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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Município

Estrada de terra no município mineiro de Dom Viçoso.
Estrada de terra no município mineiro de Dom Viçoso. (Foto: Tomás R. M. de Paula/Wikimedia Commons)

O bolsoministro da Economia, que durante a campanha foi até mesmo apelidado de “Posto Ipiranga” por ser, segundo seu chefe, quem sabia de tudo o que diz respeito a finanças, fez mais uma proposta. Vê-se claramente que ele pode entender de finanças, mas nada entende de política (no bom sentido: administração da pólis, da sociedade). Imaginem os senhores que ele quer eliminar os municípios com menos de 5 mil habitantes e cuja arrecadação seja menor que 10% do que gastam.

Ora, o problema não são os municípios. Ao contrário, até: eles são a solução. O problema é como as verbas dos impostos (todos eles: municipais, estaduais e federais) são geridas. Um município receber dez vezes o que arrecada pode ser algo que aconteça em situações emergenciais, não a regra. Mas o problema, mais uma vez, está mal localizado, por uma razão: os impostos estaduais e federais são escorchantes. O município arrecada pouco porque os governos mais altos ficam com a parte do leão (aliás, símbolo da Receita Federal). Isso deixa aos municípios pouquíssima margem de rebolado para conseguir, por exemplo, atrair empresas. Se eles arrecadassem, como seria o correto, a maior parte dos impostos (na medida em que são eles que respondem pelos problemas mais próximos ao cidadão, dos buracos nas ruas à educação fundamental), seria muito mais simples para eles oferecer isenções que atraíssem indústrias, por exemplo, e assim criar novas fontes de arrecadação.

Há muitos municípios do interior em que a prefeitura é o maior empregador. Isso é um absurdo, mas um absurdo comuníssimo gerado justamente pela excessiva centralização fiscal e administrativa do país. As prefeituras, como filhos estroinas, ganham uma mesada polpuda do governo federal, mas ao mesmo tempo são privadas de ter e gerenciar meios locais de arrecadação. O que isso gera é o que vemos por toda parte no interior: prefeituras que viram cabides de emprego, em cidades que não têm meios ou liberdade administrativa para atrair investimentos que gerassem outros empregos.

É nos pequenos municípios do interior, nas vilazinhas, que está o verdadeiro Brasil

O município é a base do país. Na verdade, diria eu mais, é nos pequenos municípios do interior, nas vilazinhas, que está o verdadeiro Brasil. Eu nasci numa megalópole, o Rio de Janeiro. Assim que deu, quando descobri que conseguia ganhar meu próprio pão com o suor do meu rosto, fugi de lá e fui para uma cidadezinha chamada Posse dos Carneiros, no estado do Rio. Não é um município; faz parte, administrativamente, de Petrópolis, que fica longe, muito longe. A distância da Posse ao centro de Petrópolis é a mesma que deste centro à capital do estado. O resultado é que a Posse dos Carneiros é um lugar esquecido. Havia, naquele tempo, um só vereador que a representava (mesmo porque, não havendo voto distrital, todos os candidatos têm de ter votos em todo o município; os votos da Posse, sozinhos, jamais elegeriam alguém). Numa dessas eleições, para não bater de frente com nenhum dos dois candidatos a prefeito, ele se filiou a um partideco, uma legenda de aluguel dessas que pululam na nossa doentia política eleitoral. O resultado é que, por causa do hediondo voto de legenda, mesmo tendo sido o vereador mais votado em todo o município, ele não levou a vaga.

Também morei no município ao lado. Na verdade, sempre digo que o melhor para a Posse seria unir-se a ele, mesmo porque ambos são conurbados; do centro da Posse ao centro de Areal (que se emancipou de Três Rios enquanto eu lá morava), é uma casa ao lado da outra, sem interrupção. Areal tem, também, coisa de 3 mil habitantes. Mas é um município rico, porque ao emancipar-se levou consigo uma grande indústria. Por ser assim pequeno, todavia, sua administração está sempre próxima do povo. Para que se tenha uma ideia, uma prima de minha esposa foi eleita vereadora com 199 votos, o que lhe valeu na família (pelas costas, claro) a carinhosa alcunha de “vereadora de um e noventa e nove”.

Hoje moro no interior de Minas. Para ser mais exato, moro na estrada que vai dar num dos municípios que o bolsoministro quer ver extintos: Dom Viçoso. Até há pouco tempo, coisa de 10 ou 12 anos, Dom Viçoso não era ligado por estrada asfaltada a lugar algum. No tempo das chuvas, ou era fusca ou era jipe. E fica longe, senhores, muito longe. No caminho para lá, todavia, há diversos vilarejos, que em Portugal seriam chamados “póvoas” (lindo nome), com uma centena ou duas de habitantes, uma igrejinha, uma praça, uma mercearia...

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É lindo. É nesses lugares que existe o Brasil de verdade. E são esses lugares que têm mais a perder com a proposta ministerial. Se Dom Viçoso perder o status legal de município, será o distrito mais afastado, e mais esquecido, da cidade a que vier a pertencer. Talvez seja Carmo de Minas, a coisa de 30 quilômetros. Ou São Lourenço, a mais ou menos a mesma distância. Tanto faz. Os 3 mil habitantes de Dom Viçoso jamais conseguirão eleger um vereador, unzinho pra remédio, que os represente. E, com isso, ficarão esquecidos. A estrada ficará tão esburacada que quem por ela trafega sentirá saudades de quando era de terra. Suas escolas não terão professoras (pois os pequenos municípios pagam mais, para atrair profissionais; se o salário for o mesmo da cidade maior mais próxima, ninguém se interessará).

