A legislação criminal – tanto a penal quanto a processual penal, além das diversas outras leis que afetam o labor do combate ao crime – é francamente absurda. Todo profissional de segurança pública, em algum momento, já suspirou pensando “como seria bom se…”. E são tantos os “ses”. A proposta de reforma entregue pelo ministro da Justiça é evidentemente fruto deste pensamento, mas desta feita da parte de um juiz. Nota-se que ele colocou nela a reforma de tudo o que, pela sua visão, é absurdo demais, prejudica demais. Com razão; na falta de uma reforma completa, de um reinício do zero da legislação, o que quer que se faça é remendo sobreposto a remendo, e só o que se pode almejar com alguma chance de alcançar é a substituição do grotesco, do absurdo, da lei criminosa, por um mal pouca coisa menor. E é isto o que ele tenta fazer com sua proposta. Dá até dó pensar no estrago que provavelmente nela farão, ou ao menos tentarão fazer, os nossos congressistas. Espero que os recém-chegados, que vieram trazer uma aragem fresca ao pântano lodoso que é o Congresso, trabalhem no sentido de preservar ao máximo o texto de Moro.
Na sua proposta, ele cola um remendo aqui, outro ali, de modo a facilitar que os juízes de primeira e, principalmente, de segunda instância consigam fazer um módico de justiça. É um bom começo, diria eu, talvez mesmo um excelente começo, que trará – se tudo der certo – melhoras indiretas em muitas coisas graves. Muitas arbitrariedades infelizmente cometidas por integrantes das forças de segurança, por exemplo, decorrem do fato de ser pública e notória a incapacidade do nosso sistema penal de fazer alguma justiça. Como diz o vulgo, “cadeia no Brasil é para os três pês: preto, pobre e prostituta”. Ao mesmo tempo, os criminosos ricos, com meios à disposição para pagar advogados bons, vão protelando o trânsito em julgado (logo, no mais das vezes, a punição efetiva) até a prescrição do crime. Pois é disso que trata Moro, o herói que começou o processo que levou à cana fechada o maior ladrão da história deste país, o rico e poderoso Lula.
Na sua proposta, entre muitíssimas outras medidas, Moro procura garantir a prisão após o julgamento em segunda instância (o que continua sendo uma jabuticaba, na medida em que a regra mundo afora é após o julgamento em primeira instância, ou mesmo após a primeira audiência judicial). A prescrição passa a ser interrompida por medidas protelatórias, que por sua vez são fortemente restritas. É o sonho do juiz de primeira instância, que normalmente manda para cima a condenação de um criminoso feroz apenas para vê-la passear de tribunal em tribunal até que se perca de vista a justiça, que quando tarda é falha.
No que me parece evidentemente um aceno à situação dos agentes das forças policiais, ele acrescenta uma excludente de ilicitude ao famigerado “excesso culposo”, fazendo com que o juiz possa reduzir ou deixar de aplicar a pena quando “o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. E o que é o “excesso”? É uma barbaridade legal pela qual um juiz, confortavelmente sentado em sua sala refrigerada, delibera calmamente sobre se, no calor do embate, a pessoa que age em legítima defesa própria ou de terceiros teria ou não dado tiros demais. Ora, se alguém dispara contra nós, somos poucos os que temos calma bastante para contar os tiros que damos de volta ou coisa semelhante. E é isso que acaba conduzindo até mesmo à prisão fechada bons policiais, que, agindo no estrito cumprimento do dever legal, dão quatro ou cinco tiros em um criminoso que atirava contra eles em vez de dar um só e pensar “está bom, chega”. Repito: poucas são as pessoas capazes de tamanho sangue-frio. Mas é fácil, no conforto de um tribunal, achar que o policial que trocava tiros em território dominado pela criminalidade “exagerou” ao disparar uns tiros a mais. É um bom adendo. Do mesmo modo, a inclusão com todas as letras da ação policial na defesa de terceiros, especialmente de reféns, no conceito de “legítima defesa” é uma mudança muito bem vinda. Melhor seria se isto não fosse restrito aos agentes policiais, no entanto. Afinal, evitar a morte ou o risco grave a um refém é uma ação de cavalheirismo que compete a todo cidadão e não deve ser penalizada. Assim como qualquer do povo pode prender em flagrante, deveria ser-lhe igualmente facultada a intervenção direta no caso de perigo a terceiros, de forma clara e objetiva, como na proposta de Moro ocorre no caso de agentes de segurança pública. Estes devem; os demais deveriam poder.
É muito bom, do mesmo modo, que se busque endurecer as penas de prisão por crimes violentos. O projeto, todavia, ainda não é suficiente, a meu ver. Mas já é um bom começo limitar um pouco que seja a profusão de “saidinhas” e a progressão de pena sem limites que, no Brasil, só não atingia quem matasse alguém na cadeia e assumisse o crime. A listagem à guisa de exemplo de organizações criminosas é um pouco estranha, mas pode funcionar. Lamento, contudo, que nela estejam incluídas, genericamente, “milícias”. Daqui a pouco pode até vir gente reclamando da Milícia da Imaculada. Além do mais, faz ou fez parte do projeto bolsonarista a legalização de milícias, no sentido de organizações de autodefesa compostas por cidadãos honestos para segurança de seus bairros, não de organizações criminosas. Aliás, ainda na triste confusão entre bandidos e mocinhos, é excelente que seja elevada a pena dos crimes cometidos por agentes da lei e assemelhados. Policial bandido é bandido ao quadrado.
É ainda boa coisa que as polícias possam receber objetos apreendidos de criminosos. Só é necessário que haja cuidado para que isso não leve a situações como as que vêm ocorrendo nos EUA, em que, visando ganho pecuniário para a instituição, são feitas apreensões francamente absurdas e moralmente indefensáveis. Cito, com exemplo, situação ocorrida ano passado naquele país, em que numa casa havia uma festa cuja cerveja era de produção caseira. Alertada, a polícia invadiu com uma tropa de assalto a casa e apreendeu a cerveja “ilegal”… além de todos os automóveis de todas as pessoas que estavam na festa, tenham ou não sequer bebido a cerveja ou sabido que ela não tinha registro legal. É um absurdo inominável, um verdadeiro roubo a mão armada efetuado pela organização policial. E este é um risco efetivo e real, para o qual a lei de Moro pode abrir as portas. Cuidado.
Do mesmo modo, os bancos de dados federais de material genético (DNA), rostos, digitais, perfis balísticos etc., são um velho sonho das polícias. Não os vejo, contudo, com bons olhos. A China comunista, além destes dados, vem registrando até mesmo o modo de andar das pessoas, que é alimentado em computadores e faz com que câmeras de vigilância ubíquas pelas grandes cidades possam reconhecer uma pessoa a mais de um quilômetro de distância. Parece um prodígio, e certamente há de facilitar tremendamente o trabalho das forças policiais. Só há um problema: com a nossa triste história política, quem há de garantir que esses bancos de dados não venham a ser usados em algum momento contra pessoas cujo único crime é fazer oposição a um governo ditatorial, como aliás ocorre na China neste exato momento? A meu ver, é perigoso demais construir esses bancos, é perigoso demais deixá-los à disposição das forças policiais (logo, em muitos casos, infelizmente, de quem tem um amigo na polícia ou dