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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

O que é casamento

(Foto: Pixabay)

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O casamento é um dos temas a que volta e meia volto neste espaço e em outros. Uma paixão minha, por assim dizer. Dei-me conta, todavia, de que por conta dos ataques que esta instituição de direito natural vem sofrendo, é mais comum que eu tenha escrito de forma negativa, lembrando o que o casamento não é nem pode ser, que de forma positiva. E não há nada mais positivo, mais belo e mais otimista naquele imenso rol de verdades que são redescobertas a cada geração que o casamento. Tento, então, falar dele de forma positiva aqui. Evidentemente, para que se entenda o que uma coisa é, no mais das vezes é necessário indicar precisamente o que ela não é; a camuflagem, afinal, consiste na ausência de contornos que separem nitidamente o objeto camuflado do fundo, daquilo que ele não é.

A primeira coisa a dizer, que eu aliás já disse aqui em cima, é que o casamento é algo redescoberto a cada geração. É por isso, aliás, que costumo dizer que a família – que é formada por ele e por sua vez forma a sociedade – é eterna e indestrutível, por mais que tentem fazer-lhe mal. Não importa a distopia que se consiga construir; mesmo uma que fosse muito além dos limites da nossa natureza, como a do Admirável Mundo Novo, por exemplo, em que “pai” e “mãe” seriam palavrões e as crianças seriam literalmente filhas de chocadeira, jamais conseguiria acabar com ela. Em algum momento um rapaz olharia uma moça, a moça olharia o rapaz e, quando menos esperassem os distópicos governantes, haveria um casamento. Uma familiazinha nascendo, ali, no meio do pesadelo.

Afinal, o casamento é algo que está inscrito na nossa natureza. É bem verdade que sempre haja um que outro louco a afirmar que não existe natureza humana. Chega a ser engraçado, contudo, que absoluta e completamente todos os loucos que o afirmam sejam seres humanos. Sem exceção. É da nossa natureza sermos capazes de negá-la, mas não é da natureza de nenhuma outra criatura. Cachorros, samambaias e pedras não conseguem negar nem suas próprias naturezas (aliás inconfundíveis umas com as outras) nem as de outras criaturas. Não entro aqui na discussão, nas provas inúmeras e na necessidade da natureza humana para nossa própria existência, pois não é este o tema do texto. Trato apenas de um dos inúmeros seus aspectos: o casamento. Seres humanos casam-se, ponto. Os que não o fazem, que serão sempre uma minoria, podem deixar de o fazer para entregar-se a algo maior, ou podem simplesmente estar perdidos e infelizes. Estes são a maioria, aqueles uma minoria iluminada, na medida em que pouco há de maior que o casamento. A regra, todavia, é casar-se.

Hoje em dia, na nossa sociedade já apodrecendo em olhos vistos, impera enorme confusão sobre o que é o matrimônio, o que é a natureza humana (cuja própria existência chega a ser negada!, como lembrei acima) e, principalmente, sobre a relação entre ambos. Vejamos, então, como isso se opera. O ser humano tem fases bastante nítidas na vida, e elas se repetem a cada geração. A não ser que haja algum problema, alguma disfunção, o bebê nasce já querendo mamar, sem jamais ter visto um seio. Mamando, ele cresce, fica forte, e, lá pelos seis meses de idade, põe-se a engatinhar para toda parte. Pouco depois descobre que consegue descer degraus engatinhando de costas, e, por volta de um ano, põe-se a andar. Tudo isso é da nossa natureza; cavalos galopam pouco depois de nascer, e galinhas não mamam. Como é de homens que tratamos, então, continuemos neste sulco.

O ser humano é provavelmente o bicho que mais demora a conseguir se virar por conta própria. Segundo os evolucionistas, isto é uma decorrência da precocidade com que nascemos: em vez de ficarmos uns dois anos na barriga da mãe e nascermos já prontos para correr, nascemos nove meses após a concepção, serezinhos incapazes e completamente dependentes dos pais. Não fosse assim, dizem os biólogos, nossa cabeça seria grande demais para sair da mãe. Faz sentido, dentro de sua lógica. O fato, todavia, é que é assim que a coisa funciona: nascemos incapazes, e continuamos incapazes por anos a fio. Uma criança de dez anos de idade, por exemplo, tem tudo, menos juízo. Ela precisa de alguém que tome conta dela em tempo praticamente integral. Quando se pensa que muitas raças de cachorro já estão morrendo de velhas nesta idade, percebe-se claramente a diferença entre a nossa natureza e a do nosso “melhor amigo”.

Curiosamente, num piscar de olhos quando se tem a medida de uma longa vida, ocorre a passagem da infância para a idade adulta (não, eu não acredito em adolescência. Ossos do ofício de historiador e sociólogo, sabem como é; a gente sabe o que é maluquice inventada ontem e o que é eterno no homem). É sempre um susto. Lembro-me de uma menininha que morava perto de mim, com quem cruzava quase todos os dias na rua. Ela tinha um rostinho muito curioso, que me lembrava um gato, com uma carinha redonda como uma lua cheia e imensos olhos azuis. Sempre que a via eu a cumprimentava, em geral fazendo alguma brincadeira (tirar-lhe o chapéu, fazer algum rapapé engraçado, coisas assim, que fazem as crianças rir). Um belo dia, sem aviso algum, eu a vi e fiz alguma das mesmas presepadas surradas que antes sempre lhe arrancavam um sorrisinho infantil; ela virou a cara e saiu andando, pisando duro, evidentemente tomando a minha brincadeira por uma cantada. Ela não era mais uma criança, não era mais a criancinha sorridente que eu via antes. Por respeito, claro, nunca mais a cumprimentei; passei a fingir que não a via, um pouco triste, pensando em que experiências desagradáveis poderiam ter feito com que ela reagisse assim. Ser mulher neste nosso mundo sórdido é dificílimo, e aquela mulherzinha juveníssima já havia evidentemente travado contato com o pior dos homens.

Esses homenzinhos e mulherinhas, ainda frescos do orvalho, todavia, no mais das vezes ainda não estão prontos para total inserção produtiva na cultura. É preciso aprender uma profissão, por exemplo; é por isso que os rapazolas sempre foram confiados, após a puberdade, a mestres de ofícios que os pudessem ensinar a ganhar a vida e a tornar-se cidadão produtivo da sociedade. Para as mocinhas é um pouco mais simples, já que numa sociedade que funcione, ao contrário da nossa, a regra será que ela terá passado a infância ajudando as demais mulheres da família em seus afazeres, e saiba perfeitamente cuidar da casa, de bebês, e – principalmente – desse bebê gigante e especialmente bobo, dependente e incapaz que é o homem quando, subitamente, ela passa de menininha a mulherzinha em flor, pronta para arrebentar os corações dos rapazes. É por isso que há a bela tradição das festas de quinze anos das moças, em que a nova jovem adulta núbil é apresentada à sociedade, com o pai dançando primeiro com ela e depois passando-a às mãos dos rapazes, que simbolizam seus pretendentes. É uma forma de dizer que ali não há mais uma criança, sim uma moça em flor, igual de todas as demais e pronta para escolher com quem deseja se casar. Nada mais triste, nada mais indicativo da debilidade mental da sociedade em geral que propor à mocinha trocar a festa por uma viagem à Disney!

Neste momento de transição, que nossa sociedade doentiamente estica por anos e mesmo décadas, é que o ser humano está com um pé de cada lado de sua linha do tempo: no passado a sua meninice, no futuro a sua família. No presente as mais difíceis e prementes escolhas da vida. E isto enquanto ocorre um turbilhão hormonal que faz com que todas as emoções tenham uma intensidade que jamais haviam tido e jamais terão novamente, em que o corpo parece um desconhecido, com braços e pernas longos demais, em que o mundo se abre diante de cada pessoa como um infinito campo de possibilidades, de coisas fascinantes, coisas chatas e coisas atemorizantes. É a hora em que, como diziam os antigos, aquela pessoinha “vira gente”. Para o bem e para o mal.

E é a hora em que aquele adultozinho recém-inaugurado passa a não mais viver no presente; é a hora em que o tempo começa a passar loucamente rápido, num acelerando brutal que jamais se abaterá ao longo da vida. Uma semana para uma criança é um tempo quase infinito, mas para um jovem adulto é um tempo curto, e para uma pessoa madura é um átimo. E é aí que o corpo da gente, o corpo novo, recém-dotado de capacidade e de desejos sexuais e reprodutivos, começa a gritar que quer fazer a sua parte. É curioso observar, por exemplo, como os desenhos de crianças e para crianças tendem a representar os braços e pernas como cilíndricos, esquemáticos. Já o que atrai os olhos dum adulto, o próprio modo de ver de um adulto, terá as pernas e braços, ao menos os femininos, representados em suas delicadas curvas. Isto ocorre porque a beleza dos membros é um dos fatores de atrativo sexual, e a criança, ainda incapaz de perceber e de sentir este atrativo, os coloca como meramente funcionais: cilindros compridos, muitas vezes curvando-se como se fossem de borracha ao invés de ter cotovelos e joelhos. Do mesmo modo, as representações que mais atraem a atenção das mocinhas que acabaram de ganhar a herança de Eva e tornar-se mulherzinhas são as de seres com proporções de bebê, com cabeças desproporcionalmente grandes em relação ao corpo.

No seio de sua família, cada um viu (ou deveria ter visto se não nos houvéssemos separado de nossos próprios familiares, isolando-nos em apartamentinhos onde cabe apenas uma família nuclear) bebês nascendo e crescendo e idosos falecendo. É o ciclo da vida, e quando “vira gente” cada pessoa percebe, repentinamente, o chamado da natureza para entrar neste ciclo. Aquilo que era uma presença apenas passa a ser um desejo de ter para si. Os frutos duma geração passam a desejar, de todas as formas, direta e indiretamente, serem os próximos geradores. A nossa sociedade, como basta olhar ao redor para perceber, tenta atrasar isto; o mais comum hoje em dia é que as moças se casem na hora em que acaba o auge de sua fertilidade, lá pelos vinte e tantos, não mais na hora em que este auge começa. Quando o relógio biológico já está gritando que se nada for feito agora aquela pessoa não terá descendentes é que as moças saem, desesperadas, atrás de um marido de undécima hora. Mau negócio, mas esperar o quê duma sociedade em decadência terminal? Pudera que haja tão poucas crianças nascendo que as previdências sociais estejam falindo em massa.

Mas, voltando à pobre e enregelada bovina, é este afã de crescermos e nos multiplicarmos – de termos filhotinhos lindos, os mais lindos da floresta!, que são uma perfeita mistura do pai e da mãe – que orienta, ainda que indiretamente, aquele amor que brota por um membro do sexo oposto. Afinal, é deste amor que poderá nascer uma nova vida. Da única carne formada pelo casal surge  outro ser humano, mistura de ambos e de ambas as famílias, mas ao mesmo tempo uma pessoa integral, de pleno direito. Esta pessoa, todavia, precisa dos pais por um longo período de tempo, como já vimos. E é por isso que o matrimônio é sempre uma aposta no futuro. Na nossa sociedade amalucada, ele vem sendo percebido, erroneamente, como uma celebração de um amor sexuado presente, o que faz com que se veja sentido até em coisas tão absurdas quanto o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo. Ora, o casamento é tudo, menos isso. Primeiro, porque a modalidade de amor matrimonial não tem praticamente nada a ver com a paixonite (que pode até servir, em alguns casos, para conduzir ao altar, mas sempre passa). Basta ver que nas sociedades em que o casamento é tratado pelos pais dos noivos, sem paixonites envolvidas, os divórcios são muito mais raros que na nossa: o amor matrimonial é construído ao longo do casamento. É outra coisa, que não há como existir antes dele, e que pode ou não ser precedida de paixonite. Aliás, é melhor que não o tenha sido, para evitar confusões. Segundo, porque a sexualidade tem no casamento aberto à concepção o seu lugar correto, na medida em que a criança precisa dos pais (de ambos!), e também é radicalmente diversa de qualquer modalidade de fornicação pré-matrimonial. Uma sexualidade que consista em obter prazer de pessoa do mesmo sexo é apenas uma forma de masturbação, contrária à natureza por não permitir que o prazer do sexo aponte para seu fim último, que é a concepção. Ela só visa o presente, nunca o futuro. E o casamento é a aposta de um casal, de duas famílias, no futuro da sociedade, num futuro em que aquelas duas famílias formem uma só, em que nasçam e sejam criadas crianças que pertencem a ambas.

O casamento, assim, é uma flecha para a frente, uma antecipação do batismo das criancinhas que virão. E para que ele funcione, é necessário que ambos os cônjuges o vivam plenamente, sem ressalvas, sem guardar para si o que deve pertencer a ambos. O papel do cônjuge não é ser “um xodó, que acabe o meu sofrer”; o que acaba o sofrer é o Céu, não o cônjuge. Este é ao mesmo tempo nosso esteio e nossa cruz; nossa cara, caríssima metade, que ao longo das décadas vai-se conformando mais e mais a nós enquanto nos conformamos mais e mais a ele, e, ao mesmo tempo, enquanto nascem e crescem no seio deste lugar de dor e amor que é a casa de família as novas gerações.

Assim, é necessário deixar de lado as ilusões românticas, e encarar o casamento como  que ele realmente é: uma parceria que só pode acabar com a morte de um dos cônjuges, uma aposta no futuro, a formação de um lugar propício para preparar as novas gerações. Ambos envelhecerão; o rapaz forte que casa com a moça bonita irá se tornar um senhor de idade, fraco, ao lado de uma senhorinha enrugadinha, e continuarão eles a ser uma só carne enquanto seus filhos encontram, por sua vez, cônjuges para si e tudo recomeça, sendo tudo sempre redescoberto a cada nova geração. O idoso falece e o bebê nasce, e assim continua e se perpetua nossa espécie e nossas sociedades. E é justamente na hora em que os filhos criados deixam de demandar a atenção absoluta dos pais que a senectude passa a tornar necessário que cada um dos cônjuges tenha no outro o seu esteio. Quem nõ casa, ou se separa, sofre a velhice sozinho, em vez de estar ao lado de sua cara metade, da pessoa que ao longo dos anos aprendeu a amá-lo e respeitá-lo.

Mas a coisa mais linda deste processo é que ele não é aprendido, mas vivido, descoberto como se fosse a primeira vez na História que algo assim acontece. Assim como cada bebê descobre sozinho como se engatinha e como se anda, cada casalzinho recém-saído da meninice descobre o amor como se fosse o primeiro amor, o sexo como se fosse ainda no Éden, o convívio como se jamais tivesse havido algo assim na História. Isto ocorre por ser esta a nossa natureza, ser esta a forma pela qual a nossa natureza se perpetua. E, convenhamos, é lindo demais; é por isto que nada me traz mais garantidamente um sorriso aos lábios que ver um casalzinho jovem de mãos dadas, com toda a vida pela frente. Eles são o futuro do mundo.

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