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Sempre foi chavão dizer que o Brasil é “um país de contrastes”. Estes, todavia, costumavam ser primordialmente os contrastes econômico-sociais de uma sociedade ao mesmo tempo muito diferente das puramente modernas do Primeiro Mundo e das puramente tradicionais do resto do Terceiro. Tínhamos uma classe média que, na verdade, era mais aristocracia que “classe média” no sentido das burguesias modernas do Primeiro Mundo, e a seu serviço uma maioria de população de classe baixa. Favelas de um lado e mansões do outro, mas com uma crosta de modernidade superficial que a Índia, por exemplo, não tinha.
Hoje, contudo, ao menos dentro da tal classe média mais globalizada, os contrastes são majoritariamente políticos, em grande medida por influência americana. A esquerda e a direita brasileira, tal como as americanas, não se bicam; amizades se romperam e famílias se dividiram por razões políticas. Da mesma forma, seguindo nisto os processos em curso no Primeiro Mundo, passamos a ter uma “narrativa” da elite, repetida pela mídia e propagada como única na academia, que pouco tem a ver com a realidade vivida pela população.
Muito maior, no entanto, é o abismo que se criou entre a anomia dominante nas megalópoles e a vida no vasto interior do Brasil. Quem vive imerso nas multidões, quem circula predominantemente por ruas tomadas por engarrafamentos de carros fechados – verdadeiros casulos, isolados de tudo o que os cerca –, não tem noção da diferença entre a sua vida e a vida que levam os interioranos. Na mão oposta, quem não vive nas megalópoles costuma ter delas uma visão em que se misturam e alternam as maravilhas das telenovelas e os horrores do noticiário, sem se dar conta de que ambos apresentam o que mais lhes trouxer comerciais, não o que é realmente vivido nas capitais. São mundos à parte.
Quem vive imerso nas multidões, quem circula predominantemente por ruas tomadas por engarrafamentos de carros fechados, não tem noção da diferença entre a sua vida e a vida que levam os interioranos
Temos dois modos de vida diferentes o bastante para que antropólogos pudessem declarar tratar-se de culturas (quando não de civilizações) diferentes. Numa vive-se em grande medida em bolhas, sendo perfeitamente possível jamais trocar mais que umas poucas palavras de cortesia com quem tenha interesses diversos ou pense diferente. Isto, aliás, apenas agravou-se com a recente divisão política da sociedade; mesmo antes do surgimento da nova direita (que não é um ressurgimento da antiga direita, vejam bem os senhores) as reuniões familiares eram frequentemente a única ocasião em que habitantes de bolhas separadas reuniam-se como comensais. Afinal, numa megalópole encontra-se de tudo, e o que Drummond chamou de “privilégio do anonimato” que elas proporcionam permite que cada um deslize por um trilho sob medida, encontrando dentre aqueles tantos milhões a sua própria turminha.
Já no interior a coisa não é bem assim. Num universo de pessoas tão mais reduzido, o que seria numa megalópole diferença suficiente para isolamento em bolhas distintas é no mais das vezes forçosamente ignorado. O músico apaixonado por um estilo vê-se formando bandas com fanáticos de outros estilos, por exemplo, aprendendo a ceder no acidental e assim ganhar uma margem de rebolado que seria impensável nos meios estilisticamente puristas que frequentaria caso vivesse numa grande capital.
Hillary Clinton famosamente afirmou que “é necessária uma cidadezinha” para a criação dos filhos, tentando vender o peixe tresandante de seu coletivismo político. Queria ela, como soem querer os coletivistas modernos, eliminar toda diferença cultural e implantar um discurso único, um gosto único, um modo de vida único. Nem mesmo seu fã mais ardoroso afirmaria ter a ambiciosa senhora qualquer margem de rebolado, afinal. O que ela apresentava como “cidadezinha” é o oposto, em suma, do que acontece de fato numa cidadezinha brasileira. Seu padrão de cidadezinha corresponde às do Nordeste americano, de onde veio, com origens puritanas e rebolado zero. São cidadezinhas como Salém, onde se queimavam supostas bruxas, enquanto nas nossas Chica da Silva tornava-se grande senhora.
