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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Olavo tinha suas razões

CURITIBA " 23/06/01 " CADERNO G " FOTO DE ARQUIVO DE OLAVO DE CARVALHO, FILOSOFO. FOTO " ARNALDO ALVES (Foto: GAZETA)

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Numa dessas piadas que a vida nos prega, vim a saber do falecimento de Olavo de Carvalho numa breve interrupção numa série de leituras que vinha fazendo sobre figuras curiosas da direita europeia dos anos 1930. Era o momento do auge das ideologias, e a direita parecia fadada a enfiar-se na camisa-de-força do fascismo. Ainda não se sabia então que ele se tornaria genocida na versão alemã, ainda que se soubesse desde sempre ser um movimento progressista (ou mesmo futurista) e antielitista. Como encaixar em tal populismo, ou mesmo popularismo, uma figura como Agustín de Foxá, que se definiu politicamente dizendo “Sou conde, sou gordo, fumo charuto; como poderia não ser de direita?!” Ou, ainda, o alucinado Curzio Malaparte (sobrenome adotado em oposição ao de Napoleão Bonaparte)? Impossível, é claro. O fascismo exigia pretos e brancos absolutos, sem liberdade para a imaginação criadora. Estas figuras extravagantemente insubsumíveis iluminavam e ressaltavam seus limites e sua mesquinharia, e o Partido alternava em relação a eles veneração e ostracismo, admiração e ódio.

Houvesse ele nascido em tal geração, Olavo de Carvalho certamente se contaria entre tais figuras lendárias, impossíveis de encaixar numa cômoda caixinha. Bem sei que ele odiaria a referência, mas é um pouco como na música do Caetano (logo do Caetano?!): “Onde queres família, sou maluco, e onde queres romântico, burguês; onde queres Leblon, sou Pernambuco, e onde queres eunuco, garanhão”. Havia vários Olavos, uma infinidade de Olavos unidos frouxamente num todo exuberante e desconexo. Onde se quisesse um filósofo, tinha-se um frasista; onde se quisesse um conservador, um baita revolucionário. Ao mesmo tempo, claro, os opostos valiam, e quem dele se aproximasse tomando coletâneas de aforismos adocicados por filosofia saía com enorme bibliografia de coisas interessantíssimas, disparatadas e nem um pouco banais. Um sujeito generoso e franco por um lado e melindroso às raias do absurdo por outro, criando apelidos de quinta série e atiçando seus seguidores contra quem quer que julgasse haver faltado ao respeito que considerava devido. No popular: uma figura, uma grande figura, uma figuríssima.

Minha impressão dele, bem como o que dele sei, é provavelmente quase caso único. Afinal, eu detesto assistir a vídeos de gente falando, e o celebérrimo “Olavo [que] tem razão” é o Olavo em vídeo, no máximo em áudio. Certa feita ganhei de um amigo uma série de vídeos dele falando sobre a modernidade – tema com que trabalho, como talvez se lembre meu solitário leitor –, mas nunca os consegui assistir. Houvesse ganho uma transcrição eu a teria devorado de uma tacada, pois adoraria saber mais de sua visão, certamente diferentíssima da minha. Minha incapacidade de assistir a tais vídeos, todavia, me privou desse privilégio. Por outro lado, já li muito dele, de todas as épocas, o que há de me ter dado – ao lado da minha própria formação – uma certa capacidade de traçar sua história intelectual, muito além do que se poderia perceber superficialmente na provocadora persona pública do intelectual.

Havia vários Olavos, uma infinidade de Olavos unidos frouxamente num todo exuberante e desconexo. No popular: uma figura, uma grande figura, uma figuríssima

