de modo antissocial. Afinal, uma sociedade é por definição uma reunião de gente mais ou menos diferente, porém unida por um conjunto de valores, frequentemente por uma ascendência mais ou menos comum, normalmente por uma religião, e por aí vai. Já na megalópole o que se tem é um caleidoscópio de microssociedades em que o outro, o diferente, não entra no nosso cômputo da espécie humana. Pudera que o mundo de espelhos das redes sociais tenha feito tanto sucesso nesta etapa da sociedade moderna, em que as pessoas já se acostumaram a não lidar nunca com o diferente.
Na megalópole pessoas vivem em caixas, como abelhas, com a desvantagem sobre elas de nem sequer saber ou mesmo ter por plenamente humanos os habitantes das caixas outras que circundam a sua
Na roça, ou na cidade pequena, a coisa é totalmente diferente. Aqui vale o adesivo “rastreado por vizinhas fofoqueiras”, para bem e para mal. Ninguém é anônimo, em momento algum. Todos, assim, têm sempre de agir de maneira socialmente aceitável; a diferença maior, todavia, é que os limites desta aceitação são enormemente amplos, comparados ao que é socialmente aceitável dentro dos grupelhos, das microssociedades das megalópoles. O vizinho do lado é forçosamente diferente, muito diferente, gigantescamente diferente, mas continua sendo gente. Seria impossível não saber quem ele é. Não faria sentido algum não saber o seu nome; ele é gente, gente como a gente. Está no mesmo mundo que nós, enquanto na cidade cada tribo, ou mesmo cada pessoa, habita um mundo diferente.
No meu caso, por exemplo, eu moro na roça. Há um vilarejo de umas poucas centenas de habitantes a coisa de dois quilômetros, que é a aglomeração “urbana” mais próxima. A cidade de qualquer outro momento na história certamente assemelhava-se muito mais a ele que aos formigueiros humanos de nossa era. Ele tem uma igreja, alguns bares e mercadinhos, uma escolinha, um posto médico... o básico. O mais engraçado é que nele mora um sujeito que coleciona carros caros, e tem mustangues, corvetes, esses veículos fora do normal. Mas aqui, na roça, perto do vilarejo, estou ainda mais longe e, paradoxalmente, mais perto dos meus vizinhos. Tenho um que mora a coisa de dez quilômetros daqui, mas vem todo dia para um sítio que construiu para fugir da esposa chata. Tenho outro que é um senhor de idade, que toca divinamente bem a viola caipira. De vez em quando posso ouvi-lo de minha varanda, quando o vento bate da direção certa. Tenho ainda outro que plantava milho e fazia pamonhas para vender na feira, mas desde que foi aberto um prostíbulo perto de sua casa deixou tudo de lado, e está vendendo aos poucos a terra que herdou dos pais para gastá-la lá. Tornou-se alcoólatra. Sei os nomes de todos, claro.
Todos aqueles com quem convivo, de uma certa maneira, fazem parte da mesma sociedade. Afinal, não há aqui gente suficiente para criar microssociedades falsas, mundos irreais habitados apenas por aqueles poucos que reconhecemos como semelhantes, enormemente semelhantes. A sociedade é real, o que faz com que as regras sejam necessariamente mais elásticas. Outro dia mesmo meu vizinho alcoólatra veio aqui, descalço e sem camisa como sempre andou, aboletou-se no sofá da sala e me convidou para uma festa que em seus delírios etílicos achava que faria. Claro que a tal festa nunca aconteceu, mas eu já sabia disso quando fui convidado. Com outros tratamos de galinhas comidas por cachorros, poços e nascentes a preservar e dividir equanimemente, essas coisas de vizinho. Mas cada um, sempre e em todo momento, é um ser humano. É gente. É alguém que está comigo no mundo como gente, alguém com quem tenho de lidar. Já na megalópole, alguém tão distante nos seus modos de viver e pensar jamais passaria do “bom-dia” com que uns poucos educados ainda saúdam os porteiros, garçons e caixas de mercado. Seria categorial.