É nos municípios, mormente nos menores municípios do interior, que é possível haver boa administração. A centralização excessiva é um crime que foi sendo feito contra o Brasil desde o tempo do Ato Adicional da Constituição de 1824. Nela tentou-se implantar um saudável municipalismo, que se fosse implantado hoje ajudaria tremendamente o país. Até mesmo o juiz local seria, pela Constituição, um cidadão comum, eleito por seus conterrâneos.

O município, especialmente o pequeno município, é o único lugar em que a política verdadeira acontece, sem que ela se perca em delírios multitudinários, em acusações delirantes na Justiça, em fenômenos de massa que na verdade representam apenas a sede de representação real do povo brasileiro. Um deputado estadual ou federal “representa” tanta gente que, na verdade, não representa ninguém. Um prefeito de megalópole ou um governador de estado estão na mesma situação. Já um vereador de cidade pequena é conhecido de seus conterrâneos, para o bem e para o mal. O prefeito é alguém que anda na rua como todos os demais, que toma café na padaria, que encontra a cada dia seus eleitores e os eleitores de seus opositores no pleito.

Um vereador de cidade pequena é conhecido de seus conterrâneos, para o bem e para o mal. O prefeito é alguém que anda na rua como todos os demais

A política em grande escala deixa de ser política real, deixa de ser verdadeiramente representativa, e se torna uma luta publicitária travada com slogans inanes e fortunas incomensuráveis. Estas, por serem necessárias (afinal, só os gastos de transporte de um candidato a deputado estadual ou federal, ou a governador, são forçosamente absurdos), geram mais e mais corrupção, “caixas dois” (e três, e quatro), e tudo o que há de pior na política nacional. Já no pequeno município, onde todos conhecem a todos, os candidatos são pessoas reais, concorrendo contra outras pessoas reais. Não há slogans publicitários ou, se os há, não são eles que importam. Figuras folclóricas são eleitas, mas são julgadas de acordo com seu desempenho, não pelas outras "n" razões dos votantes em eleições gigantescas.

Em Areal mesmo, por exemplo, tivemos alguns casos absurdos. Um prefeito disse que “com minha fé e suas fezes, construiremos um Areal novo”. O mesmo pafúncio declarou que, sob sua administração, “Areal vai ficar gegê, ‘joinha-joinha’”. É um palhaço? Certamente. Mas o povo pôde acompanhar seu desempenho, que foi surpreendentemente bom, e ele foi reeleito. Já numa eleição multitudinária como nas cidades grandes ou nas eleições proporcionais estaduais e federais, os palhaços que se elegem – Alexandre Frota por alguma razão me vem à cabeça – representam na verdade um voto de protesto contra a falta de representação real, e não mais que isso. Clodovil foi um dos deputados mais votados da história pátria, e parece que afinal foi um bom deputado. Mas ouvi, com estes ouvidos que a terra há de comer, um seu eleitor declarar que “votei no Clodovil porque quero ter certeza de que pelo menos um político está tomando no […]!”.

E é esta a situação dos grandes centros, dos grandes municípios. A política acabou neles, tornou-se mero campo de debate de ideologias vazias ou, pior ainda, de escolhas de males menores. Os candidatos são desconhecidos, assim como os administradores; só o que deles se conhece é uma persona publicitária, mais falsa que nota de três reais. Ninguém chega perto de um prefeito de megalópole. Ninguém sabe o que ele gosta de tomar no café.

O certo seria o contrário: dividir os municípios, levar a administração o mais próximo possível do cidadão, e deixar com eles o grosso do butim dos impostos

A solução para enorme parcela dos problemas administrativos do Brasil seria devolver às instâncias mais próximas do cidadão – especialmente o município, e especialmente o pequeno município – o poder que de direito lhes pertence e foi tomado à força pelas mais altas, na louca centralização que transformou a administração do Brasil num problema insolúvel. Não é possível que seja em Brasília que se trate da construção de uma ponte sobre um riacho em Santana do Deserto ou Pato Branco. Não faz sentido algum que o dinheiro dos munícipes tenha de ir para Brasília para depois voltar, neste trajeto engordando enorme quantidade de funcionários cuja função é apenas estar no caminho do dinheiro.

O certo seria o contrário: dividir os municípios, levar a administração o mais próximo possível do cidadão, e deixar com eles o grosso do butim dos impostos. Não faz sentido que a Posse dos Carneiros esteja subordinada administrativamente a uma prefeitura tão longínqua que não duvido haja nela quem não saiba da existência do distrito. Os municípios deveriam ser divididos, idealmente de forma tal que o número de habitantes de cada um deles jamais passasse dos cinco dígitos. Isto deveria, inclusive, ser feito nas megalópoles, com eleições diretas para os que hoje são subprefeitos, e com a parte maior dos impostos ali coletados indo para essas ex-subprefeituras. No máximo poderia haver uma administração maior para arbitragem entre elas, sem nenhum poder de administração direta. O que não faz sentido é afastar o eleitor do seu representante ao ponto de ser improvável que eles jamais se tenham visto. De o suposto representante ser apenas um personagem visto na tevê.

Isto é necessário para as funções administrativas e representativas de níveis mais altos, como o federal e o estadual, e é exatamente por isso que o poder atualmente nas mãos das administrações estaduais e federal deve ser devolvido a quem de direito: o município. O pequeno município, em que o representante e o representado podem se olhar no olho. Só assim pode haver uma política real e saudável neste país.

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