Como disse o poeta, “’stamos em pleno mar!”. A questão, contudo, é em quê “’stamos” apoiados, neste pleno mar em que ora nos situamos. As opções são duas, a meu ver: ou bem estamos no Titanic, aproveitando o calor das caldeiras, a boa música e a boa comida, ou estamos acampados no alto do iceberg para o qual ele se encaminha. Tiritando e, quem sabe, sentindo até mesmo uma boa dose de inveja dos passageiros do barcão.
O Titanic é a Europa e o filho bastardo de sua periferia nórdica mais selvagem, os EUA. O iceberg é o Brasil e, por extensão, a América Latina e, de uma certa forma, o resto dos Brics (na formação original da banda, sem a África do Sul). Por ora, lá é morninho, o caviar é de primeira, a música é boa e as moças são sorridentes e usam saias curtas. Mas o choque se aproxima a olhos vistos, e na hora dele mais valerá ficar no que continuará a boiar, por mais frio e desagradável que cá por ora seja.
Isto ocorre por uma dessas vicissitudes da fortuna, que ocorrem sem que ninguém possa, na prática, fazer algo acerca delas até que já seja tarde demais. A velha Europa, segundo Homero filha da rubra Fenícia, fez-se centro de uma civilização incomparável, em cujo cadáver insepulto ainda vivem seus habitantes. Esta civilização pode ser dita iniciada e mantida pelo Império Romano, e completada pela Revelação cristã que nela aportou na pessoa de São Pedro Papa. É dela, da mistura dos elementos oriundos de Jerusalém, Roma e Atenas, que nos veio praticamente tudo o que temos ao redor, tudo a que damos valor. Seria ridículo tentar diminuir tal civilização, mais ainda quando sem ela não haveria nenhum dos elementos que hoje conhecemos como civilizados, da tecnologia e ciência ao respeito à vida humana individual e à lei, da medicina à filosofia, da música às formas de governo em que pela primeira vez na história o governante não é confundido com a Divindade nem o pobre, com a poeira da estrada.
Em pouquíssimas gerações, como é evidente quando se olha a distância, o protestantismo transformou-se em imanentismo, em ganância capitalista
Coisa de 500 anos atrás, todavia, esta civilização começou a apodrecer de dentro para fora. Os ataques externos contra ela continuavam sempre, mormente no seu sul, onde seu maior inimigo, o Islã, continuava a tentar destruí-la. No norte, contudo, o paganismo já havia sido vencido. A Alemanha e seu entorno já eram terras confortáveis; os Cavaleiros Teutônicos já se haviam transformado em gorduchos proprietários de vastíssimas e pacíficas terras. Ali, no meio do conforto e do luxo, apoiado em almofadas de seda, como sempre, surgiu o primeiro foco da gangrena que acabaria por envenenar todo o corpo civilizacional. A revolta protestante, dando origem à Modernidade, acabou conseguindo contaminar e putrefazer todo o norte (que tinha menos anticorpos por jamais ter sido parte do Império), espalhando-se ainda pela Inglaterra, que a vasta migração saxônica e nórdica ocorrida após o fim do Império tornara menos civilizada que o continente. Em pouquíssimas gerações, como é evidente quando se olha a distância, o protestantismo transformou-se em imanentismo, em ganância capitalista. E do enxerto desta putrefação no Hemisfério Norte de nosso continente veio o genocídio indígena e o estabelecimento formal e orgulhoso da ganância como princípio pseudocivilizatório.
Do sul, todavia, ao mesmo tempo em que a gangrena da Modernidade se espalhava, espalhava-se uma Cristandade heroica, que “da ocidental praia lusitana, por mares nunca dantes navegados passaram ainda além da Taprobana em perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana; e entre gente remota edificaram novo reino que tanto sublimaram”. A Cristandade da Península Ibérica não se havia acostumado a almofadas macias, como o preguiçoso norte europeu. Ao contrário: ela acabara de expulsar o mouro de suas costas, ao cabo de uma guerra de 800 anos, e tinha as costas rijas e os olhos argutos.
