Cachorros e crianças pequenas têm algo em comum: eles procuram coerência e a recompensam. É por isso que quem tem cachorros ou filhos pequenos deve sempre buscar ser o mais coerente que puder em suas ações: o que era proibido ontem continua proibido hoje, e exatamente do mesmo modo, com as mesmas consequências etc. Essa coerência, claro, deve ter como objetivo aquilo que a gente quer que eles façam.
Por exemplo: meus cachorros sempre foram educados a não botar as patinhas de trás dentro de casa. Lugar de cachorro é no jardim, mas eles podem enfiar a cabeça e as patas da frente dentro da sala para ficar mais próximos das pessoas, fazendo-lhes companhia sem avançar muito no território que não é o deles. Do mesmo modo, meus filhos, desde que aprenderam a andar, aprenderam também que não dá para conversar gritando. Assim, se eles começavam a gritar por alguma razão que não fosse um machucado, eu mandava que fossem gritar lá fora (na varanda, num quarto longe, em qualquer lugar de onde o choro deles não incomodasse) até que conseguissem se acalmar o suficiente para poder voltar e dialogar. O resultado é que nunca um filho meu fez manha na rua ou achou, de qualquer maneira que fosse, que conseguiria arrancar algo de mim pelo grito. Pelo contrário, até: era engraçado ver como eles olhavam para crianças birrentas na rua. Como me confirmaram quando cresceram, eles achavam que aquelas crianças eram loucas.
O que eu fiz ao apresentar o mundo coerentemente às crianças e aos cachorros pode ser descrito de outra forma: eu os preparei para o futuro, eu agi no momento, mas visando os outros momentos que viriam mais tarde. A coerência é uma régua que avança pelos dias, anos e séculos, atestando que o que era ontem será amanhã e é hoje. Como as leis da física. Como a natureza humana. Como o bem e o mal.
A coerência nos nossos atos vai além das crianças e dos cachorros, claro. É muito bom que sejamos coerentes em tudo o que fazemos, até para que nós mesmos vivamos melhor. O estômago reclama se mudamos de dieta o tempo todo, e cada parte de nosso corpo tem seus limites e necessidades. Mas a necessidade e valor da coerência vão além, muito além: a sociedade como um todo é a soma de todos esses comportamentos coerentes de cada membro seu. Crianças são futuros membros da sociedade – ainda que um pirralho urrando e se debatendo no chão do supermercado, pelo grau de incômodo que causa, já seja um membro da sociedade, e um mau membro – e é por isso que elas naturalmente buscam a coerência. Cachorros são auxiliares da sociedade, e foi a sua adaptação à sociedade humana que selecionou os que fossem mais adeptos da busca pela coerência. Automóveis, que também devem ser dirigidos coerentemente – daí as leis do trânsito –, são ferramentas da sociedade. E por aí vai. É pela coerência que conseguimos colaborar uns com os outros de forma a fazer com que a sociedade funcione.
E é essa coerência que vem sendo perdida na pós-modernidade, sob, de início, a ideia do “fim das grandes narrativas” até chegar ao ponto de hoje, em que é o diferente, não mais o coerente, que é apontado como núcleo da sociedade. No começo da pós-modernidade, imaginava-se uma sociedade em que não houvesse mais a busca ansiosa por utopias que moveu para mal e para bem (muito mais para mal, de longe) o século passado. Já hoje vemos essas mesmas utopias ressuscitadas sob formas individuais: uma utopia de infinitos gêneros, por exemplo, ou de infinitas transformações de cada pessoa, sendo num minuto homem, no outro mulher, no outro alien de Beta do Centauro, cavalo ou televisor de plasma. O que não há é a valorização da coerência que faz da sociedade uma sociedade. É coerente quando olhamos dentro das calças, vemos a que sexo pertencemos e procuramos nos comportar de acordo com ele. É coerente com a genética e facilita tremendamente a vida de todo mundo; quem está em torno sabe o que esperar e, mais ainda, a própria pessoa tem o conforto de saber quem é, sem utopias, sem delírios, sem tentar construir algo que não se é. Tentar construir a própria identidade, mormente a partir de algo tão passageiro e volátil quanto o desejo sexual, é impossível. Ou bem somos, ou bem construímos; podemos construir algo fora de nós, mas não temos como construir o que somos e ser ao mesmo tempo. Seria como tentar desmontar um avião e montar outro modelo com as mesmas peças, em pleno voo.
Em sociedade, ainda, é coerente que, ao percebermos que a carteira está vazia e a conta de banco mais ainda, procuremos trabalho urgentemente. É coerente que, ao ouvirmos uma opinião diferente da nossa, procuramos prestar-lhe atenção para que a compreendamos e possamos aderir a ela ou refutá-la. É coerente que os cavalheiros cedamos lugar às damas e aos mais velhos. É coerente que sejamos os homens a enfrentar o perigo e as mulheres a acolher os feridos. A sociedade é feita de coerência, e para que possamos ser plenamente o “animal naturalmente social” que Aristóteles nos declarou ser devemos procurar agir o mais coerentemente possível.
Essa coerência vem do ser, do que cada coisa é, do que cada coisa foi feita para fazer, e, assim, de como podemos lidar com cada coisa de modo a levá-las à perfeição que é o ser expressar-se plenamente como o que ele efetivamente é. O que cada coisa é deve ser respeitado; confundir um prego com um sorvete, um Fusca com uma Ferrari ou um rapagão com uma núbil mocinha só serve para criar problemas. É na interseção entre o ser de cada coisa que mora a ação: o carro, que é uma ferramenta feita para levar pessoas e carga por distâncias médias e longas, encontra sua perfeição em ser usado para este fim. Um carro usado como canteiro de flores, por exemplo, não está sendo respeitado como carro, assim como um violão em que só se batuca ou um trompete pendurado na parede como decoração. Empregar um objeto de acordo com o que ele é – logo, de acordo com aquilo para o que ele foi feito – é agir coerentemente. O mesmo vale para pessoas: uma moça com um talento musical magnífico não estaria atingindo sua perfeição se a sociedade não lhe proporcionasse meios de crescer musicalmente e a condenasse a trabalhar num caixa de mercado e cantar apenas no curto chuveiro que seu salário miserável pudesse pagar. A sociedade agiria coerentemente em relação ao talento da moça se lhe permitisse desenvolvê-lo plenamente.
É preciso, assim, que cada um faça, nesta pós-modernidade em que nada disso é mais evidente, um esforço consciente para perceber o que as coisas efetivamente são e agir coerentemente em relação a elas. É nessa ação coerente que estaremos fazendo a nossa parte na reconstrução da sociedade. Estamos vendo, diante de nossos olhos e nas notícias, a sociedade se esgarçando e se desmanchando como um pano podre. Vemos ao mesmo tempo uma das causas principais disso, que é a negação das elites financeiras e culturais de agir coerentemente. Parece ser motivo de orgulho para elas não transmitir a herança de nossos ancestrais, mas, ao contrário, endeusar quem a desmanche ou mesmo ignore. Funkeiros com a cara coberta de tatuagens e sujeitos disfarçados de mulher feia são apresentados como modelos, enquanto padres são ridicularizados e engenheiros, vistos como equivalentes de graduados em “visagismo e estética capilar” (faculdade de cabeleireiro: existe, eu vi).
O papel de modelo das elites, agindo coerentemente de forma a serem imitadas pelas camadas mais baixas da população, foi abandonado na pós-modernidade. O ser das coisas, o que cada coisa é, passou a ser objetivo de negação frenética pelas mesmas elites, que tentam desesperadamente convencer a todos que focinho de porco é realmente tomada. Mas elas deveriam ser o modelo, apenas. Elas não têm poderes maiores que o de suscitar emulação, e o que suscita emulação é a coerência, não o pertencimento a uma elite. Dias, semanas ou meses de repetição do absurdo têm menos poder de convencimento que a apresentação simples do coerente. Assim, como o ser humano é naturalmente voltado para a coerência, sentindo-se realizado quando a encontra, a ação incoerente das elites faz com que elas acabem não sendo mais seguidas.
Por outro lado, nós outros, meros professores, vendedores, engenheiros ou garçonetes, ainda podemos e devemos agir coerentemente. A nossa ação, por ser coerente, será percebida pelos demais como um alívio, uma brisa de ar fresco no mormaço da pós-modernidade. E será imitada. Vale a pena buscar, pela ação coerente, pela ação correta, pelo respeito ao que cada coisa e pessoa é, fazer a nossa parte na reconstrução da sociedade. Se as elites abandonaram o seu papel, quem cumprir esse papel acaba por se fazer substituto daquela elite. Quem age coerentemente é imitado, e quem o imitou passa também a influenciar outros, e a sociedade volta a encontrar sua coerência interna, abandonada pelas elites.
Não são as elites que fazem a sociedade, e sim cada uma das pessoas que a compõem. Podemos deixar as elites para trás e avançar nós mesmos, passo a passo, pessoa a pessoa, no caminho da coerência, no caminho coerente que nos leva ao renascer da ordem social. É assim que se educam crianças, é assim que se adestram cachorros, e é assim que se faz com que sejam valorizadas as imensas conquistas de nossos antepassados, de que somos herdeiros, tomadores de conta e retransmissores.
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