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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Ativismo ambiental

O Belo e o clima

Duas ativistas jogam molho de tomate em obra de Van Gogh. (Foto: Reprodução/Twitter)

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Regularmente vêm surgindo notícias de “manifestantes” apavorados com o clima atacando obras de arte. Antes, se não me engano, para chamar a atenção para sua paranoia – sem se dar conta de que a irritação causada fazia mais dano que bem à causa – eles preferiam algemar-se ou mesmo colar-se em lugares onde impediriam o trânsito. Não sei qual foi o primeiro a ter a ideia de jerico de atacar obras de arte, mas a coisa é tão doida que não duvido ter sido algum agente provocador usando-os contra a própria causa.

O que realmente importa, contudo, não é quem convenceu o primeiro grupelho a vandalizar pinturas, mas o fato de que isso tenha sido abraçado com entusiasmo pelos militantes. Afinal, Van Gogh não tem culpa nenhuma no cartório, nem mesmo na visão delirante de mundo dessa rapaziada. Suas ações anteriores buscavam apenas atrair a atenção. Eram meros chatos de galocha a provocar (poluentes) engarrafamentos para serem notados. Agora, todavia, estão atacando coisas diretamente. E o que atacam não é o que consideram causar a mudança climática que tanto os apavora, mas obras de arte.

Em outras palavras, atacam o que é belo. E no que é belo atacam o Belo – que é o Bem expresso de forma ordenada –, e o fazem sem sequer apresentar alguma desculpa ou explicação. Querem chamar a atenção; sim, entendemos. Mas, dentre tantas formas de pendurar melancias ao pescoço, por que justamente atacar a beleza? Por que tomar por alvo aquelas poucas coisas que fazem do mundo um lugar melhor, em vez de, por exemplo, atacarem edifícios brutalistas, refinarias (que ainda teriam a vantagem de constituírem um inimigo, na doideira deles), ou qualquer outra dentre tantas coisas que nos ferem os olhos?!

Dentre tantas formas de pendurar melancias ao pescoço, por que os ativistas ambientais escolhem justamente atacar a beleza?

Isso me parece ser sintoma de uma doença – espiritual e social – muito grave, de que a própria paranoia apocalíptica em relação ao clima acaba sendo outro sintoma, não causa. Tanto o ódio ao Belo quanto a crença no poder do homem de causar e evitar mudanças climáticas vêm da mesma cegueira, da mesma incapacidade de perceber o homem (logo, suas obras) como uma criatura dentre tantas outras, ainda que uma criatura especial em vários sentidos. Essa pobre gente não consegue entender que o mundo não é criação humana, e por isso enlouquece ao tentar lidar com coisas que estão além do alcance do homem, entrando então num frenesi de ódio a tudo o que é humano, inclusive ao que representa o melhor do homem. Tal como as obras de Van Gogh.

Li outro dia numa conceituada revista gringa que está surgindo uma “terceira via” de percepção da questão climática, além das duas que já provocaram e provocam ainda tantas barbaridades. O que havia até agora, ao menos em termos de correntes com forte representação política, era, de um lado, uma direita que vê no restante da Criação apenas riqueza material em potencial; uma espécie de Filho Pródigo em escala industrial, esbanjando o que deveria pertencer às próximas gerações, poluindo mais e mais ao manter uma economia mundial baseada no consumismo, ou seja, na extração de “recursos” e sua transformação em lixo, “justificada” por um brevíssimo instante de uso entre bilhões de anos no subsolo como “recurso” mineral, energético, etc., e centenas de milhares de anos como agentes poluidores em lixões. Para essa corrente, o clima não entra em consideração. Do outro lado, uma esquerda apavorada com a mudança climática em curso, por ela atribuída à ação poluidora do homem, mas afogada na ilusão desesperada de conseguir impedi-la ou mesmo revertê-la pela diminuição da geração de gás carbônico, metano, o que for.

Agora, segundo o artigo, vem ganhando força uma outra corrente, que vê a mudança climática como inevitável, e com isso se apavora tanto quanto a corrente esquerdista, mas prefere sentar no meio-fio e chorar a quixotescamente tentar eliminar os agentes que supostamente a causam. O pessoal que ataca obras de arte é evidentemente parte da segunda corrente: eles se apavoram com a mudança do clima, atribuem-na a ações humanas, e, no seu desespero, atacam o que o homem fez de melhor. Isso evidentemente decorre de botarem no mesmo saco tudo o que é humano.

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Ora, as três correntes partilham, de modos diversos, do mesmo erro de base. Tendo sido criados em ambientes urbanos, mal tendo posto o pé fora do asfalto, os três tendem a reduzir aos ambientes artificialíssimos do modelo social que ora finda a totalidade da realidade, do universo criado. Para o direitista, o que há além do asfalto é mera matéria-prima para a produção de lixo (logo, de riqueza e conforto material). Para o esquerdista, além do asfalto ao qual o homem deveria restringir-se só há, ou só deveria haver, uma espécie de Jardim do Éden, jamais “maculado” pela presença humana. Estes têm o problema adicional de em geral não entender que só existe o ambiente urbano moderno por conta da exploração alucinada dos tais “recursos”, sem a qual não haveria asfalto algum. Daí alguns poucos, ditos radicais, abraçarem o corolário do erro de base e achar que o ideal seria que o homem deixasse de existir. Esta acaba sendo a posição expressa em atos, quando não em palavras, pelos que atacam coisas belas.

Ora, quem vê no homem uma praga a ser eliminada forçosamente vê no melhor que o homem já pôde fazer (inclusive e especialmente na criação de beleza) algo a ser destruído junto com as chaminés poluidoras e as minas a céu aberto de onde vêm os componentes dos iPhones com que combinam suas ações. A terceira corrente, de uma certa maneira, está ainda mais perdida: ao ver na mudança climática um horror sem mitigação, ao preocupar-se com seus efeitos sobre, sei lá, os recifes de coral australianos ou as florestas da Guiné, ela ao mesmo tempo idealiza o mundo extraurbano, apavorando-se com a destruição de tal imaginário Jardim do Éden, e deixa de perceber a arrogância destrutiva da posição direitista inicial.

Ora, o clima sempre mudou, muda agora e sempre mudará. Mais ainda: não há como prever quais serão tais mudanças, nem quando, nem em que ritmo, por serem decorrentes de processos de complexidade quase infinita dos quais quase nada sabemos. Nos anos 1970, anunciava-se em tons de pavor uma Era Glacial que estaria às portas (continuo esperando ansioso, aliás: detesto calor!). Depois passou-se a um suposto Aquecimento Global, oposto diametral do terror anterior. Hoje, finalmente, tem-se a humildade de simplesmente falar de “mudança climática”. Que é real, mas que ninguém tem sequer como saber em que direção vai, que dirá prever ou, menos ainda, fazer cessar ou reverter.

Os ativistas que atacam obras de arte se apavoram com a mudança do clima, atribuem-na a ações humanas, e, no seu desespero, atacam o que o homem fez de melhor. Isso evidentemente decorre de botarem no mesmo saco tudo o que é humano

Na prática, isso pode ser uma péssima notícia para os seres vivos que compõem um dado habitat e uma excelente notícia para outros. Se o Hemisfério Norte esquentar, por exemplo, ou mesmo se apenas esquentarem suas partes mais frias, a tundra congelada florescerá. Um novo habitat surgirá para espécies e mais espécies de bichos e de plantas. O que se plantava ali poderá ser plantado acolá, mesmo que aqui não se o possa mais plantar (em tempos mais quentes que os atuais a Inglaterra foi grande produtora de vinho, por exemplo; em tempos mais frios, era no Oriente Médio que tal maravilha era mais produzida). Em suma: as coisas mudam, como sempre mudaram, e só o que se pode fazer é tentar tirar o melhor das mudanças. Sem nem se apavorar nem cair na arrogância de achar-se capaz de influenciar coisa tão grande e tão complexa quanto o clima.

O que não muda, entretanto, é a natureza humana. Basta pegar uma história escrita noutros tempos para que se reconheça naquela gente – vestida de outra maneira e socialmente organizada de outro jeito – as mesmíssimas pulsões, as mesmíssimas fraquezas e as mesmíssimas forças dos que estão ao nosso redor. Como qualquer outro ser vivo, o homem modifica seu entorno. Ao contrário dos demais, no entanto, nós somos capazes de decidir como o modificaremos e de nos iludir acerca dele. As três correntes que descrevi acima podem diferir na forma ilusória a que reduzem o mundo extraurbano, mas irmanam-se na mediocridade de suas visões de mundo. Nenhuma delas consegue perceber a complexidade do que não é meramente humano; reduzi-lo a recursos econômicos ou pintá-lo como Jardim do Éden é negar sua realidade.

Ao reduzir sua percepção ao homem – que é o que faz quem pinta de ouro ou de cor-de-rosa tudo o que não é a metrópole moderna –, todas essas correntes tendem a cair nos mesmos erros, inclusive naquele de que trato aqui: a guerra ao Belo. Qual é a diferença entre o “ativista climático” que joga molho de tomate num Van Gogh e o arquiteto brutalista que constrói um horror distópico no centro de uma bela cidadezinha antiga? Ambos odeiam a beleza. Ambos odeiam o homem, e por isso atacam o melhor que o homem já fez. Não há diferença essencial alguma.

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Isto é um sintoma da mesma doença espiritual moderna, que atinge o seu auge nesta hipermodernidade (ou pós-modernidade, se preferirem) em que nos vemos imersos. O solipsismo de quem sabe que existe porque pensa, mas não tem lá tanta certeza de ter braço, é o que leva alguém a depositar esperanças infundadas no homem, achando que aprimorará sua natureza (como fazia a esquerda do século passado) ou, ao contrário, a condenar o homem em bloco. Afinal, o que é o homem para o solipsista se não ele mesmo, algo por definição separado de todo um resto que pode até nem existir? Se não um pensamento ambulante, cujo corpo pode perfeitamente ser uma ilusão? De algo diferente de – e mais presente que – todo o resto da Criação?

Tal ente de razão pode ganhar formas coletivas (O Povo) ou reduzir-se ao solipsismo extremado de quem acha impossível que o outro entenda o que pensa (como na pós-modernidade). O que ele não pode, não consegue de modo algum, é perceber a riqueza extrema, para o bem ou para o mal, não só de cada homem – ele mesmo inclusive – quanto a infinita complexidade da humanidade. Daí, primeiro, as megalópoles com suas vilas operárias de casinhas tão iguais quanto as de um pombal, e num segundo momento o surgimento de casulos individuais (sonoros: fones de ouvido; físico-climáticos: ar-condicionado...). Daí a negação em bloco do que há de bom no homem, outro lado da mesma moeda podre que no século passado tentava negar o que há de mau e acabava condenando milhões à morte por não se encaixarem no padrão do Novo Homem que se tentava construir.

Comparada às demais sociedades que surgiram e caíram ao longo da longa história humana, a Modernidade tem uma característica que a tornou imensamente “poderosa”, e que do mesmo modo faz o seu fim ser ainda pior que o das demais: sua fantasia universalista acerca do homem, ironicamente derivada de um solipsismo já presente em suas origens, quando Lutero jogou nas costas de cada um identificar uma Verdade supostamente ao mesmo tempo expressa por inteiro e oculta na Escritura. O homem foi separado – intelectualmente, “racionalmente”, de direito, de fato... – do restante da Criação, e assim pôde construir para si um mundinho de fantasia em que cada um podia achar que tinha razão, que era o dono da Razão. Na primeira fase, universalista, essa separação levou a tratar de universal o que é particular, e de particular o que é universal. Nada mais moderno que achar, sem se dar conta do absurdo que se profere, que religião é coisa de foro íntimo, mas uma Constituição secular tem valor universal e público.

Qual é a diferença entre o “ativista climático” que joga molho de tomate num Van Gogh e o arquiteto brutalista que constrói um horror distópico no centro de uma bela cidadezinha antiga? Ambos odeiam a beleza, odeiam o homem, e por isso atacam o melhor que o homem já fez

Nesta segunda fase, em que o universalismo triunfalista que tantos chacinou no século passado não tem mais tração, tudo retorna às origens solipsistas, e cada um (não um Homem ideal) vê-se como medida de todas as coisas. Medindo todas as coisas, acha-se que são falhas e se as condena. Inclusive e especialmente as melhores. Afinal, uma cidadezinha europeia antiga, com suas casinhas delicadas e suas ruas caprichosamente encaracoladas, é uma lembrança constante do que eu sou incapaz de fazer, da beleza que eu sou incapaz de construir. Exatamente como um Van Gogh. Daí taca-se-lhe um prédio brutalista horrendo ou uma lata de molho de tomate.

Ao fazer pela primeira (e espera-se única) vez na história da sociedade humana algo separado do resto da Criação, o repúdio àquela dada sociedade, àquela dada cultura, torna necessário o repúdio à humanidade como um todo. A cada homem. À beleza feita por mãos humanas. Ao mesmo tempo, torna-se impossível ver além do labirinto de cimento e asfalto em que tal sociedade nos aprisiona, e daí o resto da Criação tornar-se ou bem caixa do tesouro a arrombar e ter seu conteúdo arrastado para o asfalto primeiro e para o lixão em seguida, ou bem Jardim do Éden imutável que não podemos conspurcar.

O clima, na verdade, quase nada tem a ver com isso. É só uma desculpa, e das mais esfarrapadas.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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