O ministro das Relações Exteriores provocou outro escândalo entre os bem-pensantes ao declarar e reiterar que o nazismo seria uma ideologia de esquerda. A esquerda, como quem recebe uma batata quente, jogou imediatamente longe o indesejado presente verbal. “É de direita!”, asseveraram, furiosos: “Toma, que o filho é seu”. Afinal, e as suásticas que apareceram durante a campanha eleitoral para mostrar que a esquerda já identificava a direita bolsonarista com o nazismo? Mas o ministro reiterou o que dissera, e, claro, ferveram as famosas redes sociais.
Coloca-se então a questão: seria o nazismo uma ideologia de direita ou de direita? Que é (ou era, pois felizmente não existe mais) uma ideologia, creio que estejam todos de acordo em afirmar. Ideologias são uma forma de loucura peculiar ao Século 20, ainda que em algumas instâncias algumas tenham – por uma espécie de antimilagre satânico – sobrevivido nestas duas primeiras décadas do século seguinte. Dentre elas, evidentemente, não se conta o nazismo. Neonazistas são menos nazistas que os participantes do tradicional bloco carnavalesco carioca Caciques de Ramos são comandantes de tribos de silvícolas. A ideologia nazista simplesmente não se sustenta sem ser um fenômeno de massa, ao contrário da comunista, cuja forma mais gnóstica permite sua sobrevivência com a mera iniciação de alguns poucos milhares de estudantes de Humanas a cada semestre. Cada um deles, tadinho, acredita firmemente ter recebido uma Verdade oculta imortal e uma lente perfeita pela qual ver, julgar e condenar o mundo e todos os não-comunistas que o infectam. É uma espécie de rosacrucianismo mais assassino.
Mas e o nazismo, esse horror que surgiu e se encerrou no século passado, essa porta para o Inferno aberta na Alemanha de Bach e Beethoven? Este foi uma ideologia sui generis; enquanto as demais dedicavam-se basicamente a decidir como montar o mais perfeito paraíso na terra, o nazismo era fundamentalmente negativo: ele era contra o capitalismo, contra o comunismo, contra – principalmente – os pobres dos judeus, que considerava a origem de todos os males, especialmente o capitalismo e o comunismo, e por aí vai. A favor eles eram da expansão do “espaço vital” (leia-se território; toda besteira ideológica acaba sempre sendo um odre novo para um vinho, ou melhor, um vinagre, antiquíssimo), do domínio da suposta raça superior ariana sobre todos os demais, especialmente eslavos (que, coincidentemente, ocupavam o território que eles ambicionavam, junto com os judeus. Quem diria, hein?).
Na verdade, se examinarmos com mais atenção o fenômeno nazista, ele foi muito mais um programa de coach para a Alemanha (havia sido derrotada na Primeira Guerra Mundial) que uma ideologia no sentido estrito, como o capitalismo (que prega que o mercado resolve tudo; não se confunda, por favor, esta afirmativa ideológica com a defesa da existência de um mercado, que é totalmente outra coisa, como uma coisa é Freud e outra fazer nenéns) ou o comunismo, com suas visões de uma utopia futura, onde tudo seria lindo e perfeito devido ao inexorável sucesso de sua proposta de conformação da sociedade. O pai do nazismo, o fascismo (que por vezes se confunde, falando de nazifascismo, o que não faz tanto sentido assim sociologicamente falando, sendo mais uma descrição de uma aliança europeia que uma classificação rigorosa), também é uma ideologia, que seu criador, Mussolini, resumiu em “Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”.
Mantendo em mente duas coisas cruciais – que Mussolini era meio maluco, para não dizer doido de pedra; e que ele sempre fora um militante socialista antes de buscar atender ao público militar e católico, coisa que tentou fazer com o fascismo – podemos tentar perceber as características ideológicas herdadas do fascismo pelo nazismo.
