O maior problema da Europa no combate ao terrorismo é o surgimento de uma população emasculada e passiva, que não se percebe como nem sequer capaz de lutar. Por um lado, é uma reação ao excessivo militarismo que a assolou no século passado; por outro, é receita para enfrentar problemas, mais ainda se, como é o caso, existe uma alternativa máscula para os rapazes. Rapazes são rapazes em qualquer lugar do mundo, e eles sempre procurarão o que lhes parecer mais bravio ou mesmo heroico. Na Europa de hoje, especialmente para os descendentes de imigrantes – jamais inseridos plenamente na sociedade, vivendo como se eles mesmos fossem estrangeiros no lugar em que nasceram – a opção “macha” é dada pelo radicalismo islâmico nos moldes do Estado Islâmico.
O resultado é o triste espetáculo que se vê quando qualquer terrorista psicopata armado com uma faca consegue ferir e matar como se não houvesse amanhã no centro de qualquer uma das principais cidades. Mas algo deu errado e o número de vítimas foi tremendamente diminuído no derradeiro ataque em Londres. O que deu errado tem nome e sobrenome: Roy Larner, 47 anos, torcedor fanático do pequeno time de futebol Millwall, doravante imortalizado pelo nome de Leão da Ponte de Londres. Ao ver os terroristas atacando as pessoas com facas e gritando louvores a Alá, ele se jogou contra eles, gritando de volta “vão se foder, aqui é Millwall, porra”, em uma tradução livre. Tomou oito facadas, foi hospitalizado e posou para fotos com uma revista (presente dos amigos) ensinando como correr, mostrando comicamente ser capaz de rir de si mesmo.
Sozinho, Larner segurou os três terroristas por tempo suficiente para permitir a fuga de inúmeros jovens mais fortes do que ele e fisicamente mais capazes, mas menos dotados no quesito hombridade. As ubíquas câmeras de circuito fechado de tevê instaladas por toda a Inglaterra, num imenso Big Brother aberto, captaram a imagem de jovens, dezenas ou mesmo centenas deles, fugindo das facas. Um deles – o menos apavorado, talvez – andava tranquilamente com seu copo de cerveja na mão; os demais corriam. Mas que rapazes são esses, que ao ver um maníaco com uma faca fogem dele em vez de buscar defender os demais presentes?
Que tenha sido um homem de meia idade a fazê-lo não causa espécie. Estranho seria se fosse um jovem; como escrevi, a alternativa varonil que lhes resta parece ser apenas a islâmica, com todas as opções não islâmicas (carecas, punks, nacionalistas, etc.) desaparecidas ou misturadas numa vala comum de “extrema-direita” tratada como tóxica pelas autoridades e mídia. A educação é toda voltada para a emasculação psicológica total da juventude, visando um ser andrógino que não parece capaz de sobreviver fora de condições muito estritas de laboratório. É uma condição tão artificial que não tem como durar muitas gerações; a própria natureza se ocupa de corrigir o que vai por demais flagrantemente contra ela. Os netos desses jovens devem ter espírito másculo, se seus filhos não os tiverem. Mas, por enquanto, é aos mais velhos que ainda cabe o privilégio da bravura. Um homem de meia idade que ainda viveu uma educação menos emasculante, que ainda passou por raladuras tratadas com mertiolate que arde (ou seja lá qual for o equivalente inglês disso) quando era pequeno, foi quem parou Alá, em nome de Millwall.
Mais ainda, não causa espécie que seja um torcedor de futebol inglês, um dos hooligans remanescentes que correm o risco da violência quando dos jogos de seus timinhos do coração. O futebol existe como alternativa identitária não é de hoje, e a violência entre torcidas acaba sendo uma das raras modalidades de violência ordenada dentro de um quadro de referência disponível aos nativos. Para Roy, como tornado claro pelo seu brado de guerra, a identidade primária não é inglesa, cristã, londrina ou o que for: ele é “Millwall, porra”. Millwall contra Alá; o local, o amor àquilo que está próximo de nós, contra o sonho totalitário de uma ideologia assassina que faz de deus sua ambição de poder.
Por mais que seja uma identidade precária, é uma identidade fortemente local, e é exatamente a rivalidade dela com outras identidades igualmente precárias que a fortalece e a torna capaz de mover mesmo ao heroísmo, como foi o caso. É o que resta numa sociedade que dissolveu seus esquemas de pertença maiores em uma vaga nuvem burocrática que a tudo vê e a tudo governa, sem participação popular praticamente alguma. Millwall, neste sentido, é um codinome do Brexit, um levantar-se altaneiro do local contra o global ou europeu, um brado de macheza que ainda ressoa em resposta ao grito igualmente altaneiro de “por Alá”.
Esperemos que o exemplo de Roy contagie outros, e mesmo que aumente a torcida de seu time de futebol. Millwall ganhou de Alá, e isso não é para qualquer um.
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Confira o arquivo de colunas de Carlos Ramalhete publicadas até maio de 2017 na Gazeta do Povo.
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