Conheci-o, pessoal e intelectualmente, quando era conhecido como jornalista. Décadas atrás isto, muito antes de ele se tornar a figura central de uma Nova Direita que ele mesmo pariu às custas de palavrões, teimosia e toneladas de indicações bibliográficas raríssimas dadas a quem lhe assistisse os vídeos. Amigos queridos foram extremamente íntimos seus, havendo entre eles vítimas, fãs embevecidos e murmuradores da nudez do rei. Inimigos cordatos, do mesmo modo, já fugiram dele ou o abraçaram, aprenderam com ele ou o condenaram. Nada disso o abrangeria por completo, todavia. Por mais fascinantes que sejam as contradições internas de um pensador, por mais chocantes ou deliciosos que sejam os momentos em que seus atos reafirmam ou contradizem seu pensar, eles não fazem mais que apontar para o fato de sua humanidade. Somos humanos, e por isso mesmo nos contradizemos em nossa intrincada complexidade. Quando se trata de alguém com tantas personas diversas, tantas posições intelectuais ao longo de uma longa vida, menos interessantes se tornam tais detalhes e mais rica e fascinante se torna a sua caminhada intelectual. Neste espacinho, à margem da hagiografia olavete e dos reducionismos antiolavetes, prefiro apresentar as razões do Olavo, que as tinha muitas, não suas personas paralelas e por vezes conflitantes. Seu pensamento, no que ele tem de bom e de mau, de forte e de fraco. Afinal, é este o Olavo que eu realmente conheci.

Quando de nosso primeiro contato, ainda no século passado, eu já o conhecia por escritos seus. Era o tempo em que as listas de discussão por e-mail abrigavam debates homéricos, e a Divina Providência me havia colocado na posição de moderador de uma, chamada Tradição Católica e Contra-Revolução e dedicada a discussões intraeclesiais. Pois um belo dia recebi do Olavo um e-mail educadíssimo, pedindo que o aceitasse na lista mesmo sem ser católico. Como eu já o sabia pessoa culta e interessante, pedi-lhe apenas que não viesse pregar acatolicidades na lista, aceitando-o assim que me garantiu que não o faria. E, efetivamente, jamais o fez. Era coisa rara que ele escrevesse algo; quando o fazia era sempre para gentilmente oferecer bibliografias e quetais.

Conheci-o pessoalmente quando ambos morávamos em Petrópolis. Ele deu uma palestra num espaço alugado de uma universidade local (escolhido, segundo ele, por ser o único que permitia ao palestrante fumar enquanto palestrava), e tive o prazer de estar na plateia. Finda a palestra, apresentei-me e fomos, ambos acompanhados por grupos de alunos, beber uma cerveja. A dele sem álcool. Conversamos longas horas, e no papo pude apreciar mais da fascinante história de sua vida. Contou-nos causos de quando era muçulmano, e justificou sua adesão de então ao protestantismo de maneira tipicamente guenoniana: era, segundo ele, uma tradição religiosa mais conforme às suas origens, e ainda por cima era a religião de sua esposa.

Quando o saudoso Orlando Fedeli assentou contra Olavo sua metralhadora giratória, acusando-o de gnóstico, escrevi àquele que efetivamente o Olavo era (cito literalmente) “um gnóstico de quatro costados”, mas o papel importantíssimo que desempenhava no combate ao comunismo, inimigo comum nosso, somado ao fato de (então) não se meter em temas religiosos nem se afirmar católico, fazia com que atacá-lo fosse contraproducente.

Anos depois, em 2014, acidentei-me gravemente, ficando perto de oito meses internado, de início numa UTI. Durante este período, várias vezes Olavo telefonou e escreveu pressurosamente para meus parentes, colocando-se à disposição para ajudar no que pudesse. Minha irmã, jornalista e de esquerda, veio depois me dizer que a gentileza dele para com toda a minha família lhe chamou a atenção. Tendo saído do hospital, mas ainda em tratamento domiciliar e acamado, postei uma vez numa rede social que estava sem computador. No mesmo dia entrou em contato um amigo, braço-direito do Olavo no Brasil, pedindo-me meu endereço postal: seu mestre queria me presentear com um computador novinho em folha, e precisava saber onde mandar entregar. E o fez, pedindo apenas que não contasse a ninguém que o fizera. Não creio que eu seja caso único; sua generosidade certamente há de ter alcançado muitos outros. Coisa curiosa é apenas que, na mesmíssima ocasião, um casal de “influenciadores” olavetes me bloqueou nas redes sociais, atacando-me ferozmente por algum crime de lesa-majestade que eu teria cometido contra o mesmo Olavo de Carvalho. Enquanto o mestre me ajudava discreta e generosamente, os discípulos (que anos depois pediram desculpas públicas) me atacavam.