A primeira delas é o totalitarismo, e a segunda – que depende da primeira – é a ideia de um Estado que não só é todo-poderoso, como também se concentra, por assim dizer, na pessoa de um líder. Mussolini fazia-se chamar Duce, “líder” (é a mesma origem da nossa palavra conduzir); Hitler era o führer dos alemães, palavra que significa exatamente a mesma coisa. Assim, para ambos o chefão, o psicopata-em-chefe, era a encarnação de um Estado que, por sua vez, controlaria ou deveria controlar absolutamente todo e qualquer aspecto da vida de seus cidadãos. Não é estranho que o psicopata que assassinou uma multidão na Nova Zelândia, que se afirma fascista, tenha expressado admiração pelo atual governo chinês. Afinal, o nível de controle dos cidadãos pelo Estado chinês alcança níveis inimagináveis (já escrevi a respeito nesta mesma coluna, aliás), que certamente Mussolini ou Hitler dariam o braço direito para alcançar.
Na China, cabe lembrar, quem manda é o Partido Comunista. Este ponto ideológico – o controle absoluto dos cidadãos pelo Estado – é comum tanto ao fascismo quanto ao nazismo e ao comunismo. Stálin ou Pol Pot assinariam felizes embaixo da frase de Mussolini que citei mais acima.
A diferença maior entre fascismo e nazismo surge justamente, aliás, num corolário desta afirmação. Se todos os cidadãos devem perfeita e completa obediência ao Estado, ao ponto de não ser possível sequer aceitar algo fora do Estado, o que é muito diferente de contra o Estado (isso nenhum Estado aceita. Duvida? Recuse-se então a pagar seus impostos), surge a questão de a quem pertenceria, em tese, este Estado todo-poderoso. De onde vem tanto poder? Já havia tombado, felizmente, a medonha ideia do direito divino dos reis. Todo poder já pertenceria ao povo e por ele deveria ser exercido. Mas quem era este povo? Para Mussolini, a ideia era vaga. Era basicamente um amálgama da ideia nacionalista italiana (lembremos que a Itália era uma novidade absoluta; no tempo de Mussolini ainda vivia muita gente que se lembrava de quando Roma pertencia ao Papa, não à Itália) com uma releitura delirante das grandezas da Roma antiga. A saudação hoje vista como nazifascista, por exemplo, era o equivalente da continência militar atual na Roma antiga, ressuscitada por Mussolini para se fazer um César.
Já para Hitler, a ideia era bem mais clara: o povo era o Volks alemão, a raça nórdica pura, à qual (e aí começa a confusão mental anda mais grave) pertenceriam também os escandinavos e os ingleses, que descendem em sua maioria de migrantes da Saxônia, no Norte alemão. Isso fez com que os nazistas desenvolvessem técnicas em muito semelhantes às hoje infelizmente populares para “averiguação racial” em cotistas universitários brasileiros, medindo narizes, beiços, testas, cores de pele, cachos de cabelo e todo tipo de besteira fenotípica que, na mente do racista, identificariam o pertencimento (ou não) de uma pessoa uma dada “raça” ou povo. Judeus, evidentemente, não faziam parte do glorioso Volks, assim como eslavos, ciganos e outros indesejáveis.
Este povo alemão, na visão nazista, prosperaria na guerra e no frio. É por isso, aliás, que os soldados alemães foram derrotados pelo poderoso General Inverno ao tentar invadir a Rússia, como Napoleão o fora anteriormente; devido a sua crença numa capacidade maior dos “nórdicos” alemães de resistir ao frio, Hitler não dotou seus soldados de casacos suficientemente quentes.
A terceira característica do fascismo herdada pelo nazismo é que neles o nacionalismo extremo tem uma expressão fundamentalmente militar. Há quem diga que o fascismo é fundamentalmente uma estética, sem estar de todo errado. A estética fascista é extremamente distintiva, e sem dúvida faz parte de seu ser. No fascismo e no nazismo, as formas geométricas arrojadas, numa espécie de Art Déco de cocainômanos, faziam parte integrante da mesma forma de propaganda de que os desfiles militares e paramilitares eram parte integrante e importantíssima. As fardas das SS, a tropa de elite de Hitler, foram desenhadas por Hugo Boss. A genial cineasta Leni Riefenstahl foi contratada por Hitler para fazer filmes homenageando o nazismo, que até hoje são impactantes.