Mas vale a pena para os pais de pimpolhos escapar das megalópoles, tomando inalterada a frase da ex-primeira-dama americana e aplicando-a a nossas “cidadezinhas”. Na megalópole, a escolha da escola dos filhos restringe-se em grande medida a encerrá-los no niilismo das elites atuais numa escola particular ou no naturalismo bruto da cultura do funk numa escola pública. Já no interior, na famosa cidadezinha, nunca se está nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Do mesmo modo, a liberdade de movimento de que dispunham as crianças tão pouco tempo atrás é hoje impensável numa megalópole. O simples fato de que é a regra que cada criança porte um telefone celular já a torna vítima potencial de assaltantes. No interior, entretanto, persiste a socialização espontânea tão bem retratada nas tirinhas de Maurício de Sousa, ambientadas numa São Paulo que não existe mais.
A razão de tal diferença é bastante simples, no fundo: mudaram as capitais, mas não o interior. Ainda que os efeitos deletérios da televisão tenham se feito sentir – a taxa de divórcios, bem como de outros sinais de dissolução social, acompanhou pari passu a implantação da televisão Brasil afora –, ainda que o pior do Brasil e do mundo cheguem em tempo real pelos celulares, simplesmente não há massa crítica para que se opere no interior a perda de ordem social de que sofrem as megalópoles. A ordem social nas megalópoles, pelo simples fato de as pessoas não se conhecerem, dependia da ação do Estado em medida menor que no Primeiro Mundo, mas mesmo assim muito maior que no interior. Com a decadência da modernidade, percebeu-se ameaçada no mundo inteiro esta ordem exógena, imposta de cima para baixo pelas instituições modernas. A resposta inequívoca, cá como no Primeiro Mundo, foi redobrar a força com que se tenta implantar tal pseudo-ordem. Na Austrália e, em menor medida, na Inglaterra, EUA e Europa Ocidental, os direitos pessoais dos cidadãos foram restringidos mais e mais, chegando nestes últimos dois anos, com o pretexto da pandemia, a um ponto de controle estatal que seria imediatamente condenado como ditatorial poucas gerações atrás.
Já aqui no Brasil simplesmente não há base cultural para tal. Como disse o gari da crônica de Sérgio Porto, “se o comunismo chegar aqui a gente avacalha com ele”; o mesmo vale, claro, para qualquer outra forma de totalitarismo. Nem o mais ideológico dos funcionários públicos brasileiros realmente se percebe braço impessoal do Estado. Nossa legislação é delirante pela simples razão de ser muito mais para inglês ver que para efetivamente aplicar. Nossos partidos políticos são artificiais ao ponto de terem estatutos copiados-e-colados uns dos outros (afinal, estatuto é pra inglês ver...). E por aí vai.
A coisa mais importante para uma criança não é a marca das roupas e brinquedos, mas a ordem. Toda criança está tentando entender a ordem de todas as coisas, para que possa saber como se comportar no mundo
O resultado é que o mesmo mecanismo que gerou ditaduras no Primeiro Mundo gerou aqui, nas áreas em que a dependência da superficialíssima pseudo-ordem moderna era maior, a mais pura anomia. Hoje a maior parte dos habitantes do Rio de Janeiro vive em áreas cuja autoridade de facto não é o Estado, mas ONGs armadas de milicianos e/ou traficantes. As ordenações da modernidade só são efetivamente implementadas em coisas pequenas, pequeníssimas, como as blitze com que nossas polícias apoquentam quem tenha bebido uma cerveja ao jantar. Os que perpetram a maior parte dos crimes bem mais sérios, como o homicídio, por sua vez, raramente recebem qualquer punição; mesmo nas raras e honrosas ocasiões em que há uma investigação e ela comprova a autoria do fato, o garantismo penal impede que o crime seja punido com a severidade que merece.
Já no interior, como sempre, a coisa é mais branda. Tem-se tão pouca confiança nas instituições de Estado quanto nas megalópoles, mas, como a dependência delas é muito menor, a anomia não se instala. Tem-se, em suma, alguma ordem social. E é esta ordem social remanescente que proporciona não apenas a base para a recuperação da sociedade findo este período de transição entre a Era Moderna e o que vier depois, mas as condições necessárias para criar filhos.
Afinal, a coisa mais importante para uma criança não é a marca das roupas e brinquedos, mas a ordem. Toda criança está tentando entender a ordem de todas as coisas, para que possa saber como se comportar no mundo. É isto, aliás, que faz com que gostem tanto de assistir repetidamente ao mesmo filme ou desenho animado: a repetição os acalma e reafirma a existência de uma ordem. Até mesmo os erros gramaticais dos petizes pimpões são no sentido de ordenar o que é desordenado, dizendo “fazeu” em vez de “fez”. A irregularidade do verbo “fazer” os espanta, e lhes soa errada por desordenada. Assim, mais vale aplicar a este verbo a mesma ordem, a mesma regra, a mesma conjugação, de “comer” ou “beber”: “Comeu?” “Comi”; “Bebeu?” “Bebi”; “Fazeu?”...
A única solução que vejo para pais e futuros pais é criar coragem e partir da anomia conhecida para a ordem desconhecida, criando novas raízes em terra mais fértil
Isto faz com que a criação de filhos numa sociedade anômica (logo desordenada no âmago e no acidental) traga consequências duradouras no longo prazo. A ordem de que a criança necessita não está ali, e só há alguma ordem evidente dentro de bolhas que não impedem a criança de perceber a desordem do que está fora delas. O lar pode ser harmonioso (por ordenado), mas os urros do vizinho quando sua companheira o ataca com água fervendo depois que ele a espancou mostram que isto não é de modo algum a regra. E é ordem, é regra, que a criança busca. A maior parte das regras é arbitrária, ou ao menos parece ser; daí a “fase dos porquês”. Por que é que o pestinha não pode aplicar ventosas no rosto? Porque ficará marcado. Por que é que ele ficará marcado? Porque a pressão negativa vai romper capilares. Por que é que os capilares são assim facilmente rompidos?... E por aí vai.
A ordem deve existir para que a criança a descubra, tanto dentro quanto fora de casa. Um entorno caótico e perigoso, como o das megalópoles de hoje, é o pior lugar para criar filhos. Seria menos danoso a eles serem criados na selva; onças são perigosas, mas balas perdidas juntam ao perigo a imprevisibilidade, o caos. Sem ordem, ou com várias micro-ordens (do lar, da casa dos vizinhos violentos, da rua, da escola...) não só conflitantes, mas também em constante interação imprevisível, a criança não tem como formar a mente para poder lidar mais tarde com até mesmo aquele ambiente social em que foi criada. Para isso seria necessário que ela percebesse uma ordem geral subjacente, na qual as micro-ordens subsumam-se.
No entanto, não há mais ordem geral que não uma versão da lei da selva com fantasia barata de modernidade nas megalópoles brasileiras. Até mesmo as ordenações mais básicas (masculino e feminino, bom e mau, racional ou irracional...) são negadas na prática em alguns lugares e na teoria em outros. É receita para a criação de uma geração marcada pelo niilismo e pela anomia, uma geração incapaz de buscar, ou mesmo perceber a possibilidade de tentar viver, uma vida ordenada. Sem a internalização de uma ordem na infância, que ordem de vida se pode ter ou ao menos buscar ao adentrar o mundo como jovem adulto? Foram sociedades caóticas e anômicas, como a República de Weimar no entreguerras, que geraram juventudes estupidificadas e prontas para servir de fantoche a psicopatas. As milícias nazistas que puseram Hitler no poder eram compostas de jovens adultos, cheios de força e fúria, mas criados em meio ao caos e por isto mesmo incapazes de ordenar a própria vida.
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Filhos são criados para o mundo e para o futuro. O papel dos pais é educá-los, coibindo-lhes os maus hábitos e implantando os bons. Assim internaliza-se neles uma ordem do lar, que deve estar entremeada na ordem social maior para que das crianças, com uma rapidez que aos pais sempre impressiona, surjam jovens adultos. E estes precisam dessa internalização da ordem para que possam operar a contento na sociedade como pessoas produtivas. Numa sociedade cujo futuro é ainda mais incerto que é presente a anomia, como fazê-lo? A única opção é escolher uma bolha e nela manter os filhos, efetivamente criando-os para ela, não para uma sociedade mais ampla. Recentemente fez sucesso um livro propondo exatamente isto, que o autor enganosamente apelidou de “solução beneditina”. Mas isso não funciona, nem poderia jamais funcionar. É líquido e certo que nalgum momento os pimpolhos partirão da bendita bolha, e o que será deles? Ao descobrir todo um mundo lá fora, mormente num lugar em que tantas outras bolhas coexistem, é enorme a chance de que se enfiem em algo para o quê jamais foram preparados, que sejam enganados pelo canto de sereia das bolhas autodestrutivas das drogas, das parafilias, quiçá do crime. Mau negócio.
A única solução que vejo para pais e futuros pais é criar coragem e partir da anomia conhecida para a ordem desconhecida, criando novas raízes em terra mais fértil; é o que não falta, felizmente, no vasto interior do Brasil.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos