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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

O Natal do Verbo

Detalhe da "Adoração dos Pastores", de Giorgione.
Detalhe da "Adoração dos Pastores", de Giorgione. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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2021 anos atrás, nasceu um menino em Belém da Judeia. Mesmo no plano meramente natural – ou seja, se ignorarmos todo e qualquer fato que não os observáveis e mensuráveis –, não houve acontecimento com consequências mais amplas em toda a história registrada. Não é à toa que medimos a partir dele o tempo. Mesmo quem não tem a graça imerecida da Fé católica vive hoje em um mundo modelado pelos corolários lógicos dela, e ela surge naquele menino. Mesmo quem não creia sequer que tenha nascido um menino naquele lugar e naquele dia, ou mesmo quem considere meras lendas piedosas toda a história de Seu nascimento, morte e ressurreição, vive e em grande medida baseia seus padrões morais naquele acontecimento e na crença nele.

Afinal, trata-se da mais completa reviravolta já ocorrida na história. Até então, cada povo tinha sua divindade ou panteão, julgando o certo e o errado a partir do que cresse ser o destino de cada um ao fim desta vida. Até então, a regra era que se considerasse os membros da própria nação “gente de verdade” e os demais algo mais próximo a um bicho ou coisa. Até hoje os nomes que os índios dão a suas tribos podem ser no mais das vezes traduzidos como “pessoas”, “gente” ou equivalente.

Mesmo dentro de uma tribo, mesmo dentro de uma família, o valor de cada pessoa era determinado em função de algum critério que levava uns poucos a valer mais que todos e outros muitos a valer pouco ou nada. Na civilizada Roma pagã, por exemplo, o patriarca de cada família tinha direito de vida e morte sobre os membros de seu clã, independentemente da importância social deles ou de qualquer outro critério. A vida de um escravo tinha, exatamente como a vida de um bicho, um valor totalmente subjetivo. Matamos a galinha e preservamos o cachorrinho de estimação justamente por ser o valor de cada bicho determinado por algo que lhe é totalmente externo. Uma galinha de estimação não vai para a panela e um cachorro de rua atropelado não é de modo algum uma tragédia.

Mesmo quem não creia sequer que tenha nascido um menino em Belém, ou mesmo quem considere meras lendas piedosas toda a história de Seu nascimento, morte e ressurreição, vive e em grande medida baseia seus padrões morais naquele acontecimento e na crença nele

Tudo mudou quando daquele nascimento, daquele Natal original, e a mudança espalhou-se mundo afora até chegar a todas as nações e povos. A reviravolta no próprio sentido de “religião” causada por aquele nascimento vem de um simples ponto de Fé: não era um menino qualquer. Mais ainda; não era apenas um menino que jazia na manjedoura naquela noite fria, nas montanhas da Judeia. Aquele menino, sem deixar de ser plena e perfeitamente um menino, criam e creem todos os cristãos, é o próprio Deus, Criador dos Céus e da Terra, por Quem tudo foi feito.

Nos inúmeros politeísmos em que se dividiu a necessidade humana de buscar o excelso, o Deus “de verdade”, que a filosofia grega trata como “Motor Imóvel” ou “Primeira Causa”, é em geral deixado de lado em prol de uma miríade de divindades menores, mais semelhantes ao homem. Afinal, a distância entre o homem e o Criador do Universo é grande demais para nossas curtas pernas. Daí o culto a um Júpiter lascivo e adúltero, a um Mercúrio embriagado ou a um Vulcano repetidamente traído pela esposa: eles são como nós. Mais ainda, eles são apenas projeções amplificadas do ser humano, com suas forças e fraquezas; no senso mais estrito do termo, são super-homens, mais humanos que nós mesmos. Podem ser convencidos, podem ser comprados, e no fim das contas não são tão mais poderosos que um general qualquer.

Mas naquela estrebaria da Judeia Aquele mesmo Deus infinitamente distante e infinitamente diferente adentrou Sua própria criação como bebezinho indefeso e dependente. O Criador onipotente tornou-se uma criaturinha. E, mais ainda, tornou-se humano. Assumiu a nossa natureza, sem deixar de ser Deus. A partir daquele momento os super-homens do paganismo perderam todo o sentido. Para que se buscaria “subornar” com holocaustos um homem aumentado quando Se fez um de nós Aquele mesmo que criou não apenas o homem, mas os bichos a sacrificar, o planeta onde vivemos, o Sol, a Lua, as estrelas e tudo o que existe?!

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Ao assumir a natureza humana, Ele deu a ela uma infinita dignidade e fez de cada pessoa um conatural do Criador. A partir daquele momento a dignidade humana passou a ter valor intrínseco, e tirar uma vida humana não pôde mais ser como tirar a vida de um bicho qualquer. Não apenas os membros do nosso grupo étnico ou social, mas todos os seres humanos passaram a ser “gente de verdade”. Mais ainda: ao abrir-nos como neném indefeso a porta de um infinito que sempre esteve tão além de nossa natureza, de um Reino em tudo superior ao vulgar Monte Olimpo, o poder terreno passou a subordinar-se a uma realidade mística em que a alma vale muito mais que o corpo e o amor, muito mais que o ouro. O mendigo passou a poder ser, de maneira invisível a nossos olhos, porém mais real que o influxo dos sentidos, superior ao ricaço ou ao poderoso. O Outro, o membro da tribo inimiga, passou a ser nosso próximo.

Daí, da Encarnação do Verbo – termo teológico para Deus fazer-Se homem –, vêm os direitos humanos. Eles não teriam como existir se o pertencimento comum à humanidade não se houvesse subitamente tornado a fonte de uma infinita dignidade; em nenhuma sociedade pré-cristã seria possível descobri-los. E, mais ainda, a nova dignidade humana deu por sua vez origem a outros e outros corolários antes inimagináveis. Deixou de ser o apanágio do raro herói mítico a primazia da consciência, por exemplo. A partir daquele primeiro Natal passou a merecer respeito a consciência de cada pessoa, do rei ao escravo; ganhou valor infinito aquele fruto da razão informada que pode levar a decisões morais contrárias até mesmo ao próprio interesse material, que dirá às leis e regras da sociedade. Para estupefacção dos pagãos, milhares de cristãos, oriundos de todas as camadas da sociedade, preferiram por obediência à consciência morrer dolorosamente a acender um bastãozinho de incenso em culto a alguma divindade pagã – muitas vezes o próprio governante divinizado.

Sendo cada pessoa intrinsecamente dotada de dignidade infinita, passa também a ser dever de toda a sociedade a preservação de todos os direitos secundários – à propriedade, à escolha livre entre constituir família ou manter-se casto, ao julgamento justo por seus pares, ao auxílio na necessidade...

Os direitos humanos não teriam como existir se o pertencimento comum à humanidade não se houvesse subitamente tornado a fonte de uma infinita dignidade; em nenhuma sociedade pré-cristã seria possível descobri-los

A maior mudança social, no entanto, foi provavelmente a da situação da mulher. Fisicamente mais fraca que o homem, a mulher sempre havia sido tratada quase que como propriedade semovente. E minimamente semovente, aliás: afinal, antes do exame de DNA a única maneira de garantir que os herdeiros fossem efetivamente filhos do pai putativo era manter a mulher trancada a sete chaves. Já na história do menininho que nasce na Judeia o papel principal e a dignidade mais excelsa pertencem à Sua mãe. Seu pai putativo sabe não ser o pai biológico, mas assume de bom grado o papel de protetor da mãe e do Filho; durante toda a visita que ela faz à prima, pouco depois de se saber grávida do Menino, o marido da visitada está mudo por obra de um anjo.

Para quem crê na Encarnação do Verbo, toda a Criação foi glorificada e elevada quando o Eterno adentrou o tempo e o espaço, eles mesmos criaturas suas. Dentre todas as criaturas, entretanto, a mais perfeita e mais excelsa, a mais amada pelo Criador, é uma mulher. Acima dos anjos, acima dos homens, acima das galáxias e vastidões do espaço e do tempo está uma mulher. É a mesma Mãe do Menino, filha de Deus Pai e esposa de Deus Espírito Santo, a Rainha dos Céus e da Terra, superior em muito a todas as demais criaturas. Como continuar a tratar as mulheres como gado quando o primeiro lugar compete a uma delas? Impossível. Daí que no momento de maior cristianização da sociedade europeia tenha havido tantas mulheres em posição de poder; nada mais natural que repetir na Terra o que há nos Céus.

Evidentemente tal reviravolta não poderia transcorrer sem uma reação das trevas. A maior força reacionária contra o reconhecimento da Encarnação do Verbo e seus corolários surgiu enquanto a cristianização da Europa se completava, e seu primeiro ato foi atacar a Cristandade. Falo do maometanismo, ou Islã: a religião da submissão a um deus masculino que tem por nota não ter filho e não ser pai. A expansão muçulmana, efetuada pela espada, negou a vastas multidões de cristãos as dignidades que a Encarnação lhes havia dado. As mulheres voltaram às prisões domésticas, e a poligamia diminuiu ainda mais seu novamente subjetivo valor social. As riquezas materiais e o poder absoluto do tristemente célebre despotismo oriental reduziram à escravidão multidões sem fim. Na busca permanente de escravos (em geral castrados por seus escravizadores para “proteger” as mulheres aprisionadas nos haréns), excursões islâmicas armadas devastavam as costas do Mediterrâneo, do Mar Negro e mesmo do Atlântico, chegando a atacar a Islândia em busca de vítimas. Miguel de Cervantes, autor do Dom Quixote, é um dos tantos inocentes que foram raptados e escravizados por tal gente. Foram tão devastadas as populações europeias pela sanha escravizadora da nova religião que os traficantes passaram a buscar novas vítimas na distante África Subsaariana.

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Não foi à toa que o maior inimigo da Cristandade medieval tenha sido a heresia islâmica. Afinal, ela ia muito além da mera negação dos pontos mais cruciais da doutrina cristã: era um retorno piorado à barbárie pagã, negando em bloco a dignidade humana e seus corolários. No mundo do Crescente sobre fundo verde, a rigidez social era absoluta; uns poucos afortunados viviam no conforto, mas sujeitos aos caprichos do déspota; a vasta massa de deserdados mal podia ter a esperança de sobreviver um pouco mais.

Num triste momento da história, contudo, o surgimento de novas religiões sobre a base cristã da sociedade separou da fonte a dignidade do homem conatural do Criador. A sociedade cristã rapidamente descristianizou-se, num processo que teve início uma geração após os maiores triunfos da Europa: a Reconquista espanhola e a descoberta da América. No frio norte, as novas heresias protestantes negaram em bloco a Revelação cristã e islamicamente guardaram dela apenas um de seus frutos, a Escritura. Da espantosa confusão gerada pelo surgimento delas surgiu a Modernidade, que para acabar com as guerras de religião que varreram a Europa enterrou a religião no foro íntimo. Com isso, as mulheres perderam quase imediatamente seus direitos e voltaram à submissão ao homem, aprisionadas nos lares burgueses. A devolução do reconhecimento de sua dignidade recomeçou, sobre outras bases, apenas no século passado. A vida humana perdeu novamente grande parte de seu valor, chegando-se ao baixíssimo ponto de colaborar com o Islã na escravização de multidões de inocentes. O dinheiro passou a mandar, e as guerras tornaram-se ainda mais assassinas que as anteriores ao Cristianismo.

A escolha é feita a cada Natal: é a festa do consumo ou a celebração da Encarnação do Verbo? É o momento de uma vaga “boa vontade universal” ou é o momento em que do Amor nasceu o Menino-Deus? Papai Noel ou presépio?

O processo de decadência, decorrente da separação entre a moral e sua base, só fez aumentar no meio milênio de Modernidade. Mesmo assim, num respeito irrefletido àquelas origens, perduram no papel algumas heranças pré-modernas, como o direito à vida. Seriam ridículas, se não fossem trágicas, as falácias empregadas para conciliar o irreconciliável. Os aborteiros e assassinos de doentes dizem trabalhar em prol do respeito à dignidade humana. Os vastos morticínios de inocentes perpetrados com mísseis e bombardeios em tapete são apresentados pelos responsáveis como atos cavalheirescos de defesa de terceiros. A proibição da caridade apresenta-se fantasiada de defesa de um sistema supostamente superior, operado pelo Estado, ou como – mais uma vez – “respeito à dignidade”.

Tal como uma árvore não sobreviveria sem raízes, todavia, não há como manter os padrões morais cristãos que formaram a civilização de que fazemos parte quando se nega ou ignora sua origem. A escolha, afinal, é feita a cada Natal: é a festa do consumo ou a celebração da Encarnação do Verbo? É o momento de uma vaga “boa vontade universal” ou é o momento em que do Amor nasceu o Menino-Deus? Papai Noel ou presépio? A escolha é de cada um; os corolários da soma de todas as escolhas, contudo, determinarão o mundo em que viverão nossos filhos, netos e bisnetos.

Feliz Natal!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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