Mas voltemos ao que quero expor aqui; o excurso acima serviu apenas para mostrar que o Olavo que conheci foi certamente uma figura muito distinta da conhecida pelos que viram apenas o polemista ou o professor. Mais distinta ainda, é claro, das que o reduziram a “bolsonarista”, “astrólogo”, o que for.

Por mais fascinantes que sejam as contradições internas de um pensador, por mais chocantes ou deliciosos que sejam os momentos em que seus atos reafirmam ou contradizem seu pensar, eles não fazem mais que apontar para o fato de sua humanidade. Somos humanos, e por isso mesmo nos contradizemos em nossa intrincada complexidade

Creio que a principal característica do seu pensamento possa ser explicada pelo autodidatismo. Não que ele não tenha tido mestres, claro. Ao contrário, até: teve-os demais, ao participar do esoterismo iniciático dito tradicionalista. Contudo, salta aos olhos em seu pensamento a ausência daquela sistematicidade que o estudo acadêmico teria a função de prover. Ao contrário do que se tornou hoje a triste regra, o papel da universidade não é trocar tempo e dinheiro por canudos. Sua função primordial é apresentar sistematicamente ao estudante todas as linhas de pensamento que abordam a disciplina principal, sinalizando ao estudante os vários caminhos intelectuais mais profundos que pode percorrer. Numa graduação, o aluno deveria ser apresentado a todas as escolas e ler todos os livros basilares de cada uma delas, para poder escolher aonde dirigir os próprios estudos, sem deixar de saber o essencial de todas as direções que não escolheu.

Já o autodidata pula esta etapa. Sem ter sido formalmente apresentado a cada escola, ele escolhe uma e aprofunda-se nela, pulando depois para outra e mais outra. Nisso, a profundidade do seu conhecimento deste ou daquele autor certamente rivaliza com a de especialistas nele. Ao mesmo tempo, todavia, coisas que deveriam ser elementares, conhecimentos básicos de outras escolas, livros essenciais passam todos em brancas nuvens. A possibilidade de confusão – tomar um termo fora de seu contexto por não o conhecer, por exemplo – está sempre presente.

A base do pensamento do falecido intelectual, assim, não pode ser encontrada dentro das paredes seculares das instituições formais de ensino, sim no secretismo profundo do misticismo europeu. No começo do século passado, na mesma época em que a imbecilidade fascista e comunista ameaçava matar a imaginação solar, a direita europeia abrigou um grupo de pensadores do oculto, cujas sementes vieram a dar fruto apenas agora. Eles se diziam “tradicionalistas”, por acreditar na presença secreta de uma suposta verdade universal, uma “tradição” primeva parcialmente refletida por todas as religiões. Tal movimento, em todas as suas vertentes, de René Guénon a Julius Évora, passando por vários outros nomes, era iniciático, esotérico e profundamente gnóstico. Seu elitismo e intelectualismo o colocavam dentro de uma direita tradicional que flertava com o fascismo, mas não tinha como ser encaixada em suas supersimplificações popularescas. Curiosamente, algumas das figuras políticas de segundo plano (ou mesmo das sombras) deste novo milênio beberam profundamente de tais fontes. De Steve Bannon (o homem que elegeu Trump) a Aleksandr Dugin (tido, com Vladislav Surkov, por ideólogo da corte de Putin; houve um debate entre ele e Olavo), passando pelo próprio Olavo em sua circunstância de conselheiro informal de Bolsonaro, iniciados no tradicionalismo gnóstico tiveram importante ação política nas últimas décadas.

