Já escrevi alhures sobre o mecanismo pelo qual o que o Santo Padre diz vira outra coisa, completamente diferente. Resumindo muito, o que aparece na imprensa (e redes sociais) do Brasil é o que as agências americanas (que são as que informam os jornais tupiniquins) noticiam, que, por sua vez, é sempre uma tentativa de enfiar o discurso papal numa das duas “caixinhas” da compreensão política americana (como se o papa fosse político!), a democrata e a republicana. Em geral enfiam na democrata – como em geral, usando fórceps parecidos, enfiavam Bento XVI na republicana. Daí, aliás, pelo que tudo indica (ainda não assisti), o besteirol que parece haver no filme dos Dois Papas.
Mas, no ano que teve a gentileza de acabar anteontem, o fenômeno do delírio interpretativo acerca das declarações papais foi ainda mais longe. Um pequeno exemplo, porque esse negócio de exemplo não é tanto a minha praia, é-nos dado por uma sua declaração claríssima, em que se coloca contra o que chama de “proselitismo” (que poderia ser definido como o uso de táticas desonestas: a força, as vantagens materiais etc.), que, ensina-nos o Santo Padre, deve dar lugar ao exemplo que realmente arrasta. Disse ele, em termos claros, que devemos agir tão cristãmente, tão santamente, que os judeus e muçulmanos fiquem curiosos acerca daquela Fé que nos move a tais atos, e a partir daí aproximar-se dela. A imprensa, por incrível que pareça, especialmente (claro!) a americana e seus reflexos na imprensa brasileira e nas redes sociais, apresentou este discurso como se o papa houvesse dito que não se deve buscar a conversão dos judeus e muçulmanos. Ora, bolas, o que ele disse é justamente como se a deve buscar; se alguém acha que é mais eficaz berrar para eles que irão para o inferno a não ser que se convertam, mesmo vivendo como um pagão e tentando bater o recorde de contratestemunhos por segundo, que o prove.
Este tipo de distorção delirante do discurso, no caso do papa, atinge um paroxismo que não encontramos nas interpretações midiáticas dos discursos de outros atores, mas – em maior ou menor grau – este tipo de delírio tornou-se uma regra. Vemo-la, basicamente, em todo discurso de alguém a quem a mídia tente atribuir uma posição que não é a sua (o que hoje é mais regra que exceção). Ela está mais do que presente nos delírios interpretativos do já delirante discurso bolsonarista, por exemplo, em que toda besteira que ele diz sobre um particular (“você tem uma cara terrível de homossexual”) torna-se, para a mídia, uma besteira dita acerca de toda uma categoria universal (“homossexuais são terríveis”, ou coisa que o valha). O mesmo vale para a senhorita Greta (confesso que esqueci seu enorme sobrenome, que – lembro-me, contudo – tem a delícia de conter a palavra “tintin”), para o Trump, para a Hillary Clinton, e para quem mais se queira examinar através do filtro distorcional da grande mídia.
A maioria esmagadora das pessoas que povoam este mundo não se encaixa em dualismos, ou em ideologias
A que se deve isto? Bom, basicamente o problema maior, o problema de base, o que cria a maior parte dos probleminhas e interpretações falsas pontuais, é a necessidade que alguns sentem, neste Novo Milênio, de encaixar tudo em algum discurso dualista. Ora, contudo, isso fica ainda mais engraçado quando nos damos conta de que os atores propriamente ditos de toda ação política, geopolítica etc. dos tempos pós-modernos são, mais do que em qualquer momento ao longo da história recente, figuras que não se tem como enfiar em caixinhas ideológicas simplistas. Tomemos, por exemplo, aquele personagem alucinantemente pós-moderno que é o Trump. Ele diz o que lhe vem à língua (ou aos dedões de tuitar), sem que aparentemente seu cérebro entre em ação por um segundo que seja para censurar o que vai lançar ao mundo. É um sujeito que ganhou fama e fortuna sendo um idiota rematado que demitia pessoas ao vivo na tevê, e que, alçado ao posto de supremo mandatário do materialismo, continuou comportando-se como um astro dos reality shows.
Pois bem, a imprensa americana (e, por conseguinte, a brasileira, que copia até mesmo a cor das meias da imprensa esquerdista americana) entrou em várias viagens sucessivas. A primeira, e provavelmente a mais delirante delas, consistia em pintar Trump como um pau-mandado de Putin (outro doido pós-moderno, mas de estilo assaz diferente). A segunda, que por incrível que pareça conseguiu por um tempo coabitar com a primeira nas manchetes americanas, tentava pintar Trump como um ideólogo da “supremacia branca”, a ideia de jerico de alguns setores da extrema-direita americana que realmente (tadinhos) acreditam em besteiras como raças diferentes, que teriam QIs diferentes, num universo de fantasia que levaria os “brancos” (leia-se “Brancos” Anglo-Saxões e Protestantes, da sigla americana “WASP”) a ver-se como uma espécie de raça superior (que, todavia, ainda seria mais burrinha que os “asiáticos”, o que lhes causa toda uma série de problemas).
Pois bem, Trump é simplesmente um coroa que foi criado no tempo em que japoneses eram uma espécie de monstros com dentes pendurados para fora da boca e óculos de fundo de garrafa, pretos eram naturalmente feitos para ser escravos etc. E, claro, dada a sua baixíssima capacidade de cognição teórica, ele jamais examinou as suas crenças (ou crendices). A diferença entre ele e um “supremacista branco” atual é mais ou menos a mesma que há entre um bobo que acha que botar a bolsa no chão “atrai pobreza” e um mestre zen, coach, ou qualquer outro profissional de sei lá qual seja a superstição da moda. Um simplesmente continua acreditando numa besteira que lhe foi contada em outros tempos, enquanto o outro a encaixa em toda uma série de outras besteiras e faz disso o centro de sua vida. Trump, assim, acha que todo negro é burro, mas não por ter lido uma imbecilidade qualquer acerca de testes de QI, mas porque o pai dele lhe repetiu esta imbecilidade particular, que estava “no ar” em seu tempo, e ele jamais a examinou.
Com o bolsopresidente ocorre exatamente o mesmo: ele é colocado pela mídia como se fosse um fiel seguidor de Mussolini, quando na verdade é um sujeito que poderia ser substituído (como sempre digo) por um taxista aleatório sem que grande diferença aparecesse. Ele jamais parou dois minutos que fosse para examinar o que quer que fosse. Suas “opiniões”, se é que elas merecem tal apodo, são uma mistura especialmente vaga de besteiras positivistas (e racistas, e maçônicas etc.) que aprendeu nas Agulhas Negras com preconceitos reles e vulgares da classe média baixa brasileira. Não há nada por trás da Aldeia de Potenkim bolsonariana. Não há uma ideologia, não há uma tentativa de solução para todos os problemas do mundo (ao contrário do que ocorre com os inconscientemente marxistas-leninistas de nossa grande imprensa, aliás), não há nada a não ser uma vaga sensação de nojo ante a ideia de dois machos se pegando, uma raiva profunda, mas irracional, de assaltantes e quetais, e por aí vai.
Nada, em suma, que não se pode encontrar em qualquer cidadão brasileiro que não tenha sido submetido com pleno sucesso à lavagem cerebral que a mídia tenta nos dar. Mas não; para esta, o bolsopresidente é forçosamente um ideólogo, por ser o oposto diametral – lá nas cabecinhas deles – da ideologia que abraçam. Se a extrema-esquerda pessolista ou petista diz que homem vira mulher ao estalar os dedos e o bolsopresidente discorda, é que ele seria o porta-voz de uma ideologia maligna que desejaria a morte de todos os caras que acham que são mocinhas, e de todas as moças que acham que são garotões. E por aí vai.
Para a mídia de esquerda, o presidente é forçosamente um ideólogo, por ser o oposto diametral – lá nas cabecinhas deles – da ideologia que abraçam
Algo que jamais passou pela cabeça desse pessoal, todavia, é que a maioria esmagadora das pessoas que povoam este mundo mundo, vasto mundo, em que se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, mas jamais uma solução, não se encaixa em dualismos, ou em ideologias.
A era das ideologias passou, graças a Deus. Elas já mataram gente o bastante no século 20. O que temos agora são improvisos jazzísticos feitos na ausência de uma harmonia que lhes dê algum sentido. Ruído, em outras palavras. E não há sentido a encontrar neles. O que o papa fala (para voltar ao início deste texto) é simplesmente o que a Igreja sempre disse, mas, numa cultura que nega a possibilidade da existência de um discurso coerente, de – voltando à metáfora da linha anterior – uma “base” harmônica sobre a qual colocar os solos de jazz, até mesmo isto se releva incompreensível.
Imaginem então quando, em vez de 2 mil anos de sabedoria, a base que um Trump, Bolsonaro, Macron, Greta ou quem for tenha seja apenas uma vaga noção de ideias que flutuam no ar, sem exame, sem contestação racional e sem racionalidade alguma. Não tem como se entender, mesmo, e menos ainda se o pode quando o que é dito nos chega através de interpretações delirantes e ideológicas, tentando encaixar em caixinhas do século passado os voos de borboleta mentais dos atores atuais.
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