A geopolítica do Oriente Médio é sempre complexa. Na verdade, ela é sempre mais complexa que qualquer tentativa de explicação. Trata-se, afinal, da terra em que Abraão recebeu um chamado divino, e onde, após longa peregrinação, finalmente estabeleceu-se na terra que comprou por 12 shekels. Seus dois filhos têm as histórias contadas de maneiras diversas nos livros das principais religiões da área: segundo a Bíblia judaica e cristã, Jacó herdou a terra, e Ismael foi expulso e deserdado, com sua mãe Agar. Segundo o Corão, todavia, foi o estrito contrário; Jacó teria sido expulso, e a terra seria de Ismael. Ismael é o pai de todos os árabes; Jacó, de todos os judeus. A questão de Israel (aliás, o apelido de Jacó: “aquele que briga com Deus”) é, assim, uma questão de herdeiros, com cada qual achando que merece toda a terra e que o irmão foi deserdado.
Do outro lado daquela imensa massa de areia, sob a qual jazidas gigantescas de petróleo despertam a cobiça de muitos, fica uma terra que não é nem judia nem árabe: a antiquíssima Pérsia, com sua civilização e cultura multimilenares. Seu nome atual é Irã. Cabe lembrar que a atual Turquia, ao norte de Israel, em tempos idos era conhecida como “Grécia”. Os turcos, porém, imigrantes de uma região situada bem mais a nordeste, acabaram, no século 20, chacinando as populações cristãs grega, siríaca e armênia, e impondo o Islã e a língua turca a todos os habitantes. Muitos séculos antes disso, contudo, sabemos todos do conflito entre Esparta e a Pérsia. A Pérsia tem uma longa história de supremacia sobre toda a região, que ela – com boa dose de razão – encara como “seu quintal”.
Temos aqui já três dos atores principais do conflito que ora ameaça transformar-se em guerra real: Israel, o pequeno Estado dos judeus, fundado para dar-lhes um porto seguro após o Holocausto, uma potência atômica, com um exército forte e ambições territoriais que englobam toda a terra prometida por Deus a Abraão e seus descendentes, da qual o atual território israelense não chega a um sexto. A antiga Pérsia, hoje chamada Irã, que vê toda a região como lhe pertencendo de direito desde tempos imemoriais. A Turquia, que em seus tempos de glória (encerrados com a Primeira Guerra Mundial, em que ela entrou do lado perdedor) dominou quase todas as terras árabes.
O Iraque é uma série de linhas traçadas num mapa, sem nenhuma preocupação real com as nacionalidades e religiões de seus habitantes
Além deles, há ainda, com grande importância, a Arábia Saudita, uma enorme planície de areia com vastas jazidas de petróleo na ponta leste e, na ponta oposta, as duas cidades mais sagradas do mundo para os muçulmanos: Meca e Medina. Cabe lembrar que, no Islã, visitá-las ao menos uma vez na vida é considerado um mandamento divino; não se trata apenas de turismo, mas de verdadeira obrigação religiosa.
O Islã, lembramos, não é uma religião monolítica. Muito ao contrário, aliás: por falta de um papa ou equivalente, ainda nos primeiros anos após a morte de seu fundador, ela se dividiu em duas grandes facções, que desde então estão em pé de guerra: os muçulmanos xiitas e os muçulmanos sunitas. Os persas são xiitas; os sauditas, sunitas. Mais ainda, a Arábia Saudita tem como religião oficial uma versão extremamente rígida do islamismo sunita, o dito salafismo. Os salafistas, com apoio financeiro e de infraestrutura do governo saudita, espalham pelo mundo sua versão do Islã, versão esta que, pela lógica, acaba levando a horrendos ataques terroristas. Os sequestradores dos aviões que derrubaram as Torres Gêmeas, por exemplo, eram em sua maioria sauditas e unanimemente salafistas.
Curiosamente, faz pleno sentido geopolítico que Israel apoie os salafistas. Afinal, apesar de seu ódio por tudo o que não é de sua seita, eles cumprem sua “missão” de desestabilizar todos os territórios em que conseguem alguma medida de controle. O Estado Islâmico salafista, por exemplo, desestabilizou a tal ponto a Síria que ela deixou de ser, por um tempo, um inimigo real de Israel, com quem disputa a posse das montanhas que dominam o Mar da Galileia, possibilitando enorme vantagem estratégica sobre toda a região. Os Estados Unidos de Trump, inclusive, reconheceram a posse por Israel das ditas Colinas do Golã como verdadeira conquista territorial, apesar de conquistas territoriais pela força serem ilegais pela legislação internacional atual.
Este é, aliás, o ator que faltava apresentar nesta tragédia: o touro na loja de louças, o valentão do pedaço, os Estados Unidos. A imensa força do eleitorado judeu americano, responsável por grande parte das doações aos partidos políticos, e com sua força ainda aumentada pela proximidade da família do atual presidente com o Estado de Israel, faz com que hoje os EUA sejam um aliado quase incondicional do pequeno Estado judeu. Já houve até mesmo vazamentos de gravações em que o primeiro-ministro israelense, hoje em grave perigo de não apenas perder eleições, mas ser preso por corrupção, gaba-se de conseguir arrancar dos EUA o que quiser.
Uma das coisas que Israel conseguiu “arrancar dos EUA” foi a destruição quase completa, sob pretextos que depois se comprovaram mais falsos que uma nota de três reais, do Estado artificial criado pelos ingleses ao fim da guerra: o Iraque. Na verdade, a região que hoje tem este nome, mais conhecida pelos leitores da Sagrada Escritura como Babilônia, consiste em duas regiões produtoras de petróleo, uma no noroeste, habitada por parte da nação curda (as outras partes dividem-se pela atual Turquia e Síria), de religião sunita, e outra no sudeste, habitada por árabes xiitas. No meio, um vasto deserto de areia, sem petróleo, habitado por árabes sunitas. O Iraque, em suma, é uma série de linhas traçadas num mapa, sem nenhuma preocupação real com as nacionalidades e religiões de seus habitantes, em que se procurou unir duas regiões produtoras de petróleo e uma área não produtora, que veio como contrapeso para não ter de dividir demais as terras.
No tempo do ditador sunita (porém laicista) Saddam Hussein, posto no governo pelos americanos (e por eles retirado e enforcado vinte e poucos anos depois, quando aparentemente esgotara-se seu prazo de validade), o Iraque bem que tentou tornar-se um país de verdade. Sob a égide do movimento baathista (um movimento pan-arabista laicista, que tentava unir as pessoas pela nacionalidade e não pela religião, novidade absoluta na região), tanto Síria quanto Iraque transformaram-se em oásis para as populações cristãs, que pela primeira vez viram-se protegidas da dura dominação muçulmana. Para Israel, contudo, não era bom negócio que os árabes se unissem por nacionalidade, pois isso daria aos habitantes árabes da região um grau de união que facilitaria incursões militares contra o pequeno país dos judeus. Lembro que não é a primeira vez que esta novela passa: os reinos cristãos cruzados, na Idade Média, duraram cerca de um século, instalados exatamente onde hoje fica Israel, que está lá apenas desde 1948, sem ter ainda atingido sua longevidade. O líder curdo sunita Saladino acabou conseguindo eliminá-los do mapa, e o terror dos judeus é que o mesmo ocorra com eles.
Para a China e para a Rússia, que são parceiros comerciais importantes do Irã, assim como para a Europa Ocidental, a pior coisa que pode acontecer por ali é uma guerra
Assim, como sói acontecer em geopolítica, temos gente muito esquisita dividindo uma cama, cada qual movido por um interesse particular. Israel quer evitar a presença de Estados árabes fortes e bem organizados junto a suas fronteiras. Para Israel, quanto mais caótica a situação neles, mais difícil fica que se alevante um exército capaz de oferecer-lhe algum perigo. É por isto que, por exemplo, o surgimento do Estado Islâmico, uma teocracia de pesadelo, foi ajudado e fomentado por Israel. A Arábia Saudita, por sua vez, morre de medo dos xiitas, na medida em que suas áreas produtoras de petróleo têm uma proporção considerável deles, que com razão se sentem oprimidos pelo regime salafista radical da família Saud. A Turquia teme o surgimento de um Estado curdo junto a suas fronteiras, pois isso levaria os curdos turcos a quererem mudar sua lealdade. Assim, ainda que durante a breve confusão gerada pelo Estado Islâmico os americanos tenham bancado um partido comunista curdo armado, com o objetivo de criar caos na parte curda da Síria e assim diminuir as ameaças contra Israel, largaram-no depois como uma batata quente para não prejudicar demasiadamente suas já tensas relações com a Turquia, país membro da Otan e, portanto, oficialmente aliado dos EUA. Estes, por sua vez, desejam ajudar Israel por causa do peso do eleitorado judeu na sua política interna.
Entram, então, os dois atores finais do processo, colocados do lado oposto ao da estranha coalizão entre os EUA (o país que exporta a ideologia de gênero LGBTQIAP+, o aborto, o divórcio etc.), a Arábia Saudita (onde a posse de uma Bíblia ou terço garante a pena de morte, e de onde os judeus foram expulsos décadas atrás) e Israel (um país na prática dividido entre os judeus ortodoxos, que variam no espectro que vai de não reconhecer o Estado de Israel a reconhecê-lo, mas não fazer parte do Exército; os sionistas radicais, que desejam que Israel domine toda a região entre o Nilo e o Eufrates; e os laicos progressistas, que desejam apenas que o país permaneça ali). São eles a China, cuja indústria pesada e geração de eletricidade depende em grande medida do petróleo iraniano, e a Rússia, que deseja mais que tudo evitar perturbações salafistas nas antigas republiquetas soviéticas de maioria muçulmana que a separam da região. Cumpre observar que esta já lutou contra salafistas, recentemente o suficiente para ainda haver muitos veteranos aleijados pelas ruas, no Afeganistão (ora ocupado pelos EUA, que lutam agora contra os mesmos inimigos que armaram e treinaram para lutar contra a União Soviética, que por sua vez fora armada e treinada pelos EUA para lutar contra a Alemanha nazista), em Kosovo (indiretamente) e na Chechênia-Inguchétia.
A Rússia, na prática, impediu a dissolução da Síria, estacionando tropas e, principalmente, equipamento antiaéreo no país e, assim, impedindo tanto incursões israelenses quanto a manutenção de controle territorial por parte do Estado Islâmico e de outras milícias salafistas (inclusive a tristemente célebre Al-Qaeda) que se engalfinhavam na região com apoio americano e israelense. A China, por sua vez, nada fez em termos militares, mas ajuda bastante o Irã ao comprar seu petróleo e, assim, garantir-lhe divisas internacionais. Os países da União Europeia também têm participação econômica importante na região, tendo criado um sistema de transferência internacional de dinheiro paralelo ao SWIFT (controlado pelos EUA e denominado em dólares) para possibilitar negócios com o Irã.
O general Qasem Soleimani era o principal ator militar iraniano nas várias frentes em que se movimenta a confusa região. No Iêmen, paiseco miserável dividido entre xiitas e sunitas, mas situado em posição estratégica, a Arábia Saudita vem ativamente provocando verdadeiro genocídio da população xiita. A defesa dos xiitas da região contra ela – que recentemente obteve um triunfo espetacular com ataques feitos por drones contra instalações sauditas de refinaria, que por algum tempo dizimaram as exportações sauditas – era responsabilidade do general. O mesmo ocorria com a defesa dos xiitas, alauítas, cristãos e demais minorias religiosas contra os ataques salafistas bancados pela Arábia Saudita, Israel e Estados Unidos na região da Síria e do Iraque. Poder-se-ia dizer que ele foi um ator fundamental na extinção do Estado Islâmico.
O Iraque, devido à maioria de habitantes de fé xiita, após o enforcamento de seu governante laicista pelos EUA, caiu na esfera de influência iraniana. Afinal, é lá o centro desta fé islâmica, profundamente distinta em vários aspectos da salafista saudita (que, costumo dizer, é “a que explode”). O general, no momento em que foi assassinado por um míssil americano, que matou também um alto mandatário iraquiano, estava encetando difíceis conversações de paz com a Arábia Saudita, que, se eficazes, ameaçariam provocar uma ruptura da aliança desta com Israel e os EUA (que acabaram de lhe vender mais de US$ 1 bilhão em equipamentos militares com que massacram os iemenitas) Assim, para evitar a paz na região e garantir que no entorno de Israel não haja exércitos organizados, o general foi assassinado. Aliás, um detalhe importante é que o mesmo general era, na prática, um dos cabeças do Hezbollah, partido armado xiita que na prática tornou-se o exército libanês após infligir a Israel a única derrota que o pequeno país judeu jamais teve em combate.
É sempre algo arriscado confiar no bom senso dos atores daquele palco desértico, arenoso e rico em ouro negro
Assim, quais seriam, ou antes quais podem ser, as decorrências do assassinato? Os persas, com razão, assim como todos os xiitas, estão furiosos. Para a China e para a Rússia, contudo, que são parceiros comerciais importantes, assim como (em medida um pouco menor) para a Europa Ocidental, a pior coisa que pode acontecer por ali é uma guerra, que prejudicaria as rotas de petróleo (que passam pelo fino gargalo do Estreito de Ormuz, que tem um lado controlado pelo Irã) e causaria problemas sérios para o comércio internacional. É provável, então, que haja nos bastidores pressões efetivas para que a resposta iraniana seja moderada, por mais que a vontade deles no momento seja provavelmente de plantar uma bomba na Casa Branca ou coisa parecida; o limitado ataque contra bases americanas no Iraque, comunicado ao governo local e apelando ao direito internacional de autodefesa, parece confirmar esta hipótese. Para sorte dos EUA, aliás.
Estes, ao que tudo indica, não pensaram no longo prazo. Afinal, o Irã é um país gigantesco, cheio de montanhas e outros terrenos difíceis. Invadi-lo seria simplesmente impossível para o relativamente pequeno exército americano atual. Há, todavia, bases americanas aos magotes, algumas centenas delas, estacionadas em torno do Irã, e delas podem partir outros ataques como o que vitimou o general. Por outro lado, acaba de ser provado que elas também são alvos fáceis – como, aliás, de modo igualmente comprovado, o são as refinarias sauditas. Israel, por seu lado, afastou-se do caso, dizendo não ter tido nada a ver com o ataque, procurando assim evitar tornar-se alvo das inevitáveis retaliações persas.
Esperamos que o bom senso prevaleça e os xiitas não procurem vingar mais o homem que consideram já um mártir e um santo. É, todavia, sempre algo arriscado confiar no bom senso dos atores daquele palco desértico, arenoso e rico em ouro negro.