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Bem sei que é provável que a maioria da minha quase meia-dúzia de leitores já esteja lá um tanto cansada da palavra “fascista” e seus correlatos. Afinal, na briga política que tomou conta do Brasil nestes últimos anos, parece que quem está à direita de FHC é “fascista” para a esquerda, e quem estiver tanto com ele quanto à sua esquerda é “comunista” para a direita. Já diziam, todavia, tanto Aristóteles quanto Confúcio (para que não me acusem de supremacismo branco, que isto de acusar agora é moda) que para pensar direito a primeira coisa a fazer é definir bem os termos. Palavras vagas demais acabam não significando nada, e servindo apenas para criar confusão mental. Propositadamente ou não.
Neste texto, então, ao usar os termos “fascismo”, “comunismo” e seus correlatos, estarei me referindo aos sentidos estritos destes termos tal como eram empregados em autodefinições nos anos 1930, quando competiam entre si pelo domínio do mundo. Digo “autodefinições” por duas razões simples: o termo “fascista” (e seus correlatos) começou a ser empregado já naquela época pela União Soviética stalinista e seus aliados para referir-se a toda e qualquer força política oposta à sua dominação tanto do mundo quanto da própria esquerda. Assim, na Guerra Civil Espanhola, por exemplo, no momento em que as milícias stalinistas conseguiram o domínio quase absoluto da força de combate republicana, os anarquistas e trotskistas viram-se surpreendentemente tachados de “fascistas” pelos antigos aliados e novos donos do poder (e de todo o ouro da Coroa espanhola, embarcado para a União Soviética e desde então desaparecido, aliás). O Orwell tomou um susto tão grande que, depois de quase não conseguir fugir de lá a tempo, escreveu 1984 e A Revolução dos Bichos.
Por outro lado, ao contrário do que veio a acontecer após a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial, naquela época os fascistas ainda batiam no peito com orgulho para proclamar-se como tais. Até mesmo os membros de milícias que atendiam por outros nomes (como os próprios nazistas, os falangistas espanhóis e outros menos votados) percebiam como elogio tal denominação, ainda que procurassem apontar as diferenças de seus movimentos em relação ao fascismo italiano original.
Na briga política que tomou conta do Brasil nestes últimos anos, parece que quem está à direita de FHC é “fascista” para a esquerda, e quem estiver tanto com ele quanto à sua esquerda é “comunista” para a direita
As características principais do fascismo, tanto o original italiano quanto os de outros países, são fáceis de perceber. A primeira dentre elas é que se tratava sempre de um movimento de massa, organizado, uniformizado e afeito a ações violentas, como dissolver a bordoadas os comícios de outros grupos ideológicos. O próprio termo vem dos Fasci Italiani di Combattimento, “Feixes Italianos de Combate” – “Feixes” porque é fácil quebrar um graveto, mas dificílimo quebrar um feixe deles –, a milícia de Mussolini.
Desta ação coletiva, em “feixes”, decorre outra característica essencial desta forma de boçalidade organizada, que é o culto à juventude varonil. Para os fascistas, o cidadão-modelo era um rapaz forte, violento porém disciplinado; os idosos e as mulheres eram até tolerados, mas a juventude – e nisso está, aliás, o principal fator revolucionário no fascismo – era percebida como valendo muito mais. A opinião do jovem (fascista, claro) valeria mais que a do idoso, até por ser mais simples, composta de preto e branco absolutos, sem os meios-tons que a experiência do idoso tende a perceber. Como toda ideologia, comunismo inclusive, afinal, o fascismo é uma forma de hipersimplificação do mundo, uma tentativa de eliminar o “irrelevante” e ater-se apenas a um “essencial”. Como a natureza humana, e consequentemente a sociedade, não é um estudo em alto contraste, é exatamente por isso que nenhuma ideologia consegue manter-se diante da realidade, e sempre acaba “tendo de” matar quem não se encaixe em sua visão de mundo.
Além disso, ao contrário do comunismo, que se pretendia “científico”, crendo ter a chave da interpretação dos processos históricos no materialismo dialético, que os tornaria capazes de prever o futuro das sociedades e apressá-lo, o fascismo é fundamentalmente incoerente. Sua fascinação com o futuro, por exemplo, apesar de sempre presente, tinha uma natureza muito mais estética que planificadora. Muito do apelo fascista, inclusive, vinha do fato de ser uma ideologia que apelava a uma estética futurista, mas na prática preocupava-se apenas com questões do momento. Enquanto o comunismo era propositadamente feio e mal-arrumado (os relatos da Guerra Civil Espanhola quanto às roupas usadas pelas pessoas nas ruas das cidades dominadas pelos comunistas e pelos fascistas – mais ainda nas que trocaram de lado algumas vezes ao longo do embate – mostram bem isto: quando a cidade estava dominada pelos comunistas, as gravatas e a brilhantina eram praticamente proibidas; quando pelos fascistas, um fio de cabelo fora do lugar já era razão para desconfiança política), o fascismo prezava por uma aparência de ordem: uniformes impecáveis (os das SS nazistas foram desenhados por ninguém menos que Hugo Boss), cidades limpíssimas, trens saindo na hora, veículos velozes e aerodinâmicos, e o que mais pudesse dar a impressão estética de que se estava mergulhando num futuro de progresso ilimitado.
À preocupação estética com o futuro por parte do fascismo correspondia no comunismo uma preocupação social. A aparência de ordem neste era mais que irrelevante: era mal-vista. A ordem, cria-se nos meios comunistas, viria algo magicamente com o triunfo da Revolução e com o fim da propriedade privada dos meios de produção. Em grande medida, não era exatamente algo a ser construído; cria-se, nestes meios, que a História (com agá maiúsculo) andava como que em trilhos, e bastaria abrir-lhe caminho, eliminando o que era percebido como reação ao progresso histórico, para que este se manifestasse. Assim, a principal preocupação do revolucionário comunista era a destruição da ordem burguesa; como roupa passada, rua limpa e outros detalhes estéticos tão importantes para o fascismo seriam resquícios reacionários desta ordem, eles eram antes alvo de destruição que de construção, reforma ou manutenção. O que aos olhos dos não comunistas era evidentemente percebido como uma rápida derrocada no caos era tido por estes como uma limpeza dos trilhos da História, para que ela pudesse avançar célere.
O momento histórico em que se digladiaram estas duas escolas de totalitarismo, ainda por cima, era algo que para o brasileiro médio de hoje é difícil até de imaginar. Havia acabado de desabar, na Primeira Guerra Mundial – guerra tão violenta e tão absurda que era literalmente considerada a “guerra para acabar com todas as guerras” –, uma ordem social e geopolítica que a todos parecera acabada, eterna, imortal. A Europa que entrou na Primeira Guerra Mundial e a que dela saiu eram tão diferentes entre si que, numa escala menor, o foram a Rússia soviética dos anos 1980 e a Rússia cleptocrática da década subsequente. Tudo o que era sólido se havia desmanchado no ar, e tudo, exatamente por isto, parecia estar em um processo de louca transição.
Coisas inimagináveis dez anos antes subitamente se haviam tornado quase normais, e coisas que pareciam inabaláveis desapareceram. Das roupas das moças – a minissaia vem daquele tempo, após centenas de anos de panos enormes a esconder-lhes as pernas – ao surgimento súbito de movimentos homossexuais assumidos (do homossexualismo hipermásculo das SA de Ernst Röhm aos drag queens dos cabarés berlinenses e do Instituto de Ciências Sexuais do Dr. Magnus Hirschfeld, a Tia Magnésia, para nos atermos à Alemanha); do fim do Império Austro-Húngaro que tirou os Habsburgo do último grande trono após quase 500 anos de domínio da Europa ao surgimento do feminismo, com as sufragistas demandando publicamente o direito ao voto para as mulheres; do surgimento e relativa popularização dos automóveis, tão velozes quanto trens, mas de uso particular, à espantosamente rápida adoção generalizada da eletricidade na iluminação e nas telecomunicações: da noite para o dia o mundo parecia outro. E este outro mundo era um mundo ideológico, um mundo em que as massas adotavam projetos prontos de “um mundo melhor” a construir pela força, digladiando-se nas ruas em defesa de suas ideologias, de seus líderes, de seus projetos de recriação da natureza humana.
