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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

O ovo da serpente

Bebedouro segregado no estado norte-americano do Oklahoma, em 1939. (Foto: Russell Lee/Farm Security Administration/Domínio público)

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Uma severa maldição atinge os poucos que se dedicam ao estudo da História. O nome da musa Clio, filha de Júpiter e Mnemósine (personificação da memória humana), significa “proclamadora”, e normalmente se a representava lendo de um pergaminho e tocando a lira. O que não se diz, todavia, é que a atenção que se lhe dá é ainda menor que a dada ao pobre tecladista de churrascaria, a quem só se presta atenção quando ele toca, pela enésima vez naquele dia, Parabéns pra você. E olhe lá. Clio proclama, e ninguém ouve. Do mesmo modo, quem conhece a História sabe de onde vêm as diversas narrativas, as diversas histórias com “H” minúsculo que voltam, como pragas, a afetar as sociedades. Os mesmos erros, repetidamente cometidos; as mesmas maldades, repetidamente justificadas pelas mesmas repetidas mentiras. Clio fala pela voz de quem conhece a História que ela personifica, proclama, e nenhuma atenção lhe é dada. Ninguém reconhece o ovo da serpente, e todos o tomam por pedra preciosa; a voz de quem o conhece é ignorada, apenas para que depois todos se espantem ao ver surgir e atacar a serpente que não haviam reconhecido.

Conto, pois, como Clio, uma história esquecida, um fio da História que se esquece. Aponto, inútil porém teimosamente, o ovo da serpente que se está – mais uma vez – aninhando ao peito.

Esta história começa com o surgimento, no Iluminismo, dos Estados nacionais laicos. Até então – tal como ainda hoje é o caso em grandes partes do mundo – a religião do povo era sempre a base da nacionalidade e o suporte da legitimidade dos governantes. Em termos práticos, isto significava que as minorias religiosas eram tidas e mantidas como nações à parte, conservando costumes próprios, casando-se apenas entre si e de modo geral gerenciando seus próprios assuntos internos. Podemos ver exemplos bastante recentes deste sistema; por exemplo, na Argélia francesa (colônia tida como parte da Metrópole, de que apenas uma curta viagem pela pequena longitude do Mediterrâneo a separava), o governo francês ofereceu aos judeus e aos muçulmanos a opção de manter os costumes antigos e viverem como nações à parte no mesmo território, ou aceitar a cidadania francesa em troca de perder o direito a tribunais próprios. Os judeus aceitaram a oferta, tornando-se cidadãos franceses; os islâmicos a rejeitaram.

Os nazistas inventaram uma “raça judaica”, independente de religião, para efetuar a resseparação das nações de base religiosa que se haviam tornado uma nação única quando a religião cessara de servir de base ao pertencimento e organização nacionais

No território europeu, todavia, com o surgimento dos Estados nacionais laicos, o que aconteceu foi o início de uma feliz mescla, em que povos que haviam vivido à parte por séculos passaram a finalmente integrar-se. Pela primeira vez, puderam os judeus sair dos guetos em que se confinavam e eram confinados, e as sinagogas passaram a ser lugares de culto apenas, não de definição nacional. Foi então que surgiu, no judaísmo, o movimento reformista. Ele buscava construir um judaísmo religioso, não nacional. Seus membros – ao contrário de seus pais e avós – vestiam-se como os demais cidadãos, frequentavam as mesmas escolas, falavam a mesma língua, submetiam-se à mesma lei civil e penal. A diferença era a religião; guardavam ainda o sábado, e não o domingo cristão, e mantinham os rituais de seus ancestrais.

A toda ação, todavia, corresponde uma reação igual em força e contrária em sentido. Depois de algumas gerações em que membros da antiga nação judaica e da antiga nação cristã vieram a casar-se, constituir família, ter filhos e integrar-se ainda mais, alevantou-se a besta-fera nazista. O objetivo primeiro do nazismo era separar as nações que se vinham unindo. Não lhes interessava, contudo, separar por religião, na medida em que o próprio nazismo era uma espécie de religião antagônica a todas as formas de Cristandade. Tentava-se, inclusive, fazer reviver artificialmente os paganismos germânicos antigos para combater toda religião de base mosaica, fosse ela judaica ou cristã.