Tivemos, assim, dois fenômenos migratórios de certo modo semelhantes, mas doutro opostos, que ocorreram ao mesmo tempo: enquanto o norte putrefato, o norte a que faltara a plena civilização por não ter jamais plenamente pertencido ao Império que deu a coluna vertebral da civilização cujo coração é o Verbo, espalhava sua gangrena assassina no norte de nosso hemisfério, o sul guerreiro e forte, o sul da Hispania romana, o sul do Portus calis de onde vieram nossos ancestrais, espalhava na metade sul do mesmo hemisfério a continuação da civilização cristã, formando pela força vital ininterrupta da Cristandade “novo reino”, que somos nós.
A putrefação moderna, todavia, continuou escorrendo pelas veias da Europa. Pouco a pouco, povo a povo, país a país, cidade a cidade, família a família, ela foi contaminando a cultura. A França, “filha mais velha da Igreja”, decapitou seus reis e seus bispos. A Itália, a própria Itália do Lácio, viu-se presa de aventureiros, que dos Estados Pontifícios fizeram uma triste piada que acabou em dar no fascismo. A Espanha teve centenas de milhares de seus filhos mortos numa guerra intestina em que os erros da Rússia, pouco antes apontados por Nossa Senhora em Fátima, tentaram acabar com o verdadeiro culto cristão naquele vasto território evangelizado por São Tiago ao redor do Pilar. E, o que é pior, a contaminação foi fazendo com que as próprias pessoas que formam a civilização fossem se esquecendo dela. Os cachorros foram substituindo os filhos; o Estado, a família; as ideologias, a religião. Até que, finalmente, a Modernidade atingiu o seu auge no segundo quartel do século passado, quando as guerras ideológicas chacinaram populações inteiras, em um conflito cuja gravidade fez com que todas as guerras de religião com que a Modernidade inaugurou sua putrefação da Europa parecessem uma pequena rusga num berçário.
Já aqui, na América Latina, nossas origens continuaram a nos orientar. A Fé dos apóstolos continuou a ser ensinada pelas avós a seus netinhos. Ficaram restritas a uma pequena crosta social agrupada nos bairros de classe média e média-alta das capitais as loucuras ideológicas, bem como o comprometimento com a autodestruição que hoje parece ter totalmente dominado uma Europa que convida a seus territórios os jovens islâmicos que antes combateria, movida pela necessidade de braços para um trabalho que não tem mais jovens cristãos para fazer. A Modernidade, para usar deliciosa expressão brasileira surgida em contexto bem semelhante, por aqui sempre foi só para inglês ver.
Há já quase 100 anos, todavia, desde 1945, que a Modernidade perdeu toda e qualquer chance de subsistência. O confronto final entre as ideologias terminou, em última instância, pela morte de todas, na medida em que todas dependem de um centralismo que deixou de ser possível e que teve sua pá de cal na derrubada das Torres Gêmeas novaiorquinas por uma ONG do Terceiro Mundo. Os cadáveres rubicundos das ideologias ainda moveram por mais meio século os discursos dos governantes, sem, contudo, conseguirem ir além da piada. Piada macabra, no mais das vezes, como fartamente comprovado pelos morticínios executados pelos comunistas onde quer que tenham conquistado o poder. Mas, em última instância, sempre uma piada, cada vez menos capaz de manter uma sociedade. Esta, afinal, na verdade persistira apenas como sobrevivência de um que outro aspecto da mesma civilização cristã que a Modernidade veio tentar apagar. Tanto o apego aos pobres da parte dos comunistas quanto o respeito à lei da parte dos capitalistas, por exemplo, são apenas formas distorcidas de princípios e valores basilares da Cristandade. Daí o transplante das ideologias para os locais nunca cristianizados ter-se dado na forma de barbarismo puro, como os pobres nativos da Península Coreana hoje exemplificam: de um lado a distopia comunista, em que os pobres são os mais importantes em tese, mas todos eles morrem de fome; do outro, a distopia capitalista, em que o crescimento humano seria em tese a meta social principal, mas os jovens preferem o suicídio a não conseguir boa aprovação no vestibular.
O confronto final entre as ideologias terminou, em última instância, pela morte de todas, na medida em que todas dependem de um centralismo que deixou de ser possível
Como a ordem social moderna é feita de cima para baixo, pela interação direta entre indivíduos atomizados e ao menos percebidos como desprovidos de outros laços sociais que não os fornecidos ou garantidos pelo Estado, ao acabar a ordem social moderna acaba a sociedade, se esta for a única existente. Na Europa e nos EUA, esta indubitavelmente é a única existente, o que faz com que a aproximação cada vez mais acelerada do fim desta ordem traga consigo a certeza de gigantescas convulsões sociais, e mesmo de guerras intestinas, até que sejam criados (ou, antes, recriados) laços sociais mais conformes à natureza entre as pessoas. Já nos países em que a ordem social moderna é apenas um mecanismo tremendamente superficial, em que jamais houve confusão, por exemplo, entre a legislação positiva e o mínimo moral, o que acontece é o oposto: na medida em que se desvanece a ordem social, surgem mais importantes os laços sociais subjacentes que, na verdade, sempre foram os responsáveis pela manutenção da estrutura social. Assim, é apenas nos lugares em que a ordem social moderna teve maior entrada (por exemplo, nas capitais mais ricas do nosso Brasil) que há convulsão social.
O mesmo, evidentemente, ocorre nos lugares do mundo em que à ordem moderna superestrutural houve sempre um contraponto “subterrâneo” de ordem pré-moderna, mesmo que esta não seja de índole cristã. É o caso, por exemplo, como citei acima, dos demais Brics (Rússia, China e Índia), bem como do pobre Sudeste Asiático. A diferença crucial entre estes outros países que não têm tanto a perder com o fim da Modernidade e a América Latina, todavia, é a nossa forma cristã de civilização. Neles não se pode esperar, por exemplo, que haja o respeito à vida humana que só foi trazido ao mundo pelo Cristianismo, nem, muito menos, que deixem de fazer enorme diferença os conflitos étnicos que na Cristandade chamam a atenção pela sua ausência. Eu não gostaria, com minha pele escura, de tentar viver entre os russos de daqui a uma ou duas gerações, quando a fina casca de modernidade já se houver esfacelado e os ardores étnicos ressurgirem com força. A China, do mesmo modo, já vem acelerando (e isso ainda dentro de um projeto moderno; que dirá quando este encontrar seu inevitável fim!) a destruição de toda minoria cultural e étnica em prol da supremacia han. Na Índia, com suas miríades de etnias (ou castas), é o hinduísmo em forma moderna, o hindufascismo do BJP, que causa o recrudescimento do martírio de cristãos e, em menor medida, de islâmicos naquele subcontinente.
Afinal, o universalismo e o catolicismo são uma só coisa. Todo universalismo moderno (do comunismo ao capitalismo, passando por todos os muitos outros fenômenos ideológico-religiosos que caracterizaram a modernidade, incluindo o Islã takfiri) não passou de forma depravada do universalismo católico. Retirando-se a Modernidade, retira-se com ela o universalismo onde quer que ele não tenha fortes raízes católicas, como é o caso neste nosso Novo reino da Latinoamérica. Assim, as formas tribais de pertença e, mais fortemente ainda, de rejeição forçosamente recrudescerão por toda parte fora daqui. É apenas questão de tempo para que as 751 zones urbaines sensibles – verdadeiros enclaves muçulmanos nas periferias das cidades franceses, em que a polícia só entra em operação de guerra – tornem-se sítio de conflitos abertos entre o Islã takfiri que as domina e as identidades remanescentes ora à disposição das populações francesas de souche (de origem étnica predominantemente europeia, descendentes da França católica). Do mesmo modo, é bastante previsível que os conflitos ideológicos já insanáveis que dividem a sociedade norte-americana rumem para um agravamento que pode levar à criação de etnoestados, já desejados por alguns.
Aqui, todavia, com a triste exceção das megalópoles, uma paz relativa há de perdurar e, diria eu, fortalecer-se com a retirada da pseudo-ordem exógena e hipercentralizadora da Modernidade. E assim o iceberg pode estremecer até bastante com o choque, mas será o Titanic que virá a repousar no fundo gélido das águas do mar.