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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Música ruim

(Foto: Michal Zacharzewski/Free Images)

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Domingo passado uma vizinha, no aprazível vale onde vivo, teve a visita de seu pretendente. O rapaz, provavelmente crendo fazer um favor à vizinhança, deixou aberta a mala do carro, donde uma potentíssima aparelhagem de som (que não duvido tenha custado mais que o carro) emudecia os pássaros, impedia a paz dominical e, mais ainda, servia-me de verdadeiro tour pela música ruim de hoje. Como não ouço rádio, é raríssimo que eu venha a ser submetido ao intenso sofrimento estético de ouvir essas coisas. Mas eis que elas vieram me incomodar em casa, como a versão sonora dum chato que fala alto, cutucando a gente e soltando uma nuvem de perdigotos na nossa cara, atravessando o vale e vindo da encosta oposta instalar-se como um berne sonoro em meus ouvidos.

Sendo o horror sonoro inevitável, o jeito era relaxar e tentar gozar; senão da música, ao menos de seu exame pela razão. O infeliz barulhento tocou, mais ou menos nesta ordem, três tipos de ruídos submusicais: o primeiro estilo era algo que imagino se possa chamar de brega; o tipo de coisa que se espera ouvir numa churrascaria, acompanhada de um teclado tocando “chá-com-pão, chá-com-pão”. Era uma música, no sentido mais lato do termo, que não tinha absolutamente novidade alguma. As sequências harmônicas, o ritmo e a melodia eram a coisa mais simples e evidente que se pudesse cogitar. O tipo de coisa que um sanfoneiro cansado fica repetindo no fim do baile, com progressões evidentes e repetitivas, as mesmas em cada música.

Ruim, sim, claro, muito ruim, além de mal tocado e mal cantado, mas via-se que era algo feito por um músico de verdade, ainda que totalmente desprovido de imaginação e bom gosto e visando antes os caraminguás que lhe pingam na conta que a arte pela arte. Ouvindo os primeiros compassos, qualquer pessoa com uma educação musical mínima já poderia prever exatamente o que viria em seguida para cada um dos instrumentos. Uma pobreza musical que eu nem ousaria chamar de “franciscana”, na medida em que o que o bom santo procurava não era a feiura, sim a liberdade de não se escravizar ao luxo. E aquela música era a mais triste escravidão ao mercado que se pudesse conceber; era como se se houvesse retirado da música a capacidade de produzir enlevo, deixando apenas um feio esqueleto harmônico e uma feia melodia, ambos perfeitamente previsíveis, ambos incapazes de elevar a alma.

Os netos de Paulinho da Viola, os bisnetos de Cartola e Pixinguinha abandonaram a maravilhosa beleza da música feita por seus ancestrais para se entregar a algo que produz ruído, mas não pode mais ser chamado de “música”

Em seguida, a garganta do inferno em forma de traseira de carro velho rebaixado resolveu dobrar a aposta, provavelmente achando que a feiura que infligira a nosso lindo vale não bastava, na medida em que alguns passarinhos ainda voavam, cantavam e comiam frutinhas, como se não se dessem conta da onda de fealdade que enchia o ar. Começou, então, a temível assuada do medonho funk carioca. Enquanto o pauperismo musical anterior chamava a atenção por sua total incapacidade de chamar a atenção, ao ter na previsibilidade sua nota maior, o funk, ao contrário, me pôs a pensar sobre as influências que podem ter assim desgarrado alguém oriundo das mesmas favelas cariocas de onde veio muito da melhor música do Brasil e do mundo.

É a geração dos netos de Paulinho da Viola, dos bisnetos de Cartola e Pixinguinha, que abandonaram a maravilhosa beleza da música feita por seus ancestrais para se entregar a algo que produz ruído, é bem verdade, mas que não pode mais ser chamado de “música”. A voz humana (não consigo considerar que aquilo seja canto, lamento, e a melodia era praticamente inexistente) que se sobrepunha a uma percussão eletrônica gravíssima, que a centenas de metros ainda se sente no estômago, dedicava-se aos melismas glissantes mais acrobáticos, sem contudo parar numa nota tempo o bastante para que se pudesse supor uma melodia glissante. Disso, passava a saltos sem sentido musical, subindo e descendo quartas, terças, quintas, o que conseguisse achar de mais feio. Em suma, era algo completamente impossível de assoviar, e que tocado num instrumento seria de apavorar.

Comentei com meu filho que aquilo estava tão distante da tradição musical ocidental quanto algum tipo de música asiática desconhecida. É isto, na verdade, que mais me espantou: como pôde acontecer que em tão pouco tempo, em duas ou três gerações no máximo, a favela carioca tenha passado da elaboração de melodias e harmonias belíssimas, de extrema complexidade e, mais ainda, perfeitamente inseridas no cânon ocidental, à produção de algo tão alucinadamente distante deste mesmo cânon?! Notem que nem estou falando do feiume da coisa, sim da sua distância em relação à excelente música que sempre viera do mesmo lugar. É exatamente como se fosse alguma modalidade musical desenvolvida em um lugar estranho a todas as conquistas artísticas de nossa sociedade. O canto tribal de algum país com o nome acabando em “istão”.

As escalas que usamos, os intervalos que reconhecemos na nossa música, vêm todos de relações numéricas estabelecidas desde a Antiguidade. Até mesmo as músicas africanas tradicionais (que costumo apreciar), bem como as do Oriente Médio, obedecem a mais ou menos os mesmos parâmetros, que alguns teóricos vão ao ponto de afirmar fazerem parte da natureza humana. Já a estética musical do Extremo Oriente, por outro lado, soa-nos decididamente exótica, mesmo quando mais ou menos torcida na direção do que o ouvido ocidental costuma apreciar. Para um ocidental “normal”, a música tradicional da China ou do Japão parece uma sequência de dissonâncias propositais, sem pé nem cabeça. E é exatamente esta sensação de estranheza absoluta que me causam as acrobacias vocais do funk. Como foi possível estabelecer tamanha distância estética, em tão pouco tempo? Será por ter sido negado de alguma forma aos moradores das favelas do Rio o acesso à herança civilizacional que lhes pertence tanto quanto aos habitantes dos bairros mais ricos?

Parece-me possível que uma das fontes dessa reconstrução absoluta do que signifique “música” efetuada no funk possa ser a “música de crente”, por sua vez uma versão empobrecida e distorcida do gospel americano. Este é uma tradição musical riquíssima; no Brasil, contudo, por alguma razão, mesmo nos sendo culturalmente possível enriquecer o gospel original (melódica, rítmica e harmonicamente muito mais pobres que qualquer música brasileira de até 50 anos atrás), o processo foi oposto. Quando se entra numa loja cujos proprietários ou vendedores pertençam a alguma seita pentecostal, o que em geral se ouve, em tempo integral, é uma espécie de miado de gato melismático, com uma “cama” de teclados, emitido por uma voz feminina poderosíssima, com uma letra que promete ao ouvinte mundos e fundos a serem doados por uma divindade materialista.

É uma dessas modalidades paupérrimas e péssimas de música que, como o brega que me forçaram a ouvir antes do funk, serve apenas de suporte para uma letra que – por pior que seja do ponto de vista poético – enuncia algo que o ouvinte quer ouvir. Em outras palavras, já se percebe na música de crente um forte processo de dissolução da tradição brasileira de qualidade musical, no sentido oposto ao que aconteceu com o samba, que ao se unir ao jazz enriqueceu a ambos na forma da bossa-nova. A música de crente brasileira parece surgir de uma mistura do gospel americano com um grande vazio de qualidade, coisa muito estranha quando se pensa que estamos num país com tamanha tradição de riqueza musical. Será que isso aconteceu por os primeiros crentes a produzir este tipo de música quererem fugir duma herança de boa música brasileira, que veriam como “música do mundo”, ao contrário dos originais norte-americanos, que sempre tiveram forte polinização cruzada com o que acontecia nas modalidades musicais “profanas” derivadas do gospel: o blues, o rock e o jazz, além de vários outros estilos mais laterais (rhythm and blues, country, western, bluegrass...)?