A Europa que entrou na Primeira Guerra Mundial e a que dela saiu eram totalmente diferentes entre si. Tudo o que era sólido se havia desmanchado no ar, e tudo, exatamente por isto, parecia estar em um processo de louca transição
Fala-se muito hoje em dia da enorme diferença entre os nossos tempos, com celulares e internet, e os tempos imediatamente anteriores. A diferença, todavia, empalidece perto daquela por que passaram os europeus no primeiro quarto do século passado. Evidentemente, tanta e tamanha mudança não poderia deixar de provocar reações emocionais variadas, do medo à esperança, do entusiasmo ao esforço de ordenação do caos aparente. Curiosamente, em grande medida foi do desassossego emocional e psicológico generalizado, mas necessariamente percebido e vivido no íntimo de cada um, que surgiram as ideologias hipersimplificadoras totalitárias. Elas basicamente, fossem comunistas ou fascistas, ofereciam aos apavorados uma figura paterna substituta que saberia o que estava fazendo e botaria ordem na casa. Veja só que belezinha: você não precisa mais tomar decisões difíceis num mundo em turbulência e dissolução! Papai Stálin/Hitler/Mussolini/Franco o fará por você. Ele já identificou a raiz de todos os problemas, e só o que é preciso fazer é unir-se às massas, dissolver sua individualidade na multidão ouriçada para tornar-se apenas mais uma pecinha na ferramenta coletiva, no golem humano que ele usa para consertar a sociedade, e tudo correrá bem. Um outro mundo é possível.
É por isto que foi tão fácil aos movimentos totalitários conquistar o seu primeiro elemento essencial dentre os que elenquei acima: a adesão de massas. Não existiam nem famílias nem indivíduos no comunismo ou no fascismo. A milícia, a célula de ação a que o militante pertencia é que demandava a sua lealdade e pertencimento, e fora dela ele não era ninguém. Dentro dela, cercado de pessoas que pensavam igual (ou, antes, igualmente abdicavam de pensar em prol do mesmo Grande Líder carismático), um graveto dum feixe de outros jovens rapazes fortes e vestidos do mesmo modo, não havia como ter medo. Aliás, diga-se de passagem, o componente homoerótico do fascismo – seja abertamente nas SA ou nos haréns de rapazotes em flor mantidos por comandantes de campos de extermínio, ou simplesmente no culto estético da força física masculina, com uma “arte” típica composta de muito pouco mais que estátuas de rapazes musculosos desnudos – não apenas é inegável como faz com que até hoje haja uma área de intersecção entre a celebração da homossexualidade e o apego ao fascismo; taí o Milo Yiannopoulos que não me deixa mentir.
Passo agora, então, 90 anos à frente. Tendo em vista o que acabo de apresentar, quais seriam as semelhanças e diferenças entre a súbita ascensão do populismo de direita mundo afora nos últimos anos e a ascensão do fascismo na Europa 90 anos antes? Afinal, é indubitável que haja hoje em posições privilegiadas gente que teria se sentido em casa numa milícia fascista de 1930. Gente que adoraria fazer-se parte da “máquina do futuro” fascista, gente que adotaria a estética fascista com gosto e garbo. Mas será que isto basta para que se possa comparar o fascismo d’antanho e o populismo de direita de hoje? Seriam as camisetas da CBF as camisas pretas ou pardas de nossos tempos?!
A primeira pergunta a responder, a meu ver, é a que diz respeito ao que era a própria razão de ser do fascismo, ainda mais que a estética, ainda mais que a segurança de ter um Grande Líder a pensar no nosso lugar: o seu caráter de movimento coletivo, em que as individualidades eram anuladas em favor do pertencimento a uma milícia anônima, organizada, uniformizada, e voltada a ações violentas. É muito mais assustador, por exemplo, para quem conhece um pouco que seja de história, um vídeo do “Exército da Universal” que andou rolando por aí há uns poucos anos que quaisquer casos pontuais de boçalidade desorganizada (agressões a travestis, atos racistas...). Isto porque o essencial do fascismo, o que faz do fascismo fascismo, é a abdicação da individualidade em prol da milícia. É o graveto que se torna parte do feixe e com isso deixa de ser graveto, deixa de ser fraco.
O uniforme é um sinal claro disso; mais que mero símbolo de pertencimento, ele é uma espécie de fantasia de super-herói em que a pessoa deixa de ser o Fulano, filho de Beltrano e Sicrana, e passa a ser “um camisa parda”. E nunca, lembro, há apenas um; a solidão, a individualidade, para o fascista, é o que há de mais apavorante. Se um apanha na rua, ele logo volta com mais 20, todos exatamente iguais, para dominar pela violência. O fascista, aliás, precisa sempre de alguém em quem bater (preferencialmente em 20 contra um ou dois), por perceber-se forte justamente apenas na estrita medida em que é parte de uma milícia, duma gangue de boçais iguaizinhos que ganha sempre pela mera força do número.
O boçal solitário ou acompanhado apenas de dois ou três outros boçais da mesma laia certamente adoraria que houvesse uma milícia fascista em que se alistar, mas nem ele nem seus atos pontuais podem ser considerados sinais duma suposta presença política do fascismo. A inexistência de movimento de massa é a impossibilidade do fascismo, por definição. Não existe fascista individual, como não existe coletivo capitalista (antes que venham reclamar, aponto que um oligopólio é apenas um monopólio que ainda não ficou pronto; havendo a possibilidade, qualquer oligopolista se transforma em monopolista com um sorriso de orelha a orelha e saca aliviado do bolso a maquininha de subir preços).
A percepção subjetiva e pessoal de incerteza é o que possibilitou o surgimento e o sucesso das “certezas” ideológicas
O populismo de hoje, ao contrário do fascismo d’antanho que descrevi acima, é fruto, sim, de uma incerteza social generalizada. Esta, como as d’antanho, caracteriza-se em grande medida pelas suas consequências emocionais e psicológicas, ainda mais que por mudanças efetivas na forma de viver o dia a dia. Está certo que o caos que dominou a Alemanha do entreguerras, por exemplo, com uma hiperinflação de dar inveja no Sarney, choques de milícias ideológicas pelas ruas, surgimento “súbito” de multidões de judeus pobres oriundos da Europa Oriental (coisa que ajudou tremendamente a vender o peixe podre do antissemitismo nazista, aliás) e outros fenômenos sociais, ajudou, e muito, na ascensão do nazifascismo. Hitler era visto como o sujeito que ia “botar ordem na casa”. Mussolini, do mesmo modo, que Hitler via como um modelo, havia prometido (e cumprido a promessa de) “fazer os trens saírem na hora”. Ou seja, havia uma sensação de desordem social, e esta desordem levava a buscar uma ordem, fosse ela fascista ou comunista.
Mas mesmo assim, pior que o atraso dos trens, pior que a hiperinflação, era a incerteza total quanto ao próprio futuro, a imprevisibilidade comprovada fartamente no passado muito próximo das mudanças sociais. As pessoas sentiam-se inseguras no seu próprio âmago, sem saber se amanhã estaria ali algo que sempre lhes parecera eterno, exatamente por terem sido destruídas tantas instituições que pareciam eternas, substituídas por um caleidoscópio de caóticas novidades. Ou seja: a percepção subjetiva e pessoal de incerteza é o que possibilitou o surgimento e o sucesso das “certezas” ideológicas.
Já nos nossos tempos, a sensação não é tanto de incerteza pessoal nem de fluidez da sociedade como um todo. Ao contrário, até: em grande medida, o populismo é um movimento reacionário antielite, que se percebe como defensor de coisas eternas, que jamais se desmanchariam, contra a falta de respeito para com elas que seria demonstrada pelas elites. Não há insegurança causada pelo desmanche de uma sociedade, mas irritação com o que é percebido como uma traição dos clérigos, um surto de loucura coletiva que atinge uma casta tremendamente privilegiada e apenas ela, fazendo-a trabalhar incessantemente numa tentativa frustrada, mas irritante, de desmanche do que estava, está, e sempre estará solidamente ali. Do bom senso. Do evidente. Do bíblico. Esta elite de “bem-pensantes” – dita “comunista” no jargão do populismo de direita hodierno; veremos em que medida isto tem ou não um fundo de verdade a seguir –, composta da união entre a grande mídia, a academia e as classes médias altas das capitais, é percebida pela população como tendo traído a própria sociedade de que deveria ser defensora.
Daí a busca não de um líder (como no fascismo ou mesmo no comunismo de há 90 anos), mas de um outsider: alguém que não esteja com a elite, mas seja, ao contrário, representativo da massa. Um homem normal, um tiozão. Ao contrário de um Mussolini ou de um Stálin, não há “homens de aço” entre os políticos populistas de hoje. Costumo dizer que Bolsonaro, por exemplo, poderia ser substituído por um taxista aleatório qualquer, que a diferença seria mínima. Seu eleitorado sabe disso, e é por isso que ele foi eleito. Ele não é um “homem de aço”, é o tio do pavê. O taxista. No máximo o síndico do prédio.
Do mesmo modo, nos Estados Unidos (cujo mito meritocrático finge que o self-made man seja a regra), o Trump foi eleito justamente por vender a imagem de self-made man (sendo contudo um filhinho de papai nascido em berço de ouro), cafona o bastante para que o “branco” pobre se identifique com ele, vindo de um reality show televisivo, não da política partidária, e por aí vai. Ele é o tio do pavê do sonho americano: o tio rico que dá um emprego pro sobrinho pobre, mas no primeiro erro grave dele grita que ele está despedido. Assim o sobrinho se sente competente, e pode dormir tranquilo sabendo que chegou aonde chegou por esforço próprio. Aliás, o fato de o seu bordão na tevê ter sido justamente “você está despedido” certamente o ajudou tremendamente, na medida em que era exatamente isso que aquele enorme eleitorado apodado de “saco de deploráveis” pela Hillary Clinton queria fazer com os políticos “de sempre”. Mutatis mutandis, o mesmo pode ser dito dos presidentes da Hungria, Polônia etc. Este é o populismo de direita atual, estes são seus líderes. Se a família Le Pen conseguisse perceber isso claramente, já teria conquistado o governo francês, aliás.
Outra característica do populismo do momento é a sua dependência do sistema que ele veio em tese “purificar”. No Brasil, Bolsonaro na prática governa com uma baioneta de Dâmocles por sobre a cabeça, sabendo que jamais teria apoio direto das Forças Armadas, que mal e mal o toleram e a ele preferem, de longe, o seu vice. No confronto com o STF, por exemplo, ele sabe perfeitamente que pedir aos generais um cabo e um soldado significaria ceder no ato a faixa ao general Mourão.
Ao contrário de um Mussolini ou de um Stálin, não há “homens de aço” entre os políticos populistas de hoje
Nos EUA, do mesmo modo, Trump vem sendo sistematicamente sabotado pelo FBI, pela CIA e pelo próprio serviço secreto, e o partido de oposição está agora ameaçando convocar as Forças Armadas para depô-lo se ele não aceitar ter perdido... uma eleição que ainda nem aconteceu. Suas promessas de campanha de retirar as tropas americanas do Afeganistão e da Síria e fechar as fronteiras à imigração foram tão sistematicamente sabotadas pelo sistema (o Deep State) que a única coisa de que ele ainda pode se orgulhar é de haver conseguido não começar nenhuma nova guerra interminável em prol do complexo industrial-militar que ele odeia (e que reciprocamente também o odeia).
Ora, o fascismo, ao contrário, tinha como princípio primeiro não depender de ninguém. Tendo sempre milícias organizadas desde muito antes da chegada ao poder, uma de suas primeiras medidas costumeiras ao tomar o poder era criar algum mecanismo pelo qual estas milícias retirassem das Forças Armadas e polícias oficiais o monopólio da força. Do mesmo modo, os partidos de oposição rapidamente eram eliminados, com ou sem desculpa para tal. Quando Mussolini dizia “tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”, a sua noção de “Estado” estava mais próxima da célebre boutade de Luís XIV da França, “o Estado sou eu”, que de qualquer noção democrática de tal instituição. O fascismo é o líder e uma massa organizada que age como seus punhos; chegando ao poder, o Estado passa a também servir-lhe de punhos, e ai de quem tentar impedi-lo. Esta é a sua natureza.
Isto se explica justamente pela necessidade, percebida por praticamente todos nos anos 1930, de dar ordem a uma sociedade cujas bases tidas por mais sólidas haviam subitamente desabado. Em tal situação, era compreensível (mais ainda por ser novidade o pensamento ideológico, que ainda não havia demonstrado sua inexorável tendência ao genocídio, fartamente comprovada no decorrer do século 20) que se tentasse construir algo novo. A ordem velha, afinal, havia caído: rei morto, rei posto. Já hoje o mecanismo é o exato inverso. A ordem, pelo menos na percepção subjetiva dos apoiadores do populismo atual, permanece e é eterna (o provincianismo temporal impede que percebam o quanto isto é ilusório). O que eles buscam na eleição de uma pessoa “como eles” é apenas impedir a irritante e ofensiva ação de sapa duma elite percebida como traidora.
Que elite é esta? Qual é esta sua ação? Como ela se opera? E, finalmente, como a sociedade a percebe? Estas são as perguntas essenciais para que se entenda o fenômeno do populismo do início do terceiro milênio. A elite, poder-se-ia resumir, é basicamente aquela parte da sociedade que reverbera as pautas da esquerda identitária norte-americana ligada ao Partido Democrata de lá. Há enormes forças econômicas trabalhando com este mesmo objetivo, dos multimilionários da informática americanos às grandes fundações (Ford etc.), passando por George Soros (que tende a ser apontado como cabeça de tudo pelos populistas, por necessidade política de identificação de uma dada pessoa como o vilão da história), e vários organismos da ONU e assemelhados.
A ação destas forças, na percepção da direita populista, acontece em dois planos simultâneos: o da mudança legislativa (preferencialmente via ativismo judiciário, como foi o caso da legalização do aborto de anencéfalos no Brasil) e o da hegemonia do discurso. A existência percebida desta hegemonia é interpretada pelos intelectuais do populismo como um sucesso da tática gramscista, o que aliás explica em grande medida que toda a esquerda seja considerada por eles “comunista”. É irrelevante para eles o fato de que Gramsci giraria como um pião no túmulo à ideia de ver o seu nome ligado a movimentos de identidade baseada em desejos sexuais ou cor de pele, que ele perceberia como falsa consciência de (falsa) classe a serviço da superestrutura burguesa decadente para afastar o proletariado da luta de classes real.
Para o eleitorado populista, então, a percepção generalizada é de que a mídia e a academia (incluindo nisto os professores de escola de seus filhos e netos) subitamente entraram numa espécie de loucura coletiva, em que tudo gira em torno de sexo e cor da pele. E, para piorar, com juízos de valor opostos aos que eles irrefletidamente consideram evidentes. É claro que há diferenças bastante grandes entre como isto se opera na “matriz” americana e nas “filiais” do Terceiro e do antigo Segundo Mundos: nos EUA, a cultura de base calvinista já tende a uma binaridade em que cada um dos forçosamente dois partidos considera que os apoiadores do outro são ou burros ou mal-intencionados, sem outra opção. O populismo, por isso, sequestrou lá o Partido Republicano, considerado mais próximo daquilo que querem preservar em alguns pontos percebidos como cruciais. Lá, o cerne do eleitorado populista é a população “branca”, anglo-saxã, protestante pentecostal, pobre, habitante do interior, sem educação superior, e com mais de 30 anos. O mesmo grupo demográfico que vem sendo varrido pela crise de vício em opioides e pelo suicídio.
A elite, poder-se-ia resumir, é basicamente aquela parte da sociedade que reverbera as pautas da esquerda identitária norte-americana ligada ao Partido Democrata de lá
Para estes, que lembram ou imaginam um “mundo perfeito” do Pós-Guerra, em que os EUA eram o país dos brancos e não haveria conflito racial por “os pretos saberem o lugar deles”, a súbita valorização da identidade racial “de cor” (basicamente qualquer ascendência que não norte-europeia) é apavorante. E quando a isso se soma a perda de poder aquisitivo e o desemprego generalizados entre o antigo proletariado branco, devido à terceirização de quase toda a fabricação industrial para o Terceiro Mundo, falar-lhes de “privilégio branco” é mais que ofensivo: é cruel.
No Brasil, claro, a situação é totalmente diferente em quase todos os aspectos. Só para começar, a nossa sociedade não aceita binarismos, muito pelo contrário, e foge ao conflito aberto. Enquanto os EUA têm “brancos” e “pretos”, nós temos centenas de termos que dependem não apenas da cor da pele, mas do sexo, da beleza, da classe social etc., de modo a – justamente – evitar binarismos que nos forcem a adotar uma posição fixa. Nossa maior instituição cultural é a “turma do deixa-disso”, que se alevanta a cada vez que um conflito começa a ficar “feio”. A intensidade da briga política no Brasil de hoje, inclusive, mostra o quanto suas causas (de que estamos aqui tentando tratar) são percebidas como importantes.
E quais são estas? A primeira, diria eu, é a que fez a fama do atual bolsopresidente durante suas mais de três décadas no baixo clero da Câmara. Um político que foi inicialmente eleito como uma espécie de sindicalista dos militares, fã de Hugo Chávez e favorável ao aborto, tornou-se popular por sua costumeira e reiterada reação à valorização das identidades baseadas (ou percebidas como baseadas, o que dá exatamente na mesma) em comportamentos sexuais minoritários que sempre haviam sido tolerados, mas que culturalmente não se aceita serem festejados. Uma coisa é Cauby Peixoto, Clóvis Bornay ou Clodovil deixarem exuberantemente clara a orientação sexual deles; outra, completamente diferente, é que uniões entre pessoas do mesmo sexo (que sempre houve e sempre foram toleradas no Brasil) sejam tratadas por casamento, com a mídia tratando disso como se fosse a coisa mais linda do mundo e ameaçando criminalizar a expressão do desgosto em relação a isso. Note-se que não estou fazendo juízo de valor, mas descrevendo uma percepção popular que, justamente por sê-lo, é muito menos matizada que a minha própria opinião de quem pensa essas coisas profissionalmente e por formação.
A importação do binarismo americano, pelo qual algo é sempre ou bem 100% correto (“de Deus”, “do bem” etc.) ou bem 100% errado, não foi percebida pelo grosso da população brasileira como inversão de valores, tal como ocorreu nos EUA. Ela foi (e é, na medida em que continua existindo) considerada um atentado grosseiro à virtude brasileiríssima de viver e deixar viver: a traição de exigir mais e mais, de agarrar o braço quando se dá a mão, demandando rudemente palmas para algo que sempre havia sido paciente e gentilmente tolerado (lembrando que só se tolera algo de que não se gosta, e que estou falando de percepção subjetiva). Em outras palavras, as pessoas sentiram-se ultrajadas, traídas pela mídia e pela academia, como alguém que fizesse um favor a outra pessoa para depois subitamente receber ataques quando esperava gratidão.
