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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Neocalvinismo secular

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Já escrevi aqui várias vezes, ao longo destes mais de sete felizes anos em que tenho o privilégio deste espaço, sobre o perigo da importação da cultura política americana, efetuada principalmente pela esquerda (fartamente financiada pela Fundação Ford, por George Soros e demais forças contra as quais ela mesma se levantava no tempo dos militares, hoje alinhadas com a esquerda gringa) e, num distante segundo lugar, pela “nova direita” que se levantou principalmente em resposta à esquerda atual e acabou, ela também, infelizmente importando táticas da direita norte-americana. Dado o surgimento simultâneo de alguns casos mais radicais e evidentes entre nossos irmãos do Norte, resolvi traçar com mais nitidez no que consiste o perigo.

A cultura americana é de base calvinista. Ainda que formada por vários outros elementos, a visão de mundo básica dela consiste em uma peculiar secularização do calvinismo que caracterizava as seitas (como a dos “Peregrinos do Mayflower”) que estabeleceram suas teocracias no que hoje é o Nordeste americano no século 17. Calvino foi um clérigo suíço que, surfando na onda de Lutero, estabeleceu uma teocracia em Genebra no século 16. O ponto principal de sua doutrina, para o que nos interessa aqui, é o peculiar conceito da dupla predestinação: segundo ele, Deus predestinaria as pessoas, antes mesmo de elas nascerem, à salvação ou à perdição, ao Céu ou ao Inferno. O máximo que se poderia fazer seria tentar descobrir a que se seria predestinado. Aqueles que Deus predestinasse à salvação seriam reconhecidos por seus hábitos sóbrios, sua vida santa e – por que não? – sua riqueza material. É este o protestantismo que Weber corretamente apontou como estando na base do capitalismo (o moderno, não o tudo-o-que-não-é-socialismo do discurso da esquerda). Nos EUA e, em menor escala, na sua terra-mãe inglesa, esta crença sofreu um progressivo processo de secularização, em que o que eram sinais de predestinação à salvação acabaram se tornando fins em si, com a religião assumindo um papel mais social e Deus ficando em segundo plano em relação ao dólar.

Ora, o que mais separa o pensamento calvinista dos demais sistemas religiosos (do catolicismo e mesmo do luteranismo ao budismo, hinduísmo ou animismo) é a separação completa das pessoas em dois tipos: o ganhador e o perdedor, o bom e o mau, o salvo e o réprobo. Esta separação estanque faz com que não haja, nem no calvinismo original nem em sua versão secularizada atual, a possibilidade de redenção. Se alguém que era contado, pelos sinais exteriores, entre os “salvos” comete um erro grave, a explicação usual é que ele na verdade teria estado fingindo o tempo todo, que sempre teria sido mau e isso teria sido finalmente revelado. A distinção, tão cara ao pensamento do papa Francisco e a toda a teologia católica (e budista, animista etc.) entre o corrupto hipócrita, que tem uma vida dupla, e o pecador que cai em tentação e se arrepende, e mesmo a possibilidade de aquele se arrepender e abandonar a sua corrupção, está singularmente ausente.

No contexto do neocalvinismo secularizado dos EUA, assim como no discurso dos brasileiros que, irrefletidamente, importam sistemas prontos de pensamento alienígena, isso significa que o “outro lado” está necessariamente do lado do Mal. Mais ainda: significa que o adversário é inconversível e jamais abandonará seu erro, o que é a negação liminar da política. Afinal, a política nasce da convivência em que cada lado respeita o outro e cede um pouco para que se chegue a um acordo que seja bom – ou menos aceitável – para ambos. Se o outro lado é composto de demônios de face humana, nenhum compromisso é possível, e ceder é sempre permitir que o Mal avance. Fora Churchill, só tolos cogitariam fazer acordos com o Diabo. Mais ainda: se os erros passados jamais podem ser expurgados, a vida política passa a consistir em uma busca incessante de erros ocultos dos adversários que possam servir, décadas depois, para mostrar que ele seria “mau”.

Daí vêm, por exemplo, leis americanas como as que determinam, em vários estados, que alguém que tenha três condenações penais – mesmo que por furto de galinha – seja condenado à prisão perpétua. Afinal, por definição alguém que erra feio três vezes seria irredimível! Do mesmo modo, tem crescido o número de jurisdições americanas em que é proibido dar comida aos mendigos, o que faz com que muitos cristãos, católicos e protestantes, obedecendo sinceramente à ordem do Evangelho de dar de comer a quem tem fome, sofram persecução penal.

Mas três são os casos recentes (em termos, como veremos) que me motivaram a escrever este texto. Vamos do menor ao maior, em termos políticos. O primeiro deles ocorreu na filmagem do recém-lançado O Predador. Uma atriz descobriu que o ator com quem contracenava em uma cena havia amargado dois anos de cadeia, anos antes, por ter tentado, sem sucesso, convencer uma mocinha adolescente a ir para a cama com ele. Ora, a condenação inicial já é absurda. Seria perfeitamente compreensível se o pai da mocinha lhe desse umas bolachas, mas dois anos de cadeia por sem-vergonhice não consumada já é um exagero inominável. Mas, para a atriz, este fato significava que ela teria contracenado com um monstro pior que o do filme. Irredimível, nos termos do calvinismo secular hodierno. Tanto escarcéu ela fez que o diretor, a contragosto, viu-se forçado a cortar do filme a cena “conspurcada” pela presença do pobre coitado, amigo pessoal dele, e implorar o perdão da donzela ofendida. Cuja vida sexual provavelmente começou na idade da Julieta desse pobre Romeu. O sujeito, a depender da cultura em que teve o azar de nascer, provavelmente vai passar o resto da vida em subempregos, impedido de trabalhar no seu ofício de escolha e vocação pela “descoberta” por parte da colega de que ele seria um demônio em pele humana.

Ainda nas artes cênicas, onde – convenhamos – o que não falta é gente com uma sexualidade, digamos, bastante aflorada e exótica, o grande mestre do cinema Woody Allen está com um filme pronto, mas que a produtora (a Amazon, a mesma da loja on-line) está segurando e pode até mesmo não lançar. Os atores do filme vieram a público, em auto-da-fé neocalvinista explícito, chorar pitangas e declarar que eles não deveriam jamais ter nem sequer se aproximado do sulfuroso set de filmagens, que dirá participar do filme de tamanho monstro. O indício da suposta monstruosidade do genial diretor consistiria única e exclusivamente numa história extremamente mal-contada de há já 20 e tantos anos: quando no meio de um divórcio litigioso com a atriz Mia Farrow, ela o acusou de ter se esfregado na filha adotiva de 7 anos de idade deles. Dois dos filhos adotivos dela – a atual esposa de Woody e um outro – dizem que não apenas foi tudo invenção da mãe, como que ela treinava as crianças para “interpretar” papéis como o que a menina supostamente abusada teria então interpretado. Outros dois filhos adotivos dela se mataram, e uma terceira morreu de Aids, na miséria. Não se tratava de uma família harmoniosa. Do mesmo modo, a acusação foi objeto de duas investigações penais, que inocentaram o diretor. Note-se bem: elas o inocentaram, não apenas declararam não haver provas para condená-lo.

Mas, mesmo assim, toda essa história sórdida voltou às manchetes porque, aproveitando a campanha #MeToo de denúncias de predações sexuais (que são intoleráveis, mas não irredimíveis), a moça supostamente abusada pelo cineasta requentou tudo e voltou assim aos holofotes. Há aí vários problemas, causados, todos eles, pelo neocalvinismo secular americano. O primeiro é essa ideia de uma suposta descoberta da malignidade irredimível de alguém a partir de um ato errado. Woody Allen jamais fora acusado, nem antes nem depois, de qualquer tipo de impropriedade sexual, que dirá de se esfregar em criancinhas. O máximo que seus detratores conseguiram achar foi uma tentativa transparente e desajeitada de convidar a belíssima Mariel Hemingway – então com 19 anos –, que fizera par romântico com ele no seu magistral filme Manhattan dois anos antes, a passar um fim de semana juntinhos em Paris. Na sala, na frente dos pais dela. Só faltou pisar com um dedão no outro, se é que isso não aconteceu. Ora, mostre-me um homem que não suspire ao pensar em um fim de semana em Paris com a Mariel Hemingway de então e mostrar-lhe-ei alguém que não sabe apreciar o belo sexo.

Mas eis que o novo filme de Woody Allen, a que eu adoraria poder assistir, está trancado numa gaveta da produtora devido à sua recém-requentada demonização. Mesmo que tenha sido verdade a história – e aqui chegamos ao segundo problema do caso Woody –, a arte dele não tem chongas, necas de pitibiriba, porcariíssima nenhuma, a ver com o que quer que ele tenha feito ou deixado de fazer. Não se pode abandonar a arte de um gênio por conta de seus pecados. Aliás, o mais comum é justamente que os gênios, por serem pessoas de foco extremamente preciso e limitado, sejam pessoas insuportáveis em quase todos os demais aspectos de sua vida, quando não francamente abusivas. O finado Stephen Hawking, o físico da cadeira de rodas, fez da vida de sua pobre esposa um inferno. Picasso era pior ainda. Dalí, então, deixava ambos no chinelo, como o grande George Orwell bem descreveu. Gérard Depardieu já confessou pelo menos um estupro. Paganini, diz-se, usava como corda de violino uma tripa de uma amante que teria matado. Mas uma coisa é o artista, e outra coisa é a arte. Considerar a arte de um gênio conspurcada por seus pecados é ignorar o que é arte e o que é genialidade.

Finalmente, o caso mais importante do ponto de vista político: o presidente Trump nomeou para a Suprema Corte americana um juiz distrital chamado Brett Kavanaugh. O sujeito é a epítome do certinho, sem um fio de cabelo fora do lugar, uma história de conduta irreprochável, calmo como se lhe corresse gelo nas veias, e coisa e tal. Mas ele sofre de um pecado original: foi indicado pelo Trump, o que, num país extremamente dividido e polarizado como são os EUA de hoje, já basta para que seja visto como um demônio pela metade esquerdista (“democrata”, do nome do partido) e como um anjinho a tocar harpa pela metade direitista (“republicana”, idem). Os democratas o tostaram a fogo lento por dias, fazendo toda sorte de perguntas, nas sessões em que o Senado examina os candidatos à Suprema Corte propostos pelo presidente antes da votação final. Esta votação, como a maioria do Senado é republicana, já era favas contadas. Mas está por vir uma eleição parlamentar, em que os democratas têm a esperança de conquistar uma maioria do Senado. Por isso, aos 47 minutos do segundo tempo, uma senadora tirou do bolso do colete uma carta em que uma ex-colega de escola do pobre juiz o acusa de ter tentado agarrá-la na marra quando ambos eram adolescentes e estavam caindo de bêbados.

Isso teria acontecido décadas atrás. A mãe do juiz, ela também juíza, teria dado seu aval, também sabe Deus quando, para que um banco tomasse a casa da família da acusadora. Ninguém mais confirma a história do ataque sexual e 65 colegas de colégio de ambos declararam que o sujeito sempre se comportou magnificamente bem. Mas não interessa. O que interessa é que a suposta descoberta de um ato reprovável o tornaria um réprobo, um predestinado à perdição, um monstro em forma humana. E o truque funcionou: a votação, que seria nesta quinta-feira, foi adiada até que se esclareça o irrelevante caso. A acusadora quer que o FBI – que não lida com casos de assédio sexual, que dirá com casos já mais que caducos – investigue antes de testemunhar. Jogaram um tamanco nas engrenagens da nomeação do sujeito.

Quando, reza a tradição, o Cristo disse que quem nunca houvesse pecado atirasse a primeira pedra contra a mulher acusada de adultério, Ele teria estado escrevendo no chão os pecados dos acusadores, que ao vê-los assim expostos largaram as pedras que já tinham na mão e fugiram. Não me lembro de já ter tentado agarrar ninguém à força, mas, como qualquer pessoa que não seja um monstro de hipocrisia, sei que já fiz coisas de que me arrependo e que não repetiria hoje. Como com o cineasta, assumindo em prol do debate que seja verdadeira a acusação sem provas feita contra o juiz, mesmo assim isso nada deveria ter a ver com sua confirmação. Só para começar, segundo a própria acusadora ele teria estado bêbado de cair. Literalmente: ela teria aproveitado uma sua queda para se trancar num banheiro até esfriarem os ânimos do pingucinho adolescente.

In vino veritas, e coisa e tal, mas misturar cachaça e hormônios adolescentes não vai produzir provas de santidade de ninguém. Adolescentes, especialmente os do sexo masculino (as mocinhas são mais inteligentes), pensam em sexo a maior parte do tempo. Álcool retira as inibições e isso vem à tona. Um adolescente que, sei lá, roubasse dinheiro ou batesse em alguém quando bêbado poderia estar demonstrando uma falha de caráter, algo que ele deveria se esforçar para corrigir, mas sexualidade agressiva nessas circunstâncias é quase inevitável, infelizmente. Mais uma razão para os pais policiarem as festas dos filhos. Um caso como este não deveria dizer nada acerca do caráter de alguém décadas depois, mais ainda quando essas décadas se passaram sem absolutamente qualquer comportamento reprovável por parte do acusado.

Mas, porém, contudo, entretanto, no entanto, todavia, isso tudo de nada vale dentro do contexto do neocalvinismo secular americano. Assim como Woody Allen e o pobre ator metido a Don Juan cibernético dos outros casos que narrei, o que se busca – e infelizmente se consegue – é estabelecer uma vítima como réprobo, um demônio em forma de gente.

E é isso que se vem tentando trazer para a política brasileira, com enorme dose de sucesso. A esquerda já conseguiu que a grande mídia (com o auxílio de parcelas do Judiciário) demonize toda e qualquer divergência da recém-inventada teoria de gênero. A campanha esquerdista contra Bolsonaro (que em boa medida saiu pela culatra e foi razão de seu sucesso nas pesquisas) o pinta como um monstro babando sangue; o seu esfaqueador, comunista confesso e ex-membro do PSol, afirmou estar agindo a mando de Deus. Se ele estava agindo a mando divino, é porque estava atacando um demônio. Do outro lado do balcão, é comum nas redes sociais que pessoas identificadas com a nova direita cortem contato virtual com quem quer que seja que não compartilhe de suas ideias, que não seja fã do “bolsomito” ou que pretenda votar no candidato do Lula.

Isso é a negação da própria possibilidade de conversão e de redenção. Se há uma coisa, um elemento da sociedade brasileira, ela mesma de origem culturalmente católica, que devemos tentar ao máximo preservar, isso é justamente a crença na possibilidade sempre presente de conversão e de redenção. Quem faz o mal hoje pode deixar de fazê-lo amanhã. Quem o fez anos atrás, e de lá para cá comportou-se bem, merece nosso apoio, não nossa condenação. Sem redenção não é possível haver civilização; tudo tende a um dualismo que ignora as profundidades do cipoal que é a natureza humana e que tudo reduz a um mínimo denominador comum que só pode levar a injustiças graves e duradouras. E eu continuo querendo ver o filme do Woody Allen.

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