A música de crente brasileira parece surgir de uma mistura do gospel americano com um grande vazio de qualidade

Realmente não sei. Mas a música de crente é indubitavelmente péssima, tanto em relação ao original americano em que supostamente se espelha quanto em relação à música “mundana” brasileira tradicional, como o samba, o choro, o forro de pé de serra, os fandangos, e o que mais for. E – numa das poucas coisas herdadas do gospel americano que se mantiveram na sua abominável versão brasileira – é um estilo musical em que o melisma é tão constante que um simples “aleluia” pode durar tanto ou mais que um “aleluia” de canto gregoriano, mas – e aí estaria talvez a ponte para o funk – sempre glissando, jamais chegando diretamente à próxima nota. Criou-se assim, a partir desta mescla de um excelente tipo de música americana com um vazio que não entendo de onde veio, um tipo de pseudomúsica que só pode agradar a quem precise muito ouvir repetido ao longo de todo o dia, de toda a semana e de todo o mês que a “vitória” (entendida em geral da maneira mais crassa e materialista possível) lhe estaria de alguma forma assegurada.

Parece, então, que algum fenômeno criou um gigantesco vazio musical nas favelas, de onde primeiro, unindo o vazio a uma forma de boa música, chegou-se à música de crente brasileira e depois, unindo-se o vazio a uma forma de má música (o “Miami Bass” americano, antepassado mais direto do funk carioca), produziu-se, e se produz ainda, algo tão absolutamente distinto de tudo o que herdamos de milênios de cultura que mais parece o fruto de alguma sociedade oriental desconhecida que algo produzido por gente com tão pouca separação temporal e nenhuma separação geográfica de compositores estupendos, merecedores de um lugar de honra no panteão da música ocidental.

Mas de onde terá vindo este vazio, esta antimúsica, esta negação de tudo o que foi recebido (“traditus”, em latim; daí “tradição”) de geração em geração, de Pitágoras até agora, passando por Bach, Beethoven e Pixinguinha?! Será possível que isto tenha ocorrido apenas pela negação da difusão por rádio e tevê de músicas mais consoantes à tradição ocidental? Não me parece ser o caso, mesmo porque a Globo (sinônimo de tevê no Brasil) só veio a abraçar entusiasticamente a antimúsica quando ela já fazia sucesso nos bailes.

Há apenas 32 anos – uma geração e meia – Ed Motta cantava que Manuel “gostava de música americana, ia pro baile dançar todo fim de semana [...]. Ouvia no seu rádio calcinha e sutiã [alusão ao funk Kátia Flávia, de Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros, sucesso no ano imediatamente anterior]; no rádio era um funk”. E era realmente um funk, como os de James Brown ou mesmo, para ficarmos por aqui, do tio de Ed Motta, o grande Tim Maia, da mesma espécie de gordos dragões canoros que tanto bem nos fazem aos ouvidos. Uma música caracterizada pelos naipes de metais e percussão fortemente sincopada, fruto da mistura da música caribenha (que retivera a tradição percussiva africana) com o gospel americano, desprovido de percussão por os negros americanos escravizados terem sido proibidos de bater tambor pelos escravagistas, que viam nos tambores meios de comunicação a distância que facilitariam possíveis revoltas de pessoas reduzidas à escravidão. Coisa com uma história admirável no Brasil, com grandes nomes como Cassiano, Gerson King Combo e o próprio Tim Maia.

Onde isso foi parar? Onde ocorreu a mudança e, mais ainda, o que a fez surgir? Sete anos depois de Manuel e seu funk ouvido no rádio – um átimo, em termos culturais – começou “oficialmente” o funk carioca, com o Melô da Mulher Feia, versão horrenda de uma pseudomúsica ainda mais horrenda de origem americana, mas ainda com melodias reconhecivelmente ocidentais. Dali, todavia, passou-se à simples desafinação presente em horrores como o Rap das Armas, tornado famoso pelo filme Tropa de Elite. Reinou então por um tempo a desafinação completa, com letras gritadas sobre bases de percussão gravadas, abrindo completo espaço à antimúsica.

Surgiu então no mercado a possibilidade de afinação eletrônica da voz humana, que por sua vez levou ao surgimento de funks em que o berreiro era bizarramente afinado de forma deliberadamente artificial, levando a pulos em intervalos imprevisíveis, gerados pela tentativa dos programas de computador de inserir em uma escala ocidental os urros de funkeiros completamente desafinados. Enquanto isso Pixinguinha chorava na cova. Daí os ouvidos foram estuprados ao ponto de aceitar-se, mais tarde, que os tais pulos se tornassem propositais, afastando-se completamente do cânone musical ocidental, introduzindo microtonalidades à moda indiana emitidas de forma proposital, alternadas com saltos antimelódicos que tentam imitar os efeitos antinaturais da afinação eletrônica. E pronto: surgiu a antimúsica por excelência, o funk carioca.

Quando a “surra de bunda” é considerada uma forma de “empoderamento” feminino, sabemos que todas as conquistas da Civilização já foram para o lixo

Mas persiste a questão: como foi possível que em tão curto espaço de tempo e sem qualquer distanciamento geográfico fossem jogadas fora todas as riquezas da tradição musical ocidental, mormente brasileira, que sempre soubera receber e enriquecer a música estrangeira, desde o tempo em que das polcas fazíamos choros?! Como puderam surgir abominações antimusicais como a música de crente e o funk carioca?!

O pretendente de minha pobre vizinha, todavia, não quis parar por aí, e emendou, numa espécie de grand finale, uma sequência da outra modalidade-mor de antimúsica, que disputa território com o funk carioca Brasil afora: o dito sertanejo universitário, que está para o sertanejo original, de Tonico e Tinoco e outras duplas, como o funk carioca está para o poderoso funk de Tim Maia. O que mais chama a atenção nesta modalidade de antimúsica é a ausência praticamente completa de uma melodia. Tal como a música de crente, trata-se de recitação de uma letra, não de música propriamente dita. É raríssimo no sertanejo universitário, todavia, que haja qualquer tipo de modulação vocal, ao contrário dos melismas glissantes da música de crente. Ao contrário; perto dele o “samba de uma nota só” é uma saltitante melodia de Tchaikovsky. A dupla de supostos cantores urra a letra do princípio ao fim da música, fazendo tamanho esforço que se pode ver as veias do pescoço saltando, sem jamais subir ou descer meio tom que seja. Até mesmo a preocupação tradicional da música caipira de que as duplas cantassem em um intervalo de terça desaparece completamente, sendo tão ou mais frequente o urro uníssono que o urro em terças.

Ao contrário da música de crente, que literalmente promete ao ouvinte mundos e fundos oriundos das mãos dadivosas de uma divindade imanente, no sertanejo universitário o universo parece composto de bebedeiras, paqueras e traições, com a imanência suprema já presente na música de crente transformada em escravização pelas pulsões mais baixas e primitivas. Aliás, nisso há muito em comum com o funk, ainda que este tenha letras que se espalham por várias subespecialidades da imanência. Ao contrário do funk, todavia, no tal sertanejo universitário há uma banda de verdade, com pobres músicos que passaram a infância e adolescência estudando horas por dia para ver-se depois sujeitos a servir de ruído de fundo para uma dupla urrar imbecilidades acerca dos aspectos mais fúteis da vida.

Estes últimos dois estilos de antimúsica – o funk carioca e o sertanejo universitário –, assim, parecem (junto com a música de crente, que em geral tem uma relação de alternância com estes estilos, sociologicamente falando, em que quem ouve música de crente finge não ouvir nem funk nem sertanejo universitário) frutos de um buraco negro em que foi destruída a herança estética musical herdada de todas as gerações anteriores. Enquanto Cartola, por exemplo, chorava no belíssimo samba O Mundo é um Moinho o discurso amoroso e preocupado de um pai para a filha que queria se entregar à prostituição, tanto no funk quanto no sertanejo atuais a atitude em relação à escolha da moça seria de aprovação entusiástica. Não se trata apenas da perda de senso estético musical, mas também de senso moral, de percepção do valor do autocontrole, e por aí vai. Quando a “surra de bunda” é considerada uma forma de “empoderamento” feminino, sabemos que todas as conquistas da Civilização já foram para o lixo, e que estamos nos estágios derradeiros da decadência civilizacional. Que mundo deixaremos para nossos netos?

Se o que passa por música for um indício – e o é –, não será um bom lugar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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