Era gigantesco o contraste entre os nazistas, bem-vestidos e com cara de que haviam acabado de tomar banho, e os comunistas, com suas roupas amarrotadas e feias, numa estética “proletária” que só funciona com quem jamais tenha visto um pobre sem uniforme, e isto levou, em grande medida, à imensa aceitação popular do fascismo e do nazismo. Estava tudo uma bagunça, e só poderia botar ordem na casa quem tivesse primeiro dado jeito em si mesmo, fazendo-se limpo, organizado, marchando a passo de ganso perfeito e expressando-se virilmente. Pelo menos este era o discurso de vendas ideológico, que infelizmente funcionou extremamente bem. É curioso observar que muitos percebem essa estética como sendo nitidamente homossexual, mas de um subgrupo específico dos que preferem o mesmo sexo: aqueles que procuram mostrar-se hiperviris e desprezam travestis e afeminados. O líder máximo das SA – a primeira tropa de elite nazista, sobrepujada pelas SS na dita Noite das Longas Facas, quando foi assassinada toda a sua liderança – era Ernst Röhm, homossexual assumido, que foi morto na cama com seu companheiro e motorista. Os assassinatos em massa de travestis e afeminados, levados para os mesmos campos de extermínio aonde foram encaminhados judeus, testemunhas de jeová, ciganos e comunistas, enquadra-se ainda perfeitamente nesta visão.
Tendo visto em grandes linhas o que foi o nazismo, em termos ideológicos, podemos finalmente chegar mais perto da questão que suscitou este artigo: se foi uma ideologia esquerdista ou direitista. Isto nos coloca, todavia, um outro problema: precisamos definir o que é esquerda e o que é direita. Afinal, não falta quem diga, por exemplo, que a ditadura de Maduro, que ora oprime os venezuelanos, é de direita. Outros dizem que Marine Le Pen é esquerdista. E por aí vai. Nesta pós-modernidade, tudo o que é sólido desmancha no ar. Mas tentemos esclarecer um pouco as coisas.
O que são, então, estes termos? Qual é o seu sentido? Eles surgiram no seio da Assembleia pós-revolucionária francesa, referindo-se inicialmente às facções mais e menos radicais nas transformações que visavam impor àqueles que dominavam, de acordo com o lugar em que se sentavam seus representantes. A esquerda queria ir mais longe nas transformações, enquanto a direita procurava preservar mais da situação anterior. Daí a confusão que se faz ainda hoje, quando se chama a esquerda de “progressista” e a direita de “conservadora”, e vice versa. Conservadorismo não é direitismo, e progressismo não é necessariamente esquerdismo.
A primeira coisa a perceber é que ambos os termos já nascem dentro de um contexto moderno, portanto ideológico (no sentido de tentar construir uma sociedade perfeita na terra, o delírio característico da modernidade). Assim, a ideia conservadora de que uma sociedade é feita de baixo para cima, pela organização espontânea de famílias, vizinhanças, grupos de interesse específico (profissional, esportivo, o que for) e outros agrupamentos, é alheia a ambas as noções. Tanto esquerda quanto direita são características do pensamento ideológico, o que faz com que cada uma tenha a sua utopia. Do mesmo modo, a crença em um progresso, e mesmo a ação em busca dele (por exemplo, pela organização de grupos autônomos e espontâneos que reúnam pessoas com um determinado interesse, com o objetivo de favorecê-lo), não implica necessariamente em pertencimento à esquerda, e vice-versa. Assim, é perfeitamente possível que se seja progressista, conservador, reacionário, etc., sem que com isso se tenha uma adesão de tipo ideológico.
A questão então passa para outro plano, tendo já estabelecido que esquerda e direita são formas ideológicas: quais são as características das ideologias de esquerda e de direita? É aí que começa de fato a confusão.
Muitos preferem usar como métrica a organização econômica das sociedades utópicas (comunismo, anarcocapitalismo) ou provisórias (socialismo, Estado mínimo). Faz sentido, na medida em que muitos pensamentos ideológicos, dentre eles especialmente os de inspiração marxista e capitalista, veem a questão econômica como a principal. Para Marx, o que define o capitalismo é a propriedade particular dos meios de produção econômicos (fábricas, carrocinhas de pipoca, etc.), e o comunismo a sua propriedade comum. Já para Adam Smith, o que gera a riqueza das nações é a busca individual por cada cidadão do próprio bem material. Vê-se que para ambos importa principalmente o homo oeconomicus, o homem enquanto participante da economia. O pouco que eles têm a dizer de dimensões infinitamente mais importantes do ser humano, como a espiritual, a amorosa, etc., é em geral besteira da grossa.
Vista por este prisma, a diferença entre esquerda e direita é fundamentalmente a da propriedade e do controle sobre os meios de produção econômicos: a ideologia é de esquerda se na sua prática e/ou teoria utópica a sua propriedade é comum (o que na etapa socialista, vista como necessária e preparatória ao comunismo utópico, significaria que a propriedade seria do Estado, como foi o caso em todos países onde houve aplicação prática do marxismo), e de direita se a propriedade é particular. Quando, então, lembramo-nos do lema mussolinista de que o Estado – na pessoa do seu Líder – a tudo deve controlar, completamente adotado por Hitler, faz sentido chamar o nazismo de uma ideologia esquerdista. A questão, veja-se bem, não é que o partido nazista se chamasse “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”. Não é nem por ser “Partido dos Trabalhadores” nem por ser “Partido Socialista” que se o colocaria na esquerda, sim por sua posição em relação ao controle efetivo dos meios de produção.
Por que falo de “controle efetivo”, não simplesmente de “propriedade”? Basicamente porque no nazismo, ao contrário de no socialismo real soviético, por exemplo, persistia uma ficção de propriedade. As fábricas Krupp continuavam sendo nominalmente propriedade da família Krupp. O mesmo ocorria com a Mercedes, e por aí vai. A padaria da esquina continuava sendo do padeiro, ao contrário do que acontecia na União Soviética, em que os donos anteriores dos meios de produção foram assassinados, com a posse, a propriedade legal e o controle de suas antigas propriedades passando diretamente às mãos do Estado. No nazismo, o padeiro era dono de sua padaria, mas só podia contratar quem o Estado mandasse, pelo salário que o Estado determinasse; teria que vender aquele tipo de pão, por aquele preço, naquele horário. O Estado mandava nele, efetivamente controlando os meios de produção que em tese ainda lhe pertenceriam. E por aí vai. É interessante observar que a legislação trabalhista brasileira, que amarra tremendamente (ainda que bem menos que no nazismo) os empregadores, foi inspirada na Carta do Trabalho de Mussolini.
Este controle da economia efetuado pelo nazismo o colocaria, assim, firmemente no campo da esquerda se tomarmos como referencial a questão do controle econômico da sociedade e da propriedade (e posse, e controle efetivo) dos meios de produção. Esta é a forma de diferenciação empregada pelo ministro. Nela o nazismo não estaria tão à esquerda quanto o socialismo stalinista, por exemplo, mas certamente estaria firmemente plantado com as duas botas sujas de sangue no lado da esquerda.
Na verdade, o sistema nazifascista de controle da economia é extremamente semelhante ao que foi feito no Brasil pelos desgovernos petistas, em que foi incentivada a criação de monopólios, ou quase-monopólios, para que o Estado pudesse controlar mais facilmente duas redes de supermercados que milhares de mercadinhos, meia-dúzia de bancos que uma multidão deles, etc. É ainda o que está sendo feito, com grande sucesso se se usam os marcadores que interessam a seus responsáveis, na China comunista. O governo mais próximo ao nazifascismo que existe, do ponto de vista do controle da economia, é o do Partido Comunista Chinês. E depois eu digo que é complicado e nêgo não me leva a sério.
Mas não é este o único critério. Afinal, na Assembleia Nacional revolucionária francesa ninguém ligava tanto para essa questão de meios de produção, e mesmo assim eles se dividiram em dois campos, dando origem a uma confusão que até hoje perdura. É comum nos meios esquerdistas que a divisão entre esquerda e direita seja feita a partir de uma régua, por assim dizer, futurista. Isto se explica facilmente pelo fato de que a doutrina marxista percebe-se como uma espécie de “lei natural” da História. Assim como dois corpos se atraem na razão direta de suas massas e na inversa do quadrado de sua distância, para o marxista a cada forma de opressão surge um adversário, que a sobrepuja, criando uma terceira forma, já mais próxima do ideal utópico, levantando-se então contra aquela outra modalidade de opressão uma outra antítese, numa valsinha que levaria inexoravelmente ao paraíso terrestre, à “Terra sem males” da Teologia da Libertação.
Assim, o marxista pretende identificar em cada forma de governo, em cada situação específica, uma dualidade de opressão em que um grupo normalmente minoritário controla indevidamente um grupo majoritário. Espera ele então que este se levante contra aquele. Neste critério, o que definiria esquerda e direita seria quem estaria, naquela sociedade, naquele regime, “do lado do futuro”. Para o marxista, não é verdade que o futuro a Deus pertence; para ele, o futuro pertence ao oprimido. Destarte, é comum que o esquerdista procure, como parâmetros para saber se “o futuro está com” um governo, situações concretas de opressão (individuais, coletivas ou governamentais) e sua relação com a efetividade das formas empregadas pelo Estado de garantir à população uma vida relativamente confortável para os parâmetros locais. Por esta régua, salta aos olhos do marxista, por definição universalista, o nacionalismo extremado e militarizado do nazismo.
Ser nacionalista, para o marxista atual, implica necessariamente em ser direitista, na medida em que o “futuro” seria inexoravelmente internacional. O direitista seria quem luta contra este futuro, e por isso simplesmente não faria sentido classificar como esquerdista um sistema em que, apesar de o Estado controlar os meios de produção indiretamente, haver direitos trabalhistas, etc., tudo isto está colocado a serviço de uma nação apenas. Evidentemente, as situações extremamente reais e efetivas de opressão por parte do nazismo de comunistas, judeus, ciganos, travestis e outras categorias de cidadãos considerados “menos alemães” ou mesmo “antialemães” pelo nazismo só pioraria a sua situação, firmando-o completamente no campo da direita. Esta é a visão que orienta a maior parte das reações indignadas contra as declarações do ministro.
Além destas haveria ainda inúmeras outras, como a de considerar de direita um sistema de governo em que haja uma maior “liberdade” (no sentido de ausência de imposições externas) de ação pessoal (uso de drogas, aborto, formas exuberantes de sexualidade, etc.); é a que usam muitos dos chamados libertários. Por este prisma, o nazismo, com seu controle absoluto do Estado sobre a vida das pessoas, pioneirismo no antitabagismo, intolerância do travestismo e outras formas de negação de uma “liberdade” individual tida como absoluta, estaria firmemente plantado na esquerda.
Também se pode medir o que é direita e o que é esquerda a partir de algumas formas de marxismo desconstrucionista pós-modernas, pelo modo como aquele sistema lida com a família patriarcal. Os sistemas que a apoiassem estariam na direita, enquanto que os que a negassem à esquerda. Por este critério, o nazismo seria indubitavelmente de esquerda, pelo seu incentivo à promiscuidade sexual e ao sexo extramatrimonial entre os “arianos puros”. O governo nazista incentivava as moças “arianas” a terem relações sexuais com os rapazes igualmente “de raça pura”, chegando a dar-lhes pensões para ajudá-las a criar os filhos tidos fora do casamento e proibindo sua vilificação, numa forma de desconstrução da família que, mais tarde, revelou-se extremamente eficaz em alguns países do dito Primeiro Mundo.
Seria ainda possível traçar a linha entre esquerda e direita no seu modo de tratar a questão ambiental, especialmente num momento em que governos tidos como de direita por praticamente todos – como o americano e o brasileiro – são acusados de ignorar uma crise ambiental em curso. Por este modo de ver a questão, o nazismo também estaria firmemente na esquerda, por ter sido o pioneiro nas ações de preservação de florestas, replantio e outras práticas hoje tidas por quase todos como excelentes. Isto ocorria devido à ligação do nazismo como uma releitura gnóstica das religiões pré-cristãs da região, que em sua maioria baseavam-se no culto a árvores gigantescas (muitas das quais foram cortadas por evangelizadores cristãos, posteriormente canonizados) e, por extensão, a florestas em geral. A Juventude Hitlerista fazia acampamentos selvagens, organizava ações de preservação e outras medidas do gênero, como forma de estabelecer desde cedo uma ligação entre um suposto sangue alemão e a (inegável) beleza natural das florestas da região. Seria fazer a coisa certa pela razão errada, mas para o marxista isto não deveria jamais ser um problema.
Finalmente (eu poderia continuar isso ad aeternum), poderíamos traçar a divisão entre direita e esquerda pelo apego à noção de ordem. Para muitos, a direita é o campo que coloca a ordem social acima da expressão individual ou grupal (por exemplo, combatendo a prostituição, as manifestações disruptivas, etc.), enquanto a esquerda seria o campo que prefere a liberdade a uma ordem social percebida com opressora. Por este ponto de vista, o nazismo estaria completamente plantado na direita. A cultura alemã já é uma cultura que preza a ordem acima de quase tudo; o nazismo só fez exacerbar este traço ao importar da Itália fascista, em que Mussolini orgulhava-se de ter feito os trens saírem no horário certo, a noção da importância de que se tenha um mecanismo social regulado e previsível.
Vê-se assim que na verdade a questão de se o nazismo é de esquerda ou de direita é na verdade uma falsa questão, na medida em que a dicotomia esquerda-direita pode assumir inúmeras formas e o nazismo é o bebê com as fraldas cheias que ninguém quer segurar. A direita adota razões pertinentes (mormente o raciocínio a partir da economia) para acusar o nazismo de ser esquerdista, enquanto a esquerda adota razões igualmente dotadas de sentido dentro de um quadro próprio de referência para acusá-lo de direitista. Na verdade, ambos estão usando o nazismo como acusação ao adversário. Se o nazismo for de esquerda, é o esquerdista que está a uma piscada de ser um nazista fétido e merecedor de boas bolachas; se o nazismo for de direita, é o direitista que está nesta mesma péssima posição.
Sabemos perfeitamente bem o que foi o nazismo, pelo simples fato de ele ter surgido, rugido e sido vencido, felizmente. É muito mais difícil, por exemplo, definir comunismo ou socialismo, na medida em que, como uma hidra, a cada cabeça sua que se corta surgem outras. Se se aponta Pol Pot como comunista, sempre haverá alguém para dizer que ele não o foi. São poucos os que têm a cara de pau de apoiar o reizinho da Coreia do Norte, por exemplo, ainda que muitos sintam-se perfeitamente à vontade para cantar os louvores da família Castro. Do mesmo modo, há na esquerda quem chame de capitalista até o sistema feudal. Já Hitler, já o nazismo, já até mesmo – ainda que por associação e por incompetência extrema – Mussolini têm o seu lugar certo e garantido na lata de lixo da História, no lugar onde guardamos certas péssimas experiências cuja única coisa boa é a chance que nos dão de dizer nunca mais.
Assim, à questão de se o nazismo é de esquerda ou de direita, respondo sem que tema errar: o nazismo é de Satanás.
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