Recorreram, então, os nazistas a outro termo, a outro vocábulo. Inicialmente concebido para “provar” a suposta superioridade da nobreza prussiana em relação ao campesinato eslavo, o termo já pulara o Atlântico. Foi ele empregado para permitir que nos EUA, após a Guerra Civil que aboliu a escravatura, as pessoas que haviam sido escravizadas continuassem socialmente separadas das que se haviam considerado “proprietárias” delas. Trata-se – horresco referens – da famigerada “raça”.

Inventaram, então, os nazistas uma “raça judaica”, independente de religião, para efetuar a resseparação das nações de base religiosa que se haviam tornado uma nação única quando a religião cessara de servir de base ao pertencimento e organização nacionais. Foi o que os levou, por exemplo, a martirizar Santa Teresa Benedita da Cruz, monja carmelita oriunda de família judaica, nascida Edith Stein. Para os nazistas tanto fazia se uma pessoa era católica, tão católica que se havia feito monja carmelita, ou judia praticante: era a tal “raça” que importava, não a religião. A “raça judaica” seria composta, literalmente, de “subumanos”, de seres inferiores. Já, claro, a “raça ariana” (alemães, nórdicos e anglo-saxões) seria a “raça superior”, destinada a governar o mundo. Toda e qualquer “poluição” desta por aquela seria o mais horrendo dos crimes.

Assim sendo, uma das prioridades nazistas foi a marginalização dos membros da tal “raça judaica”. Isto foi feito de várias formas e, como sabemos todos, culminou no Holocausto, o primeiro genocídio efetuado com metodologia industrial, clamando cerca de 6 milhões de vítimas inocentes. No início do processo, contudo, a prioridade evidente era efetuar a radical separação daqueles que se haviam unido poucas gerações antes. Várias medidas “legais” (alemães prestam muita atenção neste tipo de coisa) foram tomadas, entre elas a criação da Câmara de Cultura, subordinada ao Ministério da Propaganda e Esclarecimento Público. Suas subcâmaras lidavam com cinema, música, belas artes, teatro, rádio e televisão, imprensa e literatura. Cada uma delas iniciou seu nefando trabalho efetuando “censos raciais”, em que se buscava identificar os membros da “raça judaica” que estariam “infiltrados” naquelas áreas da cultura. Em seguida foi decretada, claro, a necessidade de pertencimento à suposta “raça superior”, privando a Alemanha da magnífica contribuição de talentos extraordinários... mas preservando a tal “raça ariana” de ser exposta àquilo que viesse da “degenerada raça judaica”.

Como nos EUA tratou-se, desde o princípio, de evitar qualquer mistura entre a população escravizada e a livre (origem das tais “raça negra” e “raça branca”), estabeleceram-se duas nações que conviviam, mas que legal e praticamente não podiam mesclar-se

Mas persistia uma difícil questão: como se poderia definir a “raça”? O que seria ela? A pseudociência nazista bem que tentou usar critérios físicos, medindo narizes, crânios e orelhas. Nada disso, entretanto, servia para diferenciar pessoas que, no fim das contas, tinham de diferente apenas o pertencimento nacional-religioso dos antepassados. A legislação racial americana, considerada por Hitler o modelo ideal, foi ardentemente estudada em busca de soluções. Afinal, nada mais diretamente apropriado para os medonhos fins nazistas que leis como esta:

“Todo casamento entre uma pessoa branca e um negro, ou entre uma pessoa branca e uma pessoa descendente de negros até a terceira geração, inclusive [...] é perpetuamente proibido e será considerado nulo; e qualquer pessoa que viole as provisões desta seção deve ser considerada culpada de crime infame, e ser punida com encarceramento em penitenciária por não menos que dezoito meses e não mais que dez anos.” (Código Penal do Estado de Maryland, Crimes e Penas, artigo 27, par. 393-398, ed. 1957[!])

Chegaram todavia os nazistas à conclusão de que, enquanto as legislações antimiscigenação “racial” americanas eram adequadas a seus fins, o mesmo não ocorria com as definições americanas de “raça”. Eram, julgaram os nazistas, estritas demais: o racismo americano era para eles exagerado, por ser baseado na exorbitante “regra da única gota”: a pessoa que tivesse na sua ascendência “uma única gota de sangue negro” pertenceria à oprimida “raça negra”, e seria desprovida de grande parcela dos direitos garantidos aos ditos brancos. A razão sociológica de tal regra é relativamente simples de entender: como nos EUA tratou-se, desde o princípio, de evitar qualquer mistura entre a população escravizada e a livre (origem das tais “raça negra” e “raça branca”), estabeleceram-se duas nações que conviviam, mas que legal e praticamente não podiam mesclar-se. As crianças nascidas de relações extraconjugais entre membros de “raças” diferentes – até mesmo como forma de desincentivar tais relações – forçosamente pertenciam à menos favorecida delas.

Já na Alemanha não apenas a temida miscigenação já ocorrera por algumas gerações, mas – justamente pela aceitação entusiástica da cultura alemã por muitos descendentes da antiga nação religiosa judaica – os que dela vieram haviam sido criados na cultura da população em geral. Eram, na prática, indistinguíveis dos demais cidadãos, tendo inclusive considerável parcela deles adotado as práticas religiosas da maioria cristã de sua região. Assim, não apenas seria dificílimo identificar quem viesse a ter tal “única gota de sangue” da “raça” tida por inferior, mas com isso seriam atingidos muitos nazistas fanáticos. Basta ver, por exemplo, que pelas regras religiosas judaicas, em que a pertença ao Povo Eleito é transmitida matrilinearmente, pelo menos um almirante e um brigadeiro da Alemanha nazista seriam considerados judeus e teriam, nos tempos atuais, direito à cidadania israelense. Isto ocorre por – no fim das contas – terem os nazistas decidido que seria de “raça judaica” quem tivesse três ou quatro avós pertencentes a ela; menos que isso faria do sujeito ou bem um “mestiço” ou bem um membro da “raça ariana”. Algumas restrições ainda pesavam sobre os tidos por “mestiços”, todavia: aquele que se casasse com um membro da “raça judaica” seria tido por pertencente a ela, e privado de cidadania. Aliás, trata-se de cópia de lei americana, que considerava que a mulher de “raça branca” que viesse a casar-se com um sujeito de “raça oriental” (na época proibida de obter cidadania americana, mesmo nascendo nos EUA) perderia, ela também, o direito à cidadania.

Nos EUA, a legislação racista só veio a ser derrubada nos anos 1960, graças a um movimento que uniu membros da “raça negra”, como Martin Luther King, a grande quantidade de jovens americanos de “raça branca” de origem familiar judaica. Os horrores do nazismo haviam mostrado claramente a eles a gravidade do racismo americano.

O fim das disposições legais racistas, no entanto, não operou o milagre de unir o que na prática veio a ser um país cindido em duas nações, uma “negra” e outra “branca”. Até hoje, nos EUA, é malvisto pela família e comunidade aquele que quiser casar-se com pessoa de outra “raça”, mesmo sendo isto legalmente permitido. Do mesmo modo, as nações pseudorraciais continuam tão separadas que, mesmo nascendo e morando na mesma cidade, vivem em bairros segregados e diferem culturalmente ao ponto de ser possível saber a “raça” de uma pessoa pelo sotaque (!), pelo nome de batismo, pela música que ouve, pela roupa que veste, pelos hobbies e lazeres etc. Do mesmo modo, é tão forte a separação entre as nações apelidadas de “raça” que se veio recentemente a descobrir que sistemas de inteligência artificial aplicada ao diagnóstico médico são capazes de discernir a partir de imagens de tomografia e radiologia a “raça” a que o paciente declarara pertencer.

O fim das disposições legais racistas nos EUA não operou o milagre de unir o que na prática veio a ser um país cindido em duas nações, uma “negra” e outra “branca”

Foi neste triste contexto que surgiram as ditas “ações raciais afirmativas” visando elevar a condição socioeconômica dos ditos pretos e criar uma classe média urbana pertencente àquela nação. Para isso foram muito eficazes medidas como cotas “raciais” nas universidades; afinal, o médico, engenheiro ou advogado vindo da nação dita preta iria forçosamente casar-se com moça pertencente à mesma nação, criando-se assim uma família cujos filhos já seriam criados em situação socioeconômica mais favorecida, sem contudo perder o pertencimento pseudorracial à nação de origem. Um limite inesperado para este mecanismo de elevação socioeconômica foi discernido recentemente por um pesquisador que observou que o número de filhos das mulheres da nação negra é inversamente proporcional à sua escolaridade, de forma muito mais aguda em comparação com as mulheres da nação branca. Em outras palavras, uma mulher com estudos superiores, mestrado e doutorado oriunda da nação dita preta tem em média menos filhos que uma mulher com a mesma escolaridade pertencente à nação dita branca.

Já aqui no Brasil, felizmente, nada disso acontece ou aconteceu. Nosso processo de formação nacional, ao contrário, foi baseado na integração de todos, desde o princípio. Os colonos portugueses, no mais das vezes, casavam-se com moças da terra, frequentemente filhas de caciques. Mesmo o vergonhoso capítulo de nossa história em que pessoas escravizadas na África eram compradas e vendidas como se fossem bichos ou coisas em nossa nação não teve, em momento algum, um componente de separatismo dito racial. A pessoa escravizada podia comprar ou ganhar a própria liberdade (alforria), e muitas vezes comprava ela mesma – ocasionalmente enquanto ainda escravizada! – a suposta propriedade de outras pessoas. Escravos tinham escravos, e havia “senhores” com todo tom de pele. Após a Guerra Civil americana, um bom número de americanos derrotados veio ao Brasil, fundando a cidade de Americana (SP). Ao chegar, horrorizaram-se ao ver gente de evidente ascendência africana com títulos de nobreza, fazendas (logo, “propriedade” de escravos) e poder político.

Todavia, tendo os africanos chegado todos na mais baixa condição social possível, criou-se na prática não um separatismo como nos EUA, mas uma certa correlação entre a aparência fenotípica africana e a pobreza. Ao ascender socialmente na nossa sociedade lindamente vira-lata, contudo, o descendente de pessoas escravizadas tendeu e tende a casar-se com moça oriunda não da mesma nação pseudorracial (pois não as temos), mas da mesma classe social. O mesmo, evidentemente, ocorre com a pessoa fenotipicamente europeia que desce socialmente; mantém-se assim a correlação entre fenótipo e condição social, mas de maneira tremendamente diversa da americana.

Nosso processo de formação nacional, ao contrário do norte-americano, foi baseado na integração de todos, desde o princípio

Isto, com o surgimento dos testes de DNA que mostram a ascendência genotípica, tornou-se perfeitamente claro e visível: o famoso Neguinho da Beija-Flor, por exemplo, cujo fenótipo gerou o nome artístico, tem mais de dois terços de ascendência europeia. Enquanto isso, não são raros os casos de irmãos em que um é aceito como cotista numa universidade e outro não, com base no fenótipo, tendo todavia exatamente a mesma ancestralidade. Ou lourinhas estilo “paquita” com farta ascendência africana.

Quer-se, contudo, importar o horror racista americano para nossas plagas. Eu mesmo assustei-me tremendamente ao topar de maneira claríssima com o ovo da serpente dia desses, quando me chegou um convite por e-mail para o “censo racial da imprensa brasileira”. Pareceu-me ver os olhinhos malvados e porcinos de Max Amann, o Reichsleiter für die Presse, “líder nacional para a imprensa” e Presidente da Câmara de Imprensa nazista, sorrindo por trás daquele horror. Mas a coisa é na verdade ainda pior, na medida em que o que está sendo importado não é o racismo mitigado, ainda que genocida, dos nazistas, sim a obscena “regra da única gota” americana. Nossa esquerda, macaqueando a esquerda americana como de hábito, vem tentando importar o racismo de lá, tão desmedido que os próprios nazistas preferiram criar regras próprias. Querem impor a um país construído pela integração de todos os povos a asquerosa separação americana, em que a pessoa que ousa amar a de outra nação pseudorracial é ostracizada até pela própria família. Os movimentos racistas brasileiros – cópia dos gringos – chegaram a inventar termos depreciativos para tentar ofender quem comete o crime de amar pessoa fenotipicamente diversa: a “palmiteira”, por exemplo, seria a mulher que ousa amar alguém com menos melanina que ela.

E é nesse trilho que segue o tal “censo racial” defecado na minha caixa de entrada de e-mail. O enganoso “assunto” da mensagem era “Participe do censo completo da imprensa brasileira. É rápido!” Quando se abre a mensagem, no entanto, logo vê-se a serpente à espreita na forma de um mapa do Brasil todo dividido em tons de marrom e preto, com o texto “Perfil Racial da imprensa brasileira”, estando a palavra “Racial” (assim mesmo, com inicial maiúscula) em letras muito maiores que as demais. Mais adiante no texto, entre gracinhas várias e sucessivos apelos a participar na barbaridade em tela, vê-se o seguinte: “O Perfil Racial da Imprensa Brasileira é direcionado a jornalistas que trabalham em redações. Queremos gerar a maior quantidade de dados possível para que as caras do Jornalismo possam refletir as de quem consome as notícias”.

Os movimentos racistas brasileiros chegaram a inventar termos depreciativos para tentar ofender quem comete o crime de amar pessoa fenotipicamente diversa: a “palmiteira”, por exemplo, seria a mulher que ousa amar alguém com menos melanina que ela

Esta última frase, confesso, me gelou os ossos. Eles querem que “as caras” (o fenótipo) do jornalismo reflitam “as de quem consome as notícias”. Mas espera aí. O que significa isso se não a mesma barbaridade nazista, pela qual os membros da “raça ariana” não deviam ler notícias escritas por membros da desprezada “raça judaica subumana”? O tal perfil racista visa, num segundo momento, como tal frase deixa claro, o estabelecimento de cotas por fenótipo, numa tentativa descarada e literalmente criminosa de copiar aqui de forma ainda piorada o que provavelmente é o pior aspecto da cultura de nossos irmãos do Norte.

Pombas, o que tem a ver a cor (bastante morena, diga-se de passagem; “raça” alguma me aceitaria, vira-lata que sou!) da minha pele com a qualidade do que escrevo ou, mais ainda, com a cor da pele de cada membro do público que me lê? Não faz, no Brasil, sentido algum querer que fenótipos “raciais” sejam refletidos onde quer que seja. Faria mais sentido “refletir” na imprensa o tipo de corte de cabelo, a música que se aprecia, a religião que se pratica ou a formação acadêmica do público. Afinal, estas são características modificáveis, e que realmente dizem algo acerca da pessoa, de suas escolhas, de seus gostos. O racista, contudo, na sua maldade, separa as pessoas por linhas retas que cortam e isolam (exatamente como no mapa de um Brasil cindido em cores de pele “aceitáveis” que serve de símbolo ao tal “Perfil RACIAL”), e nada se pode fazer. Um islamista fanático pode ainda oferecer a sua vítima a oportunidade de converter-se à religião do algoz e assim sobreviver, mas o racista nem isso oferece. Ele divide (e quer “refletir” inclusive e especialmente na imprensa, claro) por fatores fenotípicos perfeitamente arbitrários, mas que não se tem como modificar. De nada valia para os nazistas o batismo e o hábito de monja de Santa Teresa Benedita da Cruz: para eles ela era ainda, e sempre seria, a judia Edith Stein.

O que tem a ver a cor (bastante morena, diga-se de passagem; “raça” alguma me aceitaria, vira-lata que sou!) da minha pele com a qualidade do que escrevo ou, mais ainda, com a cor da pele de cada membro do público que me lê?

No fim do e-mail lê-se ainda: “Numa segunda etapa, uma amostra de cerca de 200 jornalistas vão [sic] responder a uma pesquisa feita por telefone, caso se disponham, onde poderão responder a outras perguntas mais sensíveis sobre a temática racial. Para se candidatar a participar dessa etapa, basta informar o telefone no questionário da primeira fase da pesquisa”.

Mentira.

Tapei o nariz e fui lá responder o questionário. Pois bem: dependendo da opção que se marque na terceira questão (“Qual a sua cor ou raça?”), surge ou não uma pergunta a mais, no fim do texto: “14) Nesse projeto haverá uma pesquisa com amostra de profissionais que se declararam pretos ou pardos, sobre questões sobre o racismo. Se você for sorteado para essa pesquisa estaria disposto a responder a uma entrevista por telefone de duração aproximada de 10 minutos?”

Tal como os cartazes do Parque de Xangai durante a ocupação inglesa, que proibiam a entrada de cachorros e chineses, neste Perfil raci[st]al os “brancos”, “amarelos” e “indígenas” não têm sequer o direito de saber que, por mais que desejem, não farão jamais parte da segunda etapa. Ela não está aberta a todos, só aos felizardos que sejam da “raça” certa.

Está aí, senhores, o ovo da serpente, já com a casca rachada e a linguinha bifurcada da besta a aparecer. Poucas vezes vi em nossos tempos e em nossa pátria tamanho horror sendo expresso de forma tão clara, com tanta confirmação de malícia e racismo, separando as pessoas (ou demandando-lhes que se separem) liminarmente em categorias arbitrárias de que jamais poderão escapar. Por mais que os abomine, ainda prefiro os fanáticos jihadistas: ao menos eles dão a suas vítimas a opção de mudar de categoria.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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