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As já habituais bolsoconfusões ministeriais acerca de quem deve ocupar a pasta de Ministro da Educação motivaram-me a escrever este texto. Afinal, convenhamos, a função de Ministro da Educação num país como o nosso é uma missão quase impossível.
Não é de hoje que a educação brasileira tem problemas sérios. Um dos melhores diagnósticos que já vi da educação brasileira foi escrito por um professor americano que lecionou aqui por um ou dois anos, nos anos cinquenta do século passado. Ou seja, antes mesmo de Paulo Freire dar o toque final ao fazer da doutrinação política o centro do que passa por educação por aqui.
O cerne da crítica do professor é que os alunos decoravam tudo, todas as definições, mas eram completamente incapazes de usá-las na vida real, no mundo físico que, teoricamente, todas aquelas equações descreviam. Em outras palavras, o processo de aprendizagem era total e completamente desligado do seu fim, que é a aprendizagem das coisas como reais e como adequadas e empregáveis no trato da realidade física. Os únicos alunos que se mostraram capazes de usar na prática o aprendido, descobriu ele, eram um rapaz que estudara no exterior e outro que, por ausência dos professores durante a Segunda Guerra, estudara por conta própria.
E até hoje isso continua, piorado. A crítica paulofreiriana à educação “conteudista” e “bancária”, em que o professor “depositaria” o conteúdo na cabecinha do aluno para “sacá-lo” na prova, fez com que até mesmo a decoreba inútil e descolada da realidade que perfazia até então o processo educacional tupiniquim fosse substituída por uma vaga noção de como usar fórmulas apresentadas pelo professor, sem todavia ainda aplicá-las à realidade.
O miolo do problema continua intocado, e o MEC só trata (e trata com uma minúcia e um nível de microgerenciamento que seria inimaginável em qualquer outra área) dos processos: quem pode dar aulas, quanto tempo elas devem duras, quantas deve haver por semana e por ano, o que deve ser abordado nelas, e por aí vai.
O que passa por Ciências Humanas nas escolas brasileiras é uma piada: uma Literatura em que ninguém lê um livro, só descrições de estilos e excertos; uma História e uma Geografia em que a matéria “conteudista” serve apenas de desculpa para treinar os alunos na problematização marxista, aprendendo a discernir “oprimidos” e “opressores” sem nada perceber de todo o resto.
Do que passa por Filosofia e Sociologia no Ensino Médio prefiro nem falar, por não ser do meu feitio enfileirar palavrões neste espaço tão civilizado.
As Exatas também são a mesma porcaria, em que os alunos “aprendem” uma série de fórmulas e malabarismos com números sem jamais, por um instante que seja, usá-los no mundo real ou mesmo perceber para que serviriam nele. Mostre-me um aluno de Ensino Médio que tenha a mais vaga ideia de um contexto em que lhe seja útil no mundo real a equação de Bháskara, que todos decoram, e mostrar-lhe-ei raríssima exceção. Biologia vai pela mesma senda. Melhor seria juntar tudo e jogar fora.
Mas como fazê-lo? O que poderia “dar jeito” na educação formal brasileira? Segue então um pensamento algo utópico, na medida em que para torná-lo realidade seria necessário um poder que não vejo como um governante do Bananão poderia ter neste momento histórico.
A primeira coisa a fazer seria combater uma doença antiquíssima de nosso país, já estudada até por Gilberto Freyre: o “bacharelismo”, o amor aos papéis, aos diplomas supostamente comprobatórios de conhecimentos que na verdade seu detentor não possui nem quer possuir. Somos o país do diploma, da carteirinha disso ou daquilo, de papéis sem sentido que acabam valendo muito mais que a realidade dos fatos, que eles acabam substituindo, tornando toda aquela papelada a moeda de troca de um mundo de fantasia. É o que eu chamo de “papelucholatria”. O papel, na prática, como certificado de trânsito concluído por um processo, substitui o fim real, que seria a adequação da ideia à realidade.
Para acabar com isso, uma primeira medida seria fazer com que o Estado parasse de se meter no reconhecimento de atividades acadêmicas. Em outras palavras, o Estado seria tão cego para diplomas quanto hoje é cego para religiões e deveria ser cego para cor da pele (infelizmente, pela primeira vez na história deste país, para citar um certo apedeuta eneadáctilo, o surgimento das nefandas “cotas” fez com que o conceito obsceno e em si já racista de “raças” surgisse em documentos oficiais pátrios, para nossa vergonha eterna).
Assim acabaria a palhaçada que é considerar que um engenheiro formado pelo ITA e um detentor de diploma “superior” de “visagismo capilar” (leia-se, literalmente, um diploma supostamente superior de cabeleireiro! Isto existe, senhores) formado pela Unifácil da esquina sejam igualmente tidos por “detentor de diploma de nível superior”, igualmente aptos a cursar qualquer mestrado.
Cada instituição poderia definir quem ela aceita e quem ela não aceita; se ela fizer questão de algum tipo de diploma, seria dela a competência de decidir qual. Isso, claro, valeria em todos os níveis: para entrar numa faculdade, num mestrado ou doutorado, para cursar o que quer que fosse, cada instituição teria a mais completa liberdade de decisão acerca de quem ela quereria admitir.
O mesmo, claro, valeria para a contratação de professores: cada instituição poderia contratar quem ela bem entendesse para ministrar qualquer matéria, independentemente de ter ou não este ou aquele pedaço de papel. O governo simplesmente se manteria afastado disso, sem dizer nada, sem ter poder algum sobre essas decisões, que seriam estritamente acadêmicas. Em suma, nada mais de supervisão de processo pelo Estado, que já se provou mais que incapaz de fazê-lo.
Da mesma forma, os currículos também não poderia jamais ter ingerências governamentais, quaisquer que fossem. Assim, se, por exemplo, uma senhorinha do interior do Piauí resolvesse criar nos fundos de casa uma escolinha de primeiras letras em que o currículo consistisse apenas de leitura, escrita, aritmética básica e regras elementares de higiene, ela estaria livre para fazê-lo, sem qualquer ingerência governamental.
Se, ao contrário, alguém decidisse criar uma escola em que os alunos, ao entrar, passassem por um propedêutico de dois anos de aprendizado de latim para que todas as aulas fossem ministradas nessa língua, bastaria ter meios de criar e levantar esta escola, e tudo estaria bem. O Estado não teria qualquer poder de ingerência sobre isso.
Ao contrário, até: o Estado incentivaria fiscalmente – sem restringir de modo algum os critérios empregados pelas instituições – o surgimento de empresas privadas dedicadas a oferecer selos de qualidade, aproximadamente como hoje ocorre, por exemplo, com os selos atestando manejo ambiental de produtos agrícolas ou os diplomas de proficiência em línguas estrangeiras. Assim, uma instituição de ensino superior poderia, por exemplo, aceitar alunos que tivessem o selo tal, devendo todos os demais fazer uma prova. Ou não: cada uma seria livre para fazer o que bem entendesse.
Os selos de comprovação do que deve ser o fim do estudo substituiriam, assim, os diplomas que atestam apenas o trânsito por um processo microgerenciado pelo Estado. E como quem quisesse poderia criar o próprio selo, a concorrência entre as instituições que os emitem e entre os próprios selos faria com que surgissem selos atestando vários níveis de capacidade, competências diferentes, e por aí vai.
Rapidamente surgiriam firmas dedicadas a oferecer um selo de garantia, por exemplo, de alfabetização funcional, com provas para crianças e adultos que comprovassem sua capacidade de ler e entender um texto – coisa que 50% dos universitários de hoje não têm, justamente por conta da falsificação que são os diplomas emitidos pelas instituições atuais, dominadas pelo MEC.
Este determina até mesmo os diplomas necessários para que um professor lecione, mas a única tentativa de constatação do aprendido é o Enem, em que – pelo menos até há pouco – era mais importante demonstrar (marcando X, com apenas uma redaçãozinha pra remédio) a capacidade de “lacração” esquerdista que algum conhecimento sólido. Que dirá, claro, a capacidade de aplicação à realidade do aprendido. Esta simplesmente inexiste.
Os diplomas brasileiros, assim, são em sua quase totalidade literalmente moeda falsa, atestando coisas que não são reais. O ensino é apenas um processo puramente formal de obtenção desses diplomas, consistindo basicamente na presença do aluno e no seu treinamento para engolir a “matéria” e regurgitá-la na prova antes de a esquecer. O que, por óbvio, nada tem a ver com a realidade, nem com aprendizagem, nem com conhecimento, nem com educação, nem com cultura. É apenas um processo sem sentido pelo qual se obriga as crianças a passar. Isso, evidentemente, gera multidões de pessoas que passam treze anos enfurnadas em escolas lotadas e saem de lá piores que entraram.
Para começar a dar um jeito na situação é mister acabar com o reconhecimento estatal dos diplomas, o que levaria ao surgimento de processos educacionais reais, que servissem como cursos preparatórios para conseguir selos outorgados por motivos diversos – aliás, exatamente como hoje ocorre com os cursos de língua em relação aos diplomas de proficiência ou os cursinhos preparatórios em relação aos concursos. Aliás, não é à toa que é apenas nestas áreas que os professores brasileiros conseguem ser bem pagos: ali interessa o resultado, não o processo, o que eleva o pagamento do bom professor e alija do mercado o mau, independente dos papeluchos que tenham na parede.
Desta forma, uma determinada instituição, por exemplo, prepararia para conseguir o selo da OAB (hoje necessário para o trabalho de advogado; menos de 10% dos formados em direito conseguem obtê-lo, o que prova, mais uma vez, que os diplomas que eles têm são literalmente moeda falsa). Outra prepararia meramente para um selo de rábula, podendo exercer funções jurídicas que não demandassem conhecimento mais aprofundado do direito, como pleitear indenizações de seguro obrigatório. E outra ainda prepararia para o trabalho de assistente de advogado. E por aí vai.
No ensino fundamental, então, a mudança teria que ser profunda. Primeiro porque simplesmente não funciona hoje esta etapa do ensino, que deveria ensinar a ler e escrever e os rudimentos de aritmética. Aliás, isto deveria ser, a priori, algo ensinado em casa e não numa escola; esta deve ser apenas um suplente para ajudar pais que não consigam fazê-lo.
Este fracasso educacional se deve a vários fatores. Um dos principais é a adoção de péssimos métodos, numa moda que – por ter conquistado as faculdades de pedagogia – acaba quase alijando os proponentes de métodos realmente eficazes, como aliás é o professor Carlos Nadalim, atual responsável pela alfabetização no MEC.
Mas de que adianta ter um responsável com boa visão, se o sistema todo é voltado para a perpetuação do engodo, como é o caso? Se as professorinhas não precisassem mais do famigerado diploma de pedagogia, que veio a substituir com prejuízo o diploma de Escola Normal, obtido no Ensino Médio antigamente, elas já não seria forçosamente sujeitas aos delírios duma chusma de acadêmicos delirantes que preferem repetir inverdades que pesquisar o que realmente funciona.
As escolas públicas, esses gigantescos depósitos de crianças, deveriam ser simplesmente fechadas, com raríssimas exceções. Na verdade, o que elas fazem é dumping, a prática comercial imoral que consiste em colocar no mercado um produto por preço irrisório, levando à falência os concorrentes. Com a escola pública gratuita, fica infinitamente mais difícil manter escolas particulares. Estas, aliás, também são sujeitas a tantas determinações obscenas que mereceriam um texto à parte: minha proposta é libertá-las. Torná-las livres como os cursos de línguas e os preparatórios para Enem e concursos, diga-se de passagem as únicas instituições de ensino brasileiras que realmente fazem o que se propõem a fazer.
A exceção, que como sempre confirma a regra, seriam as escolas situadas em lugares em que simplesmente não há como ser erigida uma escola particular, como o interior fluvial do Amazonas ou em alguns pontos do sertão nordestino. E mesmo assim, estas instituições deveriam ser regidas pela comunidade, inclusive na determinação do currículo, dos quesitos para contratação de professores, e o que mais fosse necessário. Só o que competiria ao Estado seria prover a verba.
Para as demais regiões, o Estado poderia prover às famílias realmente desvalidas e incapazes até mesmo de conseguir pagar uma escola particular especialmente barata (como as que certamente muitas instituições religiosas manteriam, com donativos ajudando a mantê-las independentemente da capacidade de pagamento dos pais de alunos!) o que se convencionou chamar de voucher, por analogia ao instrumento usado por agências de viagens. Trata-se, basicamente, de uma bolsa de estudos garantida pelo Estado àqueles que se revelarem realmente incapazes de pagar uma escola.
Sendo as escolas também livres de amarras, podendo contratar quem bem entendam e ministrar as matérias que acharem necessárias, com a carga horária que percebam conveniente, rapidamente surgiriam instituições de vários tipos. Algumas, especialmente no começo do processo, seguiriam o triste padrão atual, com trinta crianças de ambos os sexos sentadas numa sala a manhã inteira, aprendendo menos que o que aprenderiam se fossem lá uma vez por semana para ter aulas numa turma de meia-dúzia de aluninhos, todos do mesmo sexo. Isto, todavia – a não ser no caso das famílias que recorram à escola como mero depósito de crianças para que ambos os pais possam trabalhar, coisa infelizmente comum – rapidamente se tornaria apenas uma modalidade, quiçá a menos comum dentro todas.
Escolas de tempo integral e de tempo parcial, escolas com um foco determinado (por exemplo, cursos técnicos começando com alunos de doze ou treze anos de idade, a idade ideal para iniciar o aprendizado de um ofício), escolas de formação duma elite intelectual, com línguas clássicas e cultura humanista, escolas militares e escolas pacifistas, escolas religiosas de todo tipo e escolas laicistas… Escolas de toda espécie rapidamente apareceriam por toda parte, para maior possibilidade de escolha dos pais que não possam ensinar em casa as primeiras letras ou que queiram algo a mais.
O que mais há neste país é gente que quer ensinar e tem enorme capacidade para tal, mas que se vê tolhida pela palhaçada que é o engessamento do ensino pelo MEC. Eu mesmo conheço pessoalmente várias pessoas que se lançariam felizes à empreitada de construir do nada uma escola, se fossem livres para escolher currículo, professores, métodos, e tudo o mais que hoje é absurda e criminosamente proibido pelo Estado.
O MEC, no momento atual, está tentando (na pessoa de Nadalim e alguns outros quase-mártires da causa do ensino) oferecer cursos gratuitos e facultativos para ensinar os professores a ensinar. É uma boa ação, que poderia e deveria continuar nas circunstâncias que proponho. Do mesmo modo, poderiam também ser oferecidos pelo próprio MEC cursos à distância de todo tipo, não apenas para professores, com ênfase na cultura clássica: latim, grego, literatura, artes clássicas… Em suma, o MEC, livre da absurda função de engessamento da educação nacional, poderia dedicar-se ao real aprimoramento cultural e à garantia da transmissão do imenso cabedal de cultura de que somos todos herdeiros. O verdadeiro sentido da “Educação e Cultura” de que ele deveria, em tese, encarregar-se. É um direito da população, mas que lhe é quase negado hoje.
Antigamente, eram comuns as kombis do MEC, vendendo pelas esquinas material didático pelo preço de custo. Tenho um excelente dicionário de latim que comprei numa delas. Este é um trabalho que deveria ser retomado e ampliado, dando acesso, por exemplo, aos clássicos da literatura vernácula, inclusive a íntegra dos Sermões de Pe. Antônio Vieira e outras pérolas quase esquecidas.
Assim, com o MEC libertando as instituições de ensino e dedicando-se à Educação e Cultura, que deveriam ser o seu objetivo desde o princípio, seria possível remediar a educação nacional. O que temos hoje é um longo processo que hoje é voltado única e exclusivamente para a obtenção de um canudo que na verdade é falsa moeda, paga a preço de ouro em dinheiro (público e particular) e – principalmente – em tempo pelos alunos, forçados a sentar-se a manhã inteira por quase duas décadas para continuarem incapazes de ler e entender uma notícia de jornal. Ele assim seria substituído por uma infinidade de processos diversos, justamente por ter sido eliminado o incentivo primeiro ao ridículo e falso canudo hoje tão ambicionado. As instituições religiosas e o mercado cumpririam sua função de agir como substitutos dos pais das crianças, quando estes se considerarem incapazes de instruí-las em casa.
Eu sei o quanto parece utópico, e mesmo o quanto é efetivamente utópico fazer o que proponho; afinal, os interesses financeiros são gigantescos, assim como o lobby dos professores de escola pública – que sempre digo consistirem de 10% de verdadeiros heróis dedicados ao ensino, 30% de gente que em criança gostava da escola como ela é (pura masturbação mental acerca de coisas que não tocam na realidade mas são cobradas em prova) e resolveu continuar nela como professor, sendo o resto gente burra demais para trabalhar como caixa de supermercado e feia demais para arranjar um cônjuge rico. Mas, a meu ver, o único jeito seria este. Costumo dizer que nos (aos católicos, aos devotos da cultura clássica) foi roubado o título “universidade”, e devemos fazer o mesmo que antes já era feito, só que com outro nome, sem nem buscar o reconhecimento do MEC nem o reconhecer. É o que comumente fazem as dioceses, que em sua maior parte não buscam o reconhecimento do MEC para seus seminários, para garantir que o ensino não seja atrapalhado por ele!
Isto, todavia, deveria ser também feito, aliás é fundamental que seja feito, em relação ao ensino das crianças e adolescentes, muito mais importante que os estudos superiores por ser a base de todo e qualquer deles. No momento, todavia, com o encarceramento maciço e obrigatório das crianças por metade de cada dia, sem que elas tirem nada de bom dele, isso é impossível. Espero em Deus que um dia, espero que em breve, isto acabe. Só assim poderemos ter um país de leitores, um país em que quem aprende algo sabe usar o que aprendeu no mundo real. Um país, em suma, em que o bacharelismo venha a ser um fenômeno histórico estudado e lastimado, não a triste realidade que ora nos devora.