Há outros problemas, quiçá mais graves ainda que não tão antinaturais (no sentido aristotélico do termo, claro). O mais grave deles, a meu ver, é evidentemente o ambiental. Ao aglomerar tamanha quantidade de gente em tão pouco espaço, cria-se na megalópole a necessidade de vastos sistemas de abastecimento de água, de tratamento de esgotos, de transporte e venda de comida, entre outras demandas naturais que, amplificadas pela superpopulação, tornam-se problemas exponencialmente complexos. Um biodigestor, ou mesmo uma fossa, quando se tem uma família a cada 100 metros, é algo que resolve o problema dos dejetos humanos muito mais simplesmente que o aparato necessário para uma megalópole. Do mesmo modo, vastas quantidades de mato garantem o abastecimento de água, que consegue infiltrar-se no solo.
Já numa megalópole tem-se quilômetros e mais quilômetros em que o solo simplesmente não absorve a água das chuvas, devido ao asfalto, cimento e demais obras de arte que o recobrem. O resultado é uma tendência muito maior a enchentes. O Rio de Janeiro, que tem enormes áreas construídas sobre antigos pântanos, é um exemplo claro disso. Do mesmo modo São Paulo, que ainda tem o desplante de marcar as medonhas bocas de esgoto encanado que deságuam nos vastos canais em que os rios paulistanos se transformaram com o nome dos antigos córregos e ribeirões por elas substituídos.
O ar das megalópoles é pútrido, devido à concentração de veículos. Esta, por sua vez, leva a engarrafamentos e, assim, a uma maior poluição do ar, num ciclo vicioso tornado ainda pior pela geração de calor dos motores, que por sua vez aumenta a necessidade de climatização de carros e de casas, gerando então ainda mais calor. Uma então autoridade do Instituto Médico-Legal da capital paulista confidenciou-me certa feita que era possível perceber os recém-chegados a São Paulo pela limpeza de seus pulmões. Um interiorano na cidade há pouco, mesmo que fumasse como um caipora, jamais teria os pulmões negros do paulistano habitual. Evidentemente, para os moradores, fumar ou não fumar é completamente irrelevante, dada a quantidade de partículas poluentes que já absorvem normalmente. Uma campanha de proibição de cigarros com o mote de “ar puro”, um tempo atrás, era na verdade uma piada macabra na Pauliceia.
As megalópoles são um modo de viver que nega a própria natureza humana
As escolas dificilmente terão, ainda, como operar a contento em tal ambiente. As exceções, de uma certa maneira, são as que reproduzem as microssociedades urbanas: as escolas de tribos determinadas. É o caso das escolas rigidamente confessionais, por exemplo. As demais, todavia, reunirão sob o mesmo teto pessoas (no corpo discente e no docente) que, por falta de socialização real, têm dificuldade em lidar com o outro. Os filhos dos membros de uma tribo não conhecem, nem reconhecem, nem querem ter contato com os filhos de outra, e as diferenças se revelam dramáticas na capacidade de absorção de conteúdo. O resultado é que o normal dentre as escolas de megalópole, com raras exceções, seja o mais rotundo fracasso educacional.
O habitante de megalópole, assim, vê-se forçado a uma vida que, paradoxalmente, seria quase uma de recluso ou ermitão em outras eras. As pessoas com que fala são poucas, e frequentemente estão distantes dele a maior parte do tempo. Os amigos – os não categoriais, os que estão com ele no mundo como gente – só serão encontrados naquele bar àquela hora, por exemplo. Os rostos na rua, como vimos, são tão pouco individuados quanto os tijolos das paredes. É isso que possibilita os vários casos de horror, que têm se multiplicado nos últimos tempos, em que pessoas são assaltadas e mesmo violentadas no espaço público e nenhum dos passantes intervém. Nas cada vez mais raras ocasiões em que alguém o faz, normalmente é um senhor idoso, criado ainda antes da tribalização final da sociedade decadente das megalópoles.
Pessoas vivendo em caixas, como abelhas, com a desvantagem sobre elas de nem sequer saber ou mesmo ter por plenamente humanos os habitantes das caixas outras que circundam a sua; sabe-se o som dos tamancos da filha do vizinho de cima, mas não seu nome. Sobrevive-se respirando um ar fétido e insalubre. Bebendo uma água caríssima, normalmente cheia de produtos químicos para evitar as pandemias que fatalmente assolariam populações tão concentradas se a água que lhes é fornecida não fosse artificialmente tornada um elemento tão totalmente hostil à vida que mataria peixes que nela fossem colocados. Comendo coisas que vêm em caixas, frequentemente produzidas de forma industrial com insumos cuja origem é no mínimo nebulosa. Pessoas tão isoladas do mundo real que não têm nem sequer como saber em que fase da lua se está. Pessoas que jamais viram o céu estrelado que orientou os sonhos de todos os humanos até agora há pouco. Pessoas para quem a chuva é algo totalmente desconectado da água que vem da torneira, e vice-versa. Pessoas que só conseguem locomover-se naquele mundo de bonecos sem rosto (daí o sonho recorrente dos zumbis, aliás) com a importância e a dignidade de tijolos fechando-se ao mundo em um casulo de som fornecido pelos fones de ouvido, com que os ruídos dos demais seres humanos deixam de existir como tal. Não é de se espantar que o primeiro produto a possibilitar que se tivesse ao alcance uma vasta biblioteca sonora para isolar-se do mundo se chamasse “iPod”, “casulo do eu”. Montanhas, quantidades industriais de dejetos, tanto fisiológicos (e tome mais produtos químicos, e mais estações de tratamento, para conseguir tentar que algo daquilo possa retornar à natureza!) quanto, mais ainda, oriundos do consumo: caixas tetrapac de comidas, plásticos usados para carregar alguma porcaria inútil e cara daqui até ali, telefones com dois anos de uso e o que mais vier. Já escrevi aqui mesmo que os arqueólogos do futuro nos chamarão de “sociedade do lixão”.
O consumismo é filho da megalópole. Nela é cada vez mais impossível viver sem ele; uma forma de vida artificial e antissocial só tem como válvula de escape, como infinito a buscar, a dívida infinita oriunda da compra infinita. Tudo o que existe no mundo real é alheio ao habitante da megalópole, do clima (quando o ar é condicionado no transporte, no trabalho, no lazer e em casa, o clima do mundo lá fora é uma breve experiência desagradável ao passar de um a outro ambiente fechado) às estações, às fases da lua, à luz natural ou, mais ainda, a sua ausência. Afinal, na megalópole não existe nem escuridão nem silêncio. O habitante desses formigueiros humanos, ao ver-se numa estrada deserta, iluminada apenas pela forte luz dos faróis de seu carro, frequentemente chega ao ponto de sentir medo. Afinal, na sua vida cotidiana, os faróis servem quase que só para sinalizar aos outros a posição de seu veículo, posto que a iluminação vem de toda parte. Ofuscando as estrelas, ofuscando a luz, ofuscando o mundo.
As megalópoles, assim, são um modo de viver que nega a própria natureza humana. Não é de se estranhar que elas tenham surgido justamente como corolários de uma cultura (a Modernidade) que nega a existência de uma natureza humana. Não é tampouco de se estranhar que, nas fases finais da decadência desta forma de organização social, tenha-se dúvidas até mesmo acerca de coisas tão básicas na nossa natureza quanto o masculino e o feminino ou as idades do homem. “Cocotinhas” de 50 anos e rapazes de vestido dizendo-se moçoilas casadoiras são dois aspectos do mesmo triste problema: o de um animal naturalmente social que foi colocado em uma posição que violenta a sua natureza, como um cachorro que fosse forçado a viver como um pato ou... um passarinho na gaiola.
Fujamos.
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