O “scriptorium”, de onde vem nossa palavra “escritório”, era a parte do mosteiro em que, graças à luz do dia que entrava por janelões, os monges escreviam. Na verdade, no mais das vezes eles não escreviam; copiavam textos antigos antes que os pergaminhos se despedaçassem com o tempo e o uso. Em todo caso, a ideia é que o escritório é o lugar onde se escreve, onde se produz escritos.
Séculos depois, a Revolução Industrial gerou um estranho fenômeno social: a separação usual entre o local de morada e o local de trabalho (ou mesmo a subordinação daquele a este, nas “vilas operárias”). As pessoas passaram a sair de casa para trabalhar, em vez de terem uma oficina na frente ou no térreo e a morada atrás ou em cima dela. Os próprios monges, que trabalhavam tanto na roça quanto no “scriptorium”, moravam no mesmo mosteiro em que ele ficava. Os agricultores também sempre moraram junto à terra que cultivavam.
Era compreensível que, com as enormes máquinas necessárias numa indústria moderna, o trabalho por assim dizer “físico” fosse centralizado quando da Revolução industrial. O que tornava uma tecelagem mecanizada economicamente eficiente, afinal, era o fato de haver uma máquina gigantesca que tecia mais que milhares de tecelões manuais no mesmo tempo de trabalho, com qualidade igual ou superior, sendo operada por meia-dúzia de gatos pingados. Contudo, a moda pegou, e a parte não-mecanizada (os “escritórios”, com contadores, representantes de vendas), via de regra passou a ficar junto às máquinas, ainda que em geral em andares superiores.
Os escritórios modernos são o fruto de uma noção herdada da Revolução Industrial. Trata-se da ideia ultrapassada de que o trabalhador está alugando seu tempo à companhia
De uma certa maneira, a disposição do lar (oficina/loja no térreo e família no sobrado) foi copiada pelas empresas, com a “oficina” (o maquinário pesado) no andar de baixo e o trabalho “de fundo”, que sustenta e distribui a produção sem nela se meter (equivalente comercial da família, de uma certa maneira), nos andares superiores. Mais tarde, a coisa ficou ainda mais louca, com os escritórios indo para o centro da cidade, em prédios que subiam e subiam, tampando as torres das igrejas e substituindo-as como centros de “culto” social, enquanto as máquinas iam para uma zona industrial suburbana.
A partir daí, mesmo os escritórios que em nada dependiam de maquinário (como os de advogados ou contadores autônomos, por exemplo) passaram a separar-se da casa, e a conjunção de ambos num só espaço, mesmo que dividido, sem criancinhas ranhetas correndo por entre os pés dos clientes, passou a ser tida como “pouco profissional”.
Vingou então a ideia de ser necessário sair de casa para trabalhar. Como isso, ainda por cima, durante cerca de dois séculos, foi uma função tida por masculina, as pobres mulheres – que antes participavam dos empreendimentos econômicos familiares, fossem eles artesanais ou rurais, como responsáveis pela venda e contabilidade – viram-se presas em casa, tirando pó de móveis e arrumando bricabraques em cristaleiras. Surgiu aí a fantasia da mulher encarcerada como “anjo do lar”, bonita e burra, incapaz de sequer entender as coisas muito “difíceis” do mundo “masculino”… de que suas mães e avós sempre se haviam encarregado. A única exceção, que frequentemente era restrita a solteirinhas e solteironas, era o trabalho de professora (por ser afim de “cuidar de crianças”) e secretária (a “esposa profissional” de um homem importante, a encarregada de seus “segredos” de trabalho).
O escritório moderno, assim, era um local essencialmente masculino, um mundo à parte em que os homens, após uma viagem relativamente longa (e que se foi estender tremendamente com o crescimento das megalópoles, sendo hoje comum viagens de mais de uma ou mesmo duas horas de ida e outro tanto de volta do trabalho), faziam o trabalho semi-intelectual dos quadros administrativos duma grande empresa. Até hoje, curiosamente, o empregado de escritório, em francês e em inglês, é dito “clérigo” (“clerk”/”clerc”), por analogia aos monges medievais.
Com o tempo, todavia, as mulheres felizmente recuperaram seu direito inalienável de ir e vir e passaram a trabalhar, elas também, nesses escritórios modernos. Para muitas, todavia, este trabalho implica hoje numa escolha dolorosa: ou bem a mulher “trabalha fora” e terceiriza o cuidado dos filhos, normalmente a outra mulher mais pobre, ou bem ela fica em casa com eles e não “trabalha fora”. Do mesmo modo, aumentaram exponencialmente os casos de adultério, que antes podiam ser mais ou menos previsíveis entre os executivos e suas secretárias (que, mal que bem, duma certa forma eram, como disse acima, a “esposa do trabalho”, e que – não só por isso – deveriam ser solteiras), atingindo enormes números de pessoas que, por razões profissionais, veem-se obrigadas a permanecer mais tempo acordadas na companhia de colegas de trabalho do sexo oposto que na do cônjuge.
Os escritórios modernos são ainda o fruto de uma outra noção – além da espacial – herdada da Revolução Industrial. Trata-se da ideia de que, mais que o trabalho propriamente dito, o trabalhador está alugando o seu tempo à companhia. É algo que faz sentido quando o homem é reduzido à função de alimentador de uma máquina que trabalha sempre no mesmo ritmo: se ela tem alguém a alimentá-la oito horas por dia, ela trabalhará exatamente o dobro do que se só houvesse alguém quatro horas por dia a fazê-lo.
Escritórios, na verdade, simplesmente não fazem mais sequer o pouco sentido que já fizeram, mais ainda com os meios de comunicação de hoje
O trabalho de escritório, porém, não funciona assim. Na verdade, pouco se trabalha num escritório, quando se compara, por exemplo, a função do trabalhador de escritório à de um professor, que enquanto estiver na sala de aula não pode sequer perder um ou dois minutos bebendo água, e que terá depois que corrigir provas e exercícios, preparar aulas, etc., em casa.
Todo o tempo que um professor dedica ao trabalho é efetivamente tempo de trabalho, enquanto são raros os trabalhadores de escritório que cheguem a dedicar ao trabalho a maior parte do tempo que passam lá. É um minutinho para pensar, outro para regular o ar, outro para beber água ou café, outro para conversar com um colega, outro para ler as notícias… Que dirá, então, quando ao tempo no escritório se soma o resto do tempo que passam fora de casa por conta dele, no transporte de e para o trabalho, que a própria legislação trabalhista considera de uma certa maneira tempo de trabalho, para efeitos de classificação de acidentes.
Escritórios, na verdade, simplesmente não fazem mais sequer o pouco sentido que já fizeram, mais ainda com os meios de comunicação de hoje. Se antes se poderia justificar juntar todo o pessoal de contabilidade e vendas duma firma no mesmo lugar pela necessidade de cuidado com os enormes livros em que se escrevia manualmente cada entrada e saída, hoje é tudo digital. Mesmo as (poucas) vantagens decorrentes de se ter um ou outro colega com quem se precisa falar de algo relacionado ao trabalho duas portas abaixo no mesmo corredor hoje em dia praticamente desapareceram, com a quase totalidade das firmas recorrendo a grupos de zap, e-mail, sistemas de intranet e outros mecanismos de comunicação que acabam sendo mais eficientes que levantar-se e andar alguns metros.
Isto, espero, está podendo ser descoberto agora com o coronga. Conheço um rapaz cujo feitor de escravos, digo, chefe, instalou em seu computador um programa para vigiar se ele está efetivamente passando as suas oito horas diárias de trabalho (o “aluguel do tempo” de que falei acima) empregando ativamente os programas do trabalho, não passeando por redes sociais… como provavelmente ele teria estado se estivesse no escritório. Provavelmente, para susto do empregador, a “produtividade” (este ídolo mesquinho da modernidade) do rapaz aumentará tremendamente.
E ele não será a exceção; mesmo os que têm chefes menos desumanos acabam descobrindo, tendo a oportunidade de trabalhar em casa, que conseguem fazer o mesmo que faziam em oito horas ou mais em um tempo muito mais curto quando podem ver o sorriso dos filhos, almoçar com o cônjuge, ou qualquer outra destas pequenas delicadezas que fazem a vida valer a pena. Afinal, o trabalho é o que se faz para manter a família, não o contrário, e trabalhar junto à família faz muito mais sentido que fugir dela para ajudá-la.
Ninguém sabe nem pode saber quais serão os efeitos desta extraordinária experiência social de quarentena coletiva. Qualquer exercício de futurologia é por sua própria natureza fútil. Mas a descoberta do óbvio está sempre atrasada, e esta pode ser a ocasião de fazê-la em relação ao escritório da era industrial. Estamos já na era pós-industrial; já há muita gente boa que voltou ao esquema clássico de trabalho e casa juntos. Conheço, por exemplo, vários torneiros que montaram oficinas próprias, em cujo sobrado moram, e nelas produzem peças depois compradas por numa grande montadora industrial. Do mesmo modo, está cada vez mais comum que médicos e outros profissionais liberais deixem de lado os preconceitos e trabalhem de casa ou de perto de casa.
Quem ainda estava preso ao modelo absurdo da Era industrial é, em geral, o pessoal dos grandes escritórios, das grandes firmas. É até interessante perceber que nos EUA – filhos da Inglaterra que nos deu o escritório moderno – uma firma novidadosa de aluguel de escritórios “chiques”, do modelo novo, pós-moderno, à moda Google, que oferece de creche, pula-pulas e mesas de sinuca a café e docinhos gratuitos (como se isso pudesse substituir o aconchego familiar…) foi à falência catastrófica e espetacular pouco antes do coronga.
Talvez isto indique uma direção que pode receber vento nas velas agora, com a súbita descoberta da inutilidade premente de passar tantas horas no trânsito para chegar a um lugar onde se faz menos em mais tempo. Isso pode levar a que se deixe de lado a ideia do trabalhador que aluga seu tempo, e volte a predominar a do que vende o seu trabalho, feito por ele em casa, que é o lugar de se estar. Para homens e para mulheres.
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