Os velhos delírios de exploração do espaço voltaram à moda, mas agora sob os auspícios da iniciativa privada. No século passado eram os Estados que sonhavam em pisotear os astros, com os EUA chegando efetivamente a esfregar as solas dos sapatos de doze astronautas na superfície lunar (há quem diga que não, como há quem diga que a Terra é plana ou oca; para o que estamos a dizer, isso é em última instância irrelevante). A Lua, pobrezinha, nada pôde fazer para se defender; menos ainda seus verdadeiros donos, os poetas e os apaixonados, puderam resistir de alguma forma a tão triste ataque materialista. Pelo menos tal brincadeira besta chegou a um fim natural, com os Estados voltando ao seu velho hobby de guerras e demais tipos de assassinato em massa. Agora, contudo, na onda pós-moderna – ou antes, como veremos, hipermoderna – a mesma mania voltou à moda. A diferença, contudo, é que agora são os bilionários que sonham pisar nos astros distraídos. A hipermodernidade é a modernidade versão 2.0, em que tudo faz ainda menos sentido.
O dono da Amazon mandou projetar enormes charutos voadores, que possibilitariam a seres humanos viver indefinidamente no espaço, com plantações, bichinhos e o que mais ele viesse a achar necessário. As ditas concepções artísticas têm até celeiros vermelhos-e-brancos, como no Meio-Oeste americano. Quase um segundo lar. Indo mais longe ainda, o dono da Tesla – o mesmo que fumou maconha em um programa transmitido ao vivo, perdendo assim sua certificação do governo americano para ler segredos de Estado – resolveu que detonar bombas nucleares em Marte seria uma boa ideia. Pode-se mesmo comprar as camisetas “Nuke Mars!” em sua lojinha virtual. A noção por trás deste delírio específico seria que bombas atômicas poderiam ajudar a liberar água do subsolo e potencialmente conduzir a uma transformação completa do ambiente marciano, de tal forma que o planeta vermelho pudesse se tornar habitável por seres humanos.
Semelhantes delírios são mero fruto tardio das ilusões iluministas que formaram a modernidade, e em última instância têm mais a ver com o modo de viver dos habitantes das megalópoles que com a realidade do planetinha azul que habitamos. Quem mora numa cidade grande conhece água como aquilo que sai da torneira com um vago cheiro de cloro. Para todos os efeitos, a água que cai do céu nas chuvas e a água que sai das torneiras poderiam ser substâncias diferentes. Do mesmo modo, a noite foi vencida nas megalópoles pela iluminação pública e particular. O fato de terem sido apagadas do céu as estrelas e mesmo a lua (diga-me, caro habitante de megalópole: em que fase da lua estamos hoje?) é mero efeito colateral. A comida vem numa caixinha tetrapak. Afinal, já foi dito que “é melhor que o leite venha duma loja limpa que duma vaca suja”. Os dejetos humanos desaparecem miraculosamente quando se dá a descarga. O lixo é levado para sabe Deus onde por caminhões barulhentos na madrugada. O calor ou o frio excessivos são vencidos pelo condicionador de ar da casa, escritório ou carro, de forma tão eficiente que apenas a passagem de um para o outro lembra à pessoa que existem temperaturas desagradáveis “lá fora”. O passeio na praça foi substituído por um passeio no shopping, onde a iluminação e a temperatura são sempre as mesmas, o clima lá fora é perfeita e completamente ignorado, e tudo, absolutamente tudo, vem de algum lugar ignoto, alhures.
Enquanto nossas crianças e adolescentes são treinados a repetir como papagaios que o homem está causando a mudança climática, problemas ecológicos infinitamente mais sérios e mais reais são simplesmente ignorados
Isto é o que nos deu a modernidade em seu auge. Há, todavia, um problema de peso escondido por trás das paredes do shopping, por baixo do asfalto, acima do alcance da luz dos postes. Tudo isto nada mais é que uma aldeia potemkin escondendo o mundo real e seus problemas. O condicionador de ar não acaba com o calor; ao contrário, ele o aumenta tremendamente, ao somar ao calor retirado do ambiente refrigerado o que é gerado pelo compressor do aparelho. Quem duvida faça a breve experiência de andar entre carros parados, com o condicionador de ar a todo vapor, para perceber como ali é muito mais quente que na calçada, devido ao bafo escaldante de todos aqueles aparelhos juntos. Do mesmo modo, a comida não brota do tetrapak, mas é plantada, no mais das vezes empregando métodos tão intensivos que os efeitos negativos sobre o meio ambiente são gigantescos. Aquele peito de frango grelhado com que a moça mais fofinha tenta perder uns quilos vem de uma granja em que as galinhas são tratadas de tal forma que um campo de concentração parecer-lhes-ia uma boa opção. A eletricidade que faz da noite dia, na melhor das hipóteses, vem duma hidrelétrica que inundou enorme área de floresta. Ela pode ainda vir duma termelétrica que solta fumaça de fazer inveja ao fã-clube do Bob Marley. Ou, horror dos horrores, pode ser oriunda duma usina nuclear, que produz um lixo radioativo que continuará perigosíssimo por milênios. Muito depois de já terem se desmanchado em pó as camadas de concreto sob as quais ele é enterrado, de ter sido esquecida a língua em que estão grafados os avisos de perigo, quem chegar perto morrerá lenta e dolorosamente. E isso para lavar e secar nossas roupas, para que possamos assistir séries de tevê ou subir pelo elevador.
A vida na modernidade – e na hipermodernidade, por extensão – é uma vida falsa. A natureza não foi “domada”, a não ser no sentido em que mocinhas alemãs de doze anos de idade foram “domadas” por soldados russos em 1945.
Quem está fora das megalópoles tem mais facilidade em perceber isto, por ver os fundos das estruturas falsas da aldeia potemkin. Vinte anos atrás, um breve passeio de automóvel por uma estradinha rural tornava necessário lavar o parabrisas do carro, tamanha a quantidade de insetos que nele se incrustava. Hoje isso não é mais necessário, porque os insetos desapareceram. Onde foram? Morreram, certamente, ou deixaram de se reproduzir. Mas o que é mais importante não é onde foram, e sim qual era o papel deles na ordem natural. Trocamos alimento farto e barato pela extinção de miríades de espécies de insetos, sem que soubéssemos qual era sua parte no gigantesco concerto da natureza. Agimos como um louco que tirasse ao acaso peças do motor dum carro, julgando-as inúteis por não entender sua função.
Para o citadino, parece vantagem esta extinção. Afinal, só um masoquista gosta de insetos: eles nos picam, zumbem ao redor, caem na sopa e tudo o mais. Para esta ou aquela flor, todavia, o inseto é a diferença entre poder ou não se reproduzir, pois seria ele, e apenas ele, que levaria o pólen dum ao outro pé. Na China já é necessário e comum que trabalhadores polinizem manualmente algumas espécies de vegetais, indo com um cotonete duma planta a outra, para assegurar-lhes a reprodução. Isso pode fazer sentido quando comemos aquela planta ou auferimos dela algum outro benefício financeiro. Mas aqueloutra, que não comemos? Qual será o papel dela? Não seria ela que, por exemplo, fixaria no solo um nutriente essencial para uma que comemos? Simplesmente não há como saber, porque a ordem da natureza é simplesmente ampla demais, complexa demais, para que possamos entendê-la plenamente. Ninguém sabe quantas espécies de insetos existem, que dirá qual é o papel de cada uma. Mesmo assim os tratamos como dispensáveis, em bloco, devido à ilusão iluminista de um mundo sob controle.
Enquanto nossas crianças e adolescentes são treinados a repetir como papagaios que o homem está causando a mudança climática, problemas ecológicos infinitamente mais sérios e mais reais são simplesmente ignorados. A legislação ambiental, aqui e alhures, é uma piada. A brasileira parece feita por habitantes de uma megalópole que jamais tenham pisado fora dela. Na prática, ela impede a agricultura familiar, que é – ou deveria ser – a base da sociedade campesina. Problemas reais são ignorados, enquanto penas desproporcionais punem os “culpados” por falsos problemas. Enormes plantações de eucaliptos, absoluta e completamente silenciosas pela ausência de pássaros, insetos e quaisquer outras plantas, são tratadas como se fossem o mesmo que uma floresta viçosa.
É apenas neste contexto de desligamento total do mundo real que podem vingar ideias de jerico como as dos bilionários que citei acima. Repito: é-nos impossível compreender a ordem da natureza, devido à sua imensa complexidade. Mais ainda, diria eu: é-nos impossível sequer vislumbrá-la em sua inteireza. É-nos impossível apontar suas interconexões. E, mais ainda, a fortiori, é-nos impossível reproduzi-la em charutos voejantes ou em um Marte tornado Hiroshima. Sem ela, entretanto, não interessa quantas bombas atômicas sejam detonadas sobre o planeta do deus da guerra (que, presume-se até gostaria das cosquinhas). Sem ela, não interessam o tamanho ou o material dos gigantescos charutos celestiais que povoariam as vastidões siderais. Todas as tentativas de criação de um habitat humano isolado do mundo ao redor fracassaram, como seria óbvio que aconteceria para quem quer que já tenha passado meia-hora em silêncio numa floresta. Surgiram fungos de que ninguém havia ouvido falar, as plantas não vicejaram, o ar tornou-se viciado, e por aí vai. Tirar o homem da interdependência planetária maior de toda vida é como tirar uma peça do carro e querer que ela sozinha nos conduza a algum lugar.
Vivemos num só meio ambiente, num só habitat. Como é agora moda mostrar, devido às acusações que se levantam contra a substituição de uma política ambiental imbecil por outra efetuada pelo atual governo, não fosse a Amazônia e os “rios aéreos” por ela gerados, o Sudeste e o Centro-Oeste brasileiros seriam um deserto igual aos que ocupam as mesmas latitudes nos demais continentes. Até aí sabemos. Mas e o resto? Se da Amazônia vem a umidade do Sul de Minas e do Pantanal, de que outras interdependências dependemos, sem que disso façamos a menor ideia? O planeta inteiro é interdependente. Não como na idolátrica tese de “gaia”, em que o planeta seria um ser vivo. O planeta não é um ser vivo, mas é a parte material de uma rede de vida. A interdependência de toda vida é um fato real, assim como a dependência de toda vida em relação ao que não é animado. Esta planta precisa deste solo, deste clima, destes insetos, da presença daquelas doutras plantas, e só assim ela pode vicejar o bastante para que – somando-se todos os indivíduos daquela espécie – ela tenha esta ou aquela influência sobre o clima ou sobre a composição química da atmosfera daquela área, de que, por sua vez, depende o clima em alguma outra.
Mas não. Os bilionários estão ainda mais escondidos do mundo real que os demais citadinos. Estão ainda mais enfiados em um anti-habitat de que foram alijadas todas as espécies “indesejadas” (de mosquitos a pobres). É assim para eles ainda mais fácil delirar acerca de bombas em Marte ou fantásticos charutões interplanetários. A eles juntam-se os seus investidores, que estão um pouquinho menos escondidos do mundo. São, afinal, aqueles que conseguem esquecer-se dos insetos por passarem correndo do carro refrigerado ao elevador idem. E o que fica do lado de fora, no fim das contas, é a vida.
Os habitantes das megalópoles vivem como escafandristas que, lá no fundo do mar, tivessem se esquecido de que têm uma corda e um tubo de ar a ligá-los a um barco lá em cima. Veem-se como autônomos, como independentes, e o barco, e o compressor de ar, e o sujeito a operá-los, tudo isso lhes foge da mente de tal modo que quando pensam neles os consideram intromissões desagradáveis na beleza dos sete mares. É assim que temos uma legislação ambiental que parece querer fazer do mundo vasta floresta polvilhada de megalópoles aqui e ali, presumivelmente a viver de luz. Afinal, plantações são feias, e poços de petróleo medonhos. Fora com eles!
É assim que temos ideias absurdas sobre a transformação dum planeta que ignoramos totalmente – Marte – numa cópia dum que ignoramos quase totalmente, mas que nos vemos empenhados em destruir – a Terra. E é assim que queremos fazer bases lunares, para que o pisoteio constante de nosso satélite traga mais e mais lágrimas aos olhos dos poetas.
Esqueçamos um pouco do que está lá em cima. Deixemos Marte aos marcianos da ficção, com suas duas anteninhas a tremular. Deixemos a Lua aos poetas, e os charutos voadores aos fabricantes de dirigíveis. Olhemos ao nosso derredor, e vejamos o quanto não sabemos. Tentemos diminuir um pouco – ou um muito – a poluição que causamos. Afinal, convenhamos, produzir venenos radioativos invisíveis que farão mal por milênios para o mero propósito de secar a nossa roupa, coisa que o sol faz de graça, é no mínimo um absurdo inominável. Somos custódios de um planeta belíssimo, nem que seja por sermos os únicos habitantes seus capazes de pensar e agir. Se nos despojarmos um pouco que seja da horrenda arrogância iluminista, se deixarmos de agir como filhos estroinas de um milionário falecido, que tratam sua herança como algo a gastar e gastar, talvez possamos viver mais e melhor. Aqui, não no mundo da Lua.
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