É nessas raízes, em que o ocultismo se mistura à supervalorização do simbólico e a inversão crowleiana da moralidade busca ativamente o poder de um caos primevo, que encontramos a base do pensamento do Olavo. Tal como Guénon, Olavo foi buscar no misticismo iniciático do islamismo sufi uma suposta sabedoria oculta, entrevista na astrologia e supostamente semirrefletida em toda grande tradição religiosa. Quem com ele conviveu nessa época o via como uma espécie de Gurdjeff em botão, alguém que se preparava para a posição de guru. E, realmente, para muita gente ele acabou por sê-lo, ainda que de uma maneira bem diferente. A base do filosofar e da ação política de Olavo – diferentemente do que seria o caso num filósofo ou cientista político acadêmico – vem dessa visão lunar de mundo, profundamente elitista e pouco disposta a expor-se plenamente à luz. Mesmo sua pedagogia, errática e dispersa, pode ter suas origens traçadas à sagração gnóstica do caos. Ele carregou consigo tal base, mesmo ao abandonar o sufismo e dedicar-se a estudos e ação política “em campo aberto”, como quem nasce nalgum lugar carrega sempre o sotaque com que aprendeu a falar.

Um exemplo claro disto pode ser percebido na sua solução da aporia da individuação em Aristóteles. Para resumir muito, a metafísica aristotélica pára logo antes de um ponto crucial. Ela nos dá a diferença entre o homem e o macaco, mas não entre dois homens distintos. A solução tomista é que a substância (resposta à pergunta “o que é isso”, a individualidade) é distinta da natureza (humana, canina etc.) por ser a atualização de uma dada natureza pela perfeição do ato de ser. Em outras palavras, a criatura humana individual é uma individuação da natureza humana por ser, por estar aqui.

Já Olavo procurou a solução da aporia na filosofia moderna, cartesiana, e assim a “resolveu” para o homem, mas não para qualquer outro ente individual, ao usar o “cogito” cartesiano como atualizador da individuação. “Penso, logo existo”, e assim o homem – para Olavo – é o homem que pensa, e é homem quem pensa e só quem pensa. É-se homem por pensar. Mais ainda, por pensar por conta própria. Quem “não pensa”, quem vai sendo levado pela vida sem a examinar, destarte, não é plenamente individuado como ser humano. Isto leva a corolários tétricos, como a possibilidade da negação da humanidade da pessoa incapaz de grandes voos intelectuais (como o deficiente mental ou mesmo a pessoa em coma), mas não creio que o próprio Olavo aceitasse tais corolários. Ao contrário, até: para ele a sua ação de formador intelectual era um meio de “fazer homens”; o que lhe atraía na sua “solução” da aporia da individuação era o lado positivo, o incentivo a ser por pensar, não o negativo. Daí se explica ao mesmo tempo o profundo elitismo de Olavo (para quem ninguém conseguiria realmente debater com ele por não conhecer perfeitamente seu pensamento – logo, seu ser) e o “democratismo” do seu trabalho de popularizador, de pensador e formador público. Daí se explica o orgulho que sentia do sucesso dos empreendimentos intelectuais de seus alunos (por ele “iniciados” não numa gnose do ocultismo, mas numa humanidade supostamente tornada real pela intelecção) e a desumanização e infantilização de quem o “abandonava” ou contradizia, com apelidinhos de quinta série e ataques baixos de todo tipo.

“Penso, logo existo”, e assim o homem – para Olavo – é o homem que pensa, e é homem quem pensa e só quem pensa. É-se homem por pensar. Mais ainda, por pensar por conta própria

E o que seriam os homens individuados? E o quê (mais que “quem”) seriam seus adversários? Reconhecia-se um discípulo do Olavo pela arrogância intelectual e pela agressividade extrema em relação não apenas à esquerda, mas também às instituições de ensino formais, especialmente a USP. Sim, bem sei que são uma porcaria; quem tenha tido a paciência de ler os artigos que venho publicando sobre o estado da educação no Brasil sabe o que penso. O caso, todavia, é que a formação olaviana, a sua “fazeção de homens” individuados, era em grande medida operada pela negação, não pela afirmação. Pela experiência, não pelo conteúdo programático. Os rapazes (e algumas moças) que foram a fundo na sua formação ganharam, mais que qualquer outra coisa, uma certeza de superioridade cujas origens são claramente traçáveis à gnose iniciática. Contudo, com Olavo não se tratava mais de “saber” – como na gnose tradicionalista que felizmente abandonou – coisas míticas e fantasiosas sobre a Atlântida, o Egito Antigo ou o hinduísmo de Guénon. Tais fantasias foram substituídas por autores quase desconhecidos, mas fortemente prezados pelo mestre; pela certeza da superioridade intelectual da própria formação em relação à acadêmica; pelo desprezo total dos professores universitários; pela certeza preternatural de que todo discurso de esquerda é uma imbecilidade rematada; e, enfim, pela arrogância decorrente de tudo isso. Fazer pensar seria criar, individuar homens. E tal pensamento, por definição, não poderia ser o hegemônico. Daí, talvez, a ênfase maior na experiência e na atitude, que realmente causou em muitos uma transformação completa. O olavismo foi, antes que tudo o mais, uma experiência iniciática, visando a transformação de meros componentes de uma massa amorfa de humanidade em entes individuados e individuais, em Homens de verdade, prontos em tese para encarar a mentira sistemática supostamente dominante em todas as instituições. A imbecilidade coletiva reinante. A idiotia de que só saía quem lera de cabo a rabo O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota.

Qual era, então, o conteúdo de seu ensino? Curiosamente, ele era pouco e na verdade secundário. Não se tratava de passar a saber algo, nem mesmo de saber o tal Mínimo, mas de aprender a pensar “fora da caixinha”, e assim tornar-se Homem. Para isso, o conteúdo era secundário e a experiência, primordial. E eram muitas as experiências; da escrita do próprio necrológio, o primeiro exercício, a modos estranhos de ler este ou aquele autor quase desconhecido. O orgulho de pertencer a uma elite intelectual, de participar no resgate da alta cultura, tudo isso serviu não para o aprendizado de um dado conteúdo, mas para aprender a ser, ou mesmo passar a ser. A ser homem. A ser um ser que pensa, logo um ser humano, logo um indivíduo.

Tais exercícios, tal metodologia, causaram em muitos enorme transformação. É comum quem diga que foi Olavo que transformou a sua vida. Não há quem diga, por outro lado, que tenha sido o conteúdo do ensino do Olavo, ou mesmo alguma tese dele, que o tenha feito. Afinal, seu método era uma iniciação caótica e errática que, mais que qualquer outra coisa, servia para criar em seus alunos uma segurança intelectual maior até que a que lhes seria de direito. Rapazotes e moças perceberam-se em suas mãos capazes de intelecção, fugindo pela primeira vez das trevas do não ensino que assola o país, de que muito já falei e que muito já lamentei. Muito mais que transmitir ou popularizar os autores raros que colocava em pedestais, o ensino olaviano visava fazer homens pensantes e orgulhosos de pensar. Daí a transformação que efetuou em muitos, daí o impulso à transformação e à conversão que fez tanto bem a tantos, mas que nele pouco parece ter transformado em termos pessoais.

Afinal, ao que tudo indica, ele finalmente recebeu a graça da conversão numa etapa mais tardia da vida – pelo que podemos agradecer ao padre Paulo Ricardo –, e sua conversão formal levou muitos a segui-lo nesse bom caminho. Dataria daí, talvez, o abandono final formal da gnose guenoniana que já trocara por outro tipo de interesses. Esta, contudo, deixou marcas, mesmo por ter sido ela a plasmar o seu pensamento. Não existe conversão instantânea, e a aceitação formal da Igreja não transforma ninguém em santo. Menos ainda alguém que – por ter sido criado no negro leite que jorra das tetas da gnose – teve no caos um sucedâneo de sistematização do pensar e do agir. Mesmo assim, quero crer que tenha sido uma real conversão, e muito me alegra que não tenha falecido sem os sacramentos. Não me interessam, porém, e creio não interessem a ninguém, seus pecados e pecadilhos, muito menos a esta altura do campeonato. Mas podemos traçar àquelas mesmas bases, àquela formação iniciática inicial, a sua ênfase nos sacramentos da iniciação cristã como forma de iniciação sagrada, como maneira de formar iniciados. A divisão entre iniciado e não iniciado, crucial no pensamento gnóstico, tinha ainda no pensamento olaviano uma importância tremenda, tão tremenda que chegava a sobrepujar a do que deveria ser o núcleo do sintagma em questão, o mistério sacramental da Igreja. Daí, portanto, a facilidade com que – ignorando por completo a eclesiologia e seus corolários, inclusive canônicos – Olavo falava cobras e lagartos de autoridades eclesiais, sem poupar sequer o papa. Afinal, se São Pedro foi chamado a ser pescador de homens, seria ainda mais excelso o ofício do fazedor de homens!

Creio que a ação de “fazedor de homens”, visando a criação de uma suposta elite cultural que pudesse reverter a dominação da sociedade pelos “imbecis” e “idiotas” dos títulos de seus livros, é também o que explica a atuação política de Olavo. Quando da eleição presidencial ele apoiou a candidatura de Bolsonaro e pôde mesmo aconselhá-lo em algumas ocasiões, indicar ministros e outros sinais de favor. Mas nunca deixou ele de repetir o que sabiamente dissera e continuava dizendo: de nada adianta ter a Presidência sem ter quadros, sem ter o domínio das instituições. Os homens por ele individuados seriam tais quadros, mas ainda não os havia em quantidade bastante para garantir o que fosse.

Mais ainda: parece-me que ele adotou outra tática em seus últimos anos, exatamente por perceber que, a despeito de todos os seus esforços formativos (e individuantes...), o Brasil está ainda longe de ter uma elite intelectual capaz de ocupar os espaços necessários para alguma recuperação da sociedade. Seu discurso foi-se tornando cada vez mais iconoclasta e chocante, suas posições cada vez mais distantes das aceitáveis no discurso político atual. Creio que tenha sido, de uma certa forma, um heroico sacrifício com o objetivo de deslocar à direita a Janela de Overton. Ao forçar – pela sua importância e influência – a cogitação de posições de extrema-direita, ele abria espaço para a discussão de posições muito mais moderadas, mas que antes estavam distantes demais do politicamente correto para serem cogitadas. Ele sabia que com isso não apenas perdia influência como se expunha à chacota (“além de astrólogo é terraplanista!”, uivou a esquerda), mas – consciente de que a bolsopresidência se encaminha para o fim, com grande chance de se tornar um breve interregno na ascensão da extrema-esquerda – ele quis abrir espaço para quem mais se opusesse ao discurso esquerdista cuja hegemonia ele quebrara.

Olavo nunca deixou de repetir o que sabiamente dissera e continuava dizendo: de nada adianta ter a Presidência sem ter quadros, sem ter o domínio das instituições. Os homens por ele individuados seriam tais quadros, mas ainda não os havia em quantidade bastante para garantir o que fosse

Inclusive – e é aí que me coloco – a oposição anticomunista conservadora. Olavo nunca foi conservador; muito pelo contrário, era tremendamente revolucionário. Tal é o paradoxo da gnose tradicionalista, aliás: é uma potência revolucionária que diz agir em prol de uma suposta tradição tão oculta que apenas uma pequena elite pode percebê-la. Formado nessa escola, isto era para Olavo como que segunda (ou primeira!) natureza. Mesmo tendo abandonado formalmente a busca da tal verdade oculta, mesmo tendo voltado aos sacramentos, a posição em que acabava por se colocar confortavelmente era a de guru, de mestre iniciático. Mesmo sendo composta de conhecimento aberto a todos, mesmo agindo nos meandros labirinticamente abertos da ação pública e da formação do imaginário, a sua ação era completamente revolucionária. As posições conservadoras pareciam-lhe até mesmo vagamente ridículas. A ênfase conservadora na manutenção do que é bom na sociedade parecia-lhe demasiadamente modesta e conformista.

Contudo, especialmente de 2013 para cá, a onipresença de Olavo (ou, mais ainda, da persona olaviana exposta no refrão “Olavo tem razão”) em meios anticomunistas acabou facilitando à esquerda pintar de “olavete” quem quer que estivesse à direita de FHC. Com seu falecimento, a sombra que jogava sobre toda modalidade de anticomunismo pode finalmente desaparecer. Sua ausência do palco público torna possível ser anticomunista sem ser olavete, mesmo aos olhos da esquerda. E há muito anticomunismo no país, felizmente. Desde o anticomunismo católico (que por sua vez abrange enorme gama de posições, da TFP ao Opus Dei, passando pelos Dons Quixotes solitários como o que batuca este texto) até o liberalismo, do anticomunismo pragmático e apolítico dos que viram as más obras do PT e criaram alergia à esquerda ao teocratismo dos ditos evangélicos, o que não falta é oposição não olavete ao comunismo. Seu sacrifício para escancarar à direita a Janela de Overton em seus últimos anos possibilitou o aparecimento e crescimento de todas estas posições na prática política brasileira.

Seus discípulos e seguidores, os homens que “individuou” e “fez”, dificilmente se manterão unidos. Até mesmo porque a forma errática e não sistemática de pensar e ensinar de seu mestre teve por efeito colateral uma visão rasa de mundo por parte de muitos de seus alunos. Creio que o caso do casal que me “excomungou” enquanto o mestre deles me ajudava é um excelente exemplo. Muitos se apropriaram do mais acidental de sua ação – dos palavrões, apelidinhos, agressividade e iconoclastia – sem conseguir apreender uma razão mais profunda para tudo aquilo. Outros, ainda, mergulharam nas trevas esotéricas de onde Olavo saíra. Muitos passaram a pensar de modo diferente; os rompimentos públicos deles com Olavo, de uma certa maneira, já foram uma forma de libertação e de aumento de opções à direita.

Com o falecimento de Olavo, a sombra que jogava sobre toda modalidade de anticomunismo pode finalmente desaparecer. Sua ausência do palco público torna possível ser anticomunista sem ser olavete, mesmo aos olhos da esquerda. E há muito anticomunismo no país, felizmente

Esta diversidade de formas do anticomunismo brasileiro pós-Olavo, de uma certa maneira, é o que garante a derrota final da esquerda. O desmanche das instituições que o STF vem chefiando é consequência do desespero da esquerda ao perceber que pode até voltar ao governo, mas dificilmente chegará a conquistar o poder. O povo acordou, e os livros de História mostrarão a importância do trabalho de Olavo, que jamais cessou de repetir que o comunismo continuava vivo e atuante, continuava perigoso, quando a queda do Muro de Berlim nos deixara a todos num estado de complacência que nos impedia de ver o tamanho do perigo. É esse desespero da esquerda que literalmente matou Olavo de Carvalho, aliás. A fúria antianticomunista do ministro Alexandre de Moraes já o levou a atos tirânicos de toda natureza, no que Marcos Paulo Fernandes de Araújo brilhantemente batizou de neoconstitucio-niilismo. Pois foi a fúria de rato encurralado do nefando ministro que fez com que Olavo tivesse de abandonar o tratamento médico na própria pátria e voltar ao exílio americano, onde o mesmo tratamento não estava ao seu alcance. O ilustre cadáver está na porta do torpe, medíocre e tacanho Alexandre de Moraes.

Olavo foi uma dessas figuras únicas, lendárias e extravagantes, que não têm como ser encaixadas em potinhos e classificações. Seu percurso o levou do inferno gnóstico aos sacramentos que felizmente recebeu antes de morrer. Foi, como tudo com ele, um percurso único. Um percurso caótico e errático enquanto, ao mesmo tempo, iniciático. Um percurso em que deixou pelas margens vítimas e amores, viúvos e viúvas, discípulos apaixonados e ex-discípulos rancorosos. Não poderia ser de outra forma; não estamos falando aqui de uma figurinha burguesa e comedida, de um burocrata ou acadêmico. Ele foi exagerado em pensamentos e palavras, atos e omissões, e não deixou de marcar – para o bem ou para o mal – quem com ele esteve, física ou intelectualmente. E, claro, marcou também a história deste país. Ao falecer, passa o bastão a muitos; não apenas aos seus discípulos perseverantes, mas também àquela imensidão de anticomunismos e anticomunistas que, tendo ou não brigado com ele, pode agora inserir sua ação e discurso no espaço gigantesco que ele soube abrir na hegemonia da extrema-esquerda que sufocava o país.

Olavo tinha suas razões.

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