Foi assim que Bolsonaro fez sua fama, tornando-se, aliás de modo que eu julgo ter-lhe sido uma surpresa completa, a pessoa certa no lugar exato no momento preciso. Era ele o único a levantar-se contra o “kit gay” (independentemente de haver ou não “kit gay”; o que importa no caso é o Zeitgeist). Era ele o único a falar o que lhe desse na telha, fazendo questão de ser o mais “politicamente incorreto” possível, e ganhando com isso precioso tempo de atenção da mídia (logo, presença na sala de estar do eleitorado em horário nobre), que por sua vez não percebia que a população não partilhava em absoluto de seu juízo negativo de valor acerca dos pronunciamentos do bolsodeputado. O que a mídia apresentava como louco caricato era reconhecido como “gente como a gente, com a cabeça no lugar” por quem tem tios e primos taxistas, porteiros ou sargentos fazendo a piada do pavê nas reuniões de família.
O resultado é que Bolsonaro viu-se subitamente correndo sozinho quando a Lava Jato escancarou a podridão do petismo – que havia galgado a rampa do Planalto como, na imortal expressão de Brizola, uma “UDN de macacão”, incorruptível, com um discurso de “ética” pra lá e pra cá, e encabeçado por um Lulinha Paz & Amor que a população percebeu como traidor ao defender os identitarismos importados da gringa. O que elegeu Lula elegeu Bolsonaro, aliás: a percepção popular dele como “alguém como nós”. E simplesmente não havia sequer um candidato que dividisse seus votos: com a exceção do Cabo Daciolo, pouco conhecido e evidentemente mais louco que o Bátima depois de tomar chá de cogumelo mofado, todos os demais eram percebidos como elementos intercambiáveis da elite traidora. Bolsonaro, na prática, concorreu contra si mesmo e, fora possível uma recontagem de votos, não duvido que houvesse sido eleito já no primeiro turno. Evidentemente, o atentado só fez aumentar o seu prestígio junto ao eleitorado, que se considerava esfaqueado pelas costas pela elite e viu no ataque uma tentativa desesperada por parte desta de retirar do páreo o único representante do famoso Povão.
A nossa sociedade não aceita binarismos, muito pelo contrário, e foge ao conflito aberto
Finalmente: tendo visto as claríssimas diferenças entre o fascismo e o populismo de direita atual, haveria então alguma chance de ascensão ao poder de algum fascismo real, em oposição à simples presença de pessoas com veleidades fascistas ocupando lugares no governo? No Brasil, a meu ver, a chance é zero. Nossa cultura é avessa a organização exógena e a divisões e recortes excessivamente contrastantes, e é isto que o fascismo vende.
Além disto, a situação é totalmente diferente daquela da Europa de 90 anos atrás. A única possibilidade realmente presente de ruptura institucional é que os positivistas comteanos das Forças Armadas deem um golpe, coisa que espero sinceramente que não aconteça, mas que, enquanto o STF continuar a bater de frente com os desejos que a população expressou nas eleições, é sempre uma possibilidade. Mesmo que aconteça um golpe militar, aliás, por quase não haver oposição armada, acho improvável que vão muito além de medidas autoritárias de natureza meramente política: fechamento do Congresso, aposentadoria dos membros atuais do STF, cassação dos direitos políticos de alguns pour encourager les autres etc. A visão de mundo dos militares perceberia estas medidas como “técnicas”, não políticas (o que, aliás, faria com que ficassem sinceramente surpresos com a forte reação... política!). Do mesmo modo, sem reação armada eles dificilmente prenderiam quem quer que fosse se lhes fosse possível impedir-lhe a ação efetiva por outros meios. Mais ainda porque gato escaldado tem medo de água fria, e eles jamais esquecerão o modo como foram vistos e tratados no fim do ciclo militar e durante toda a Nova República.
Nos EUA há alguma chance, mas não sob Trump. Ele não nasceu para Duce ou Führer. Se aparecer alguém com o carisma necessário no lugar certo, é possível que consiga juntar gente suficiente (mormente os membros já armados e organizados das já existentes milícias de extrema-direita; foi a situação alemã, aliás) para a criação de um movimento fascista que pode chegar a tomar o poder em alguns estados centrais. O resto dependerá da reação do Exército americano, que é totalmente imprevisível no momento, sem saber quem seria o chefete fascista. Mas há, sim, chance.
Sem, claro, que esqueçamos que, quando a história se repete, é como farsa, como já disse o famoso subversivo Carlo Marques.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos