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Ivonaldo Alexandre/Arquivo Gazeta do Povo
Ivonaldo Alexandre/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

Trezentos anos atrás, Deus mandou ao povo brasileiro um recado com muitíssimas camadas de significado – como, aliás, costumam ser as Suas mensagens – ao nos enviar a imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição Aparecida, cuja festa comemoramos neste dia 12.

Como nos vem sendo lembrado pelo que ainda resta na imprensa de católico, ou ao menos de respeitoso à religião da maioria do nosso povo, a imagem foi encontrada em partes, com a cabeça separada do corpo. Ora, quando uma imagem sacra se quebra, ensina a tradição cristã que ela não pode ser jogada no lixo: ela pode ser enterrada, jogada em águas profundas ou queimada. No caso, trata-se de uma imagem de terracota, que não se conseguiria destruir pelo fogo. Assim, é extremamente provável que a imagem de Nossa Senhora da Conceição que apareceu aos pescadores tenha sido jogada no Rio Paraíba por alguém que a venerava anteriormente, justamente por ter-se quebrado. Assim temos o primeiro detalhe do complexo recado que Deus nos dá: a imagem de Sua mãe que Ele nos indica a venerar não é de modo algum uma “novidade”.

Comparemo-la, por exemplo, com a imagem da Virgem dos Milagres de Caacupé, padroeira do Paraguai, que foi esculpida por um converso nativo na madeira de um enorme pé de mate atrás do qual se refugiou de perseguidores pagãos que o desejavam matar. A Senhora Aparecida é como que um renascimento de uma imagem, não uma obra nova. Talvez tenha vindo de Portugal; ao menos sabemos que de lá veio a nossa Fé. O que de lá veio e se quebrou, todavia, renasce e volta a ser objeto de veneração no Brasil. Com isso percebemos a vocação cristã do nosso país, que tende a guardar o melhor da civilização ocidental que nos plasmou no momento em que, no local de sua origem, ela está em seus últimos estertores, sendo dominada pelos mesmos mouros que sempre foram seus inimigos figadais, sem ter mais filhos, sem ter mais Fé, sem ter mais nem sequer a percepção da grandeza de seu passado.

A imagem foi encontrada por pessoas pobres, pobres como a maioria de nosso povo. Eles estavam, contudo, a serviço da autoridade hierárquica: buscavam peixes para a festa de recepção do Conde de Assumar, governante da capitania de São Paulo e Minas. Tentaram aqui, tentaram ali, sem sucesso; quando, contudo, encontraram as duas partes da imagem, ela miraculosamente tornou-se imensamente pesada, de tal modo que não poderiam jogá-la fora novamente, mesmo se o quisessem. Foi então que, numa reminiscência clássica dos milagres do próprio Cristo, Cuja mãe a imagem representa, os pescadores encheram as redes com tantos peixes que temiam que o barco afundasse.

É uma lembrança divina de que a nossa sociedade, felizmente, é uma sociedade que respeita profundamente a hierarquia. Não somos uma sociedade igualitarista, e temos nítida noção dos deveres de estado tanto dos mais afortunados quanto dos menos, e sabemos claramente que cada um faz a sua parte na construção de um todo que é muito maior que a mera soma delas. Sem os pobres pescadores não seria possível o banquete oferecido ao conde; sem o conde não haveria a proteção social, e mesmo o emprego, que tinham os pescadores. Cada um cumpria a sua parte, e nesse todo hierárquico e bem ordenado surgiu miraculosamente, pelas mãos rudes dos mais pobres, a imagem da Mãe de Deus.

A cor escura dela provavelmente há de se dever, originalmente, à permanência no fundo do Rio Paraíba; a cerâmica porosa terá recebido e incorporado partículas escuras carregadas pela água. E a cor da Virgem, destarte, tornou-se em tudo semelhante à de tantas outras Virgens negras de enorme veneração em outras partes do globo, como Nossa Senhora de Montserrat na Espanha, Nossa Senhora de Jasna Gora na Polônia, Nossa Senhora de Bistrica na Croácia, Nossa Senhora de Altötting na Alemanha, ou Nossa Senhora dos Eremitas na Suíça. São imagens que nos lembram do Cântico dos Cânticos, em que a Amada diz que é negra, mas formosa. E assim é o Brasil: negro e formoso. Nossa população teve a graça de, desde seu princípio, ter-se composto pela mistura e mestiçagem absolutas, em princípio causada pela ausência de mulheres europeias e, em seguida, continuada pelo simples hábito, extremamente salutar em termos sociais e genéticos, de encontrar cônjuges de aparência distinta da própria. E assim o brasileiro ganhou sua cor morena que faz com que a imagem da Virgem Aparecida nos seja tão apropriada quanto as imagens da Virgem de olhos amendoados do Oriente distante: ela se fez ainda mais completamente uma de nós, afastando-se nisso da arte mais tradicional portuguesa, que, como em toda parte, tendia a fazê-la mais parecida com aquele povo, com a pele branca e os cabelos negros advindos da rica mestiçagem de godos, celtas e semitas que formou nossa pátria-mãe europeia.

E os milagres foram se sucedendo, arrastando multidões para venerar a imagem, tão pequena e simples. Foi-lhe então construída uma igreja, elevada a basílica em 1908 – a atual Basílica antiga, ainda em funcionamento a curta distância da gigantesca Basílica nova. A construção iniciou-se em 1834, mostrando-nos o quanto já havia crescido o culto salutar àquela pequena imagem em tão curto período de tempo, ao ponto de necessitar uma igreja de bom tamanho, e concluiu-se já com o Brasil sendo um país livre, logo após a Abolição da Escravatura. A coroa e o manto original da imagem foram doados pela própria princesa Isabel, em pagamento de promessa provavelmente relacionada ao seu grande feito: a assinatura da Lei Áurea. Assim a imagem da Senhora Aparecida viu-se duplamente ligada, pela data e pelo preito de vassalagem da princesa herdeira, à terminação da horrenda chaga da escravidão de seres humanos em nosso país.

Convém lembrar, nestes nossos tempos em que se busca reconstruir a história para favorecer um racismo que traz à mente o pior do século passado, que no Brasil – como aliás no mundo todo, com raras e desonrosas exceções – a escravidão não era diretamente ligada à cor da pele. As primeiras gerações de escravos brasileiros, por terem sido arrancados do seio da Mãe África, tinham certamente a pele mais escura. Muitas vezes, contudo, os portugueses amigavam-se com escravas e tinham filhos com elas, e estes raramente eram mantidos em cativeiro. Do mesmo modo, era possível a muitas categorias de escravos, notadamente aos então chamados “escravos de ganho”, que eram alugados pelo “dono” para prestação de serviços ou comércio, exercer atividade remunerada nas suas folgas, de modo a conseguir juntar dinheiro para comprar a própria liberdade. Tivemos até mesmo grandes senhores de escravos, com títulos de nobreza, com a pele negra retinta, da mesma cor daquela de muitos de seus servos, da mesma cor que o próprio Senhor escolheu para a imagem que no Brasil haveria de representar a Sua Mãe.

Em 1930, o papa Pio XI deu à Virgem Aparecida o título de Rainha e Copadroeira do Brasil. Nestes nossos tempos republicanos não se fala muito disso, mas o primeiro padroeiro do Brasil, que continua sempre a sê-lo, é São Pedro de Alcântara; ao dar à Senhora Aparecida o título de Copadroeira, não deixa de ter sido um recado à República ter-lhe sido dado também o título que de direito seria então da mesma princesa que lhe deu seu manto e sua coroa. É outro significado da Virgem Rainha que poderia nos passar oculto: após a sua mais meritória ação como governante provisória, a princesa Isabel foi expulsa da própria pátria, do país que libertara e que era seu direito governar; antes disso, ela foi ao santuário da Virgem Aparecida e, escolhendo esta apelação de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, deu-lhe uma coroa, que não era a sua, e um manto, que não era o de seu pai. Ao ter roubada a coroa e o manto de governo, com o nefando golpe de Estado que deu início à República de que até mesmo Rui Barbosa sentiu vergonha, permaneceram no Brasil uma coroa e um manto que davam honras de monarca àquela que, uma geração depois, as teve confirmadas pelo decreto papal. Assim, de uma certa forma o título de Rainha do Brasil da Virgem Aparecida continua amorosamente o título e a obra da princesa que a coroou.

A imagem que temos hoje, todavia, não é exatamente a mesma imagem encontrada no fundo do rio pelos pescadores 300 anos atrás. Aquela, contudo, está toda contida nesta. A imagem sofreu em 1978, quando ainda abrigada na Basílica velha, o horrendo ataque de um iconoclasta protestante, que praticamente a moeu a marteladas. Levada para restauração, foi então praticamente reconstruída, usando todo o material – mais pó que peças – recuperado do chão da Basílica, aglomerado com uma cola forte e praticamente modelado na forma da imagem original. Assim, a imagem, como em muitos aspectos o Brasil, é uma reconstrução. Somos de certa forma uma reconstrução da sociedade ocidental, fora do que é comumente chamado Ocidente; somos uma reconstrução de Portugal, nas Américas; somos uma reconstrução das sociedades que nos compuseram, todas elas, de cada povo índio e cada povo imigrante, cada um cedendo à cultura geral aspectos da sua cultura de origem, e cada um recebendo dela novas riquezas, com tudo preso, aglomerado, por uma cultura brasileira que na verdade é apenas a cola que une os elementos de inúmeras culturas, assim como une e mistura os elementos genéticos trazidos de cada parte do globo, do longínquo Japão à fria Alemanha, da quente África ao Líbano generoso.

O ataque é uma das muitas razões pelas quais a imagem é fortemente protegida na Basílica nova, consagrada pelo papa São João Paulo II em 1980 e ainda em construção, tendo sido iniciada a obra em 1955. Esta é a maior igreja dedicada à Virgem Maria no mundo.

A romaria a Aparecida, tão comum em enorme parte de nosso país, é sempre uma experiência marcante. O amor do povo brasileiro por aquela que o próprio Cristo nos deu por Mãe enquanto pendia da Cruz enche aquele imenso espaço; as vozes em oração, os gestos de devoção e piedade, os ex-votos a perder de conta mostram-nos um povo dedicado a Deus, um povo que respeita e percebe nitidamente a importância e a beleza do sagrado. Curiosamente, como não poderia deixar de ser, é exatamente onde Deus faz Sua igreja que o Inimigo faz sua capelinha, e ao mesmo tempo que lá vemos enorme beleza, Fé capaz de arrastar montanhas e amor sem fim e incondicional, encontramos o pior do comércio de bugigangas chinesas; restaurantes que, por saberem que nenhum romeiro estará lá no dia seguinte, servem comida de péssima qualidade; além de desrespeitos gravíssimos à lei e à prática litúrgica da Igreja no interior da própria Basílica. Mas tudo isso empalidece diante da beleza que é estarmos ali, junto de tantos irmãos e irmãs de todos os tamanhos, cores, hábitos, fortunas e famílias, diante daquela imagenzinha tão singela, mas com tantas camadas de sentido, todas unânimes em nos indicar o amor de Deus pelo povo brasileiro, que tanto O ama de volta.

Viva Nossa Senhora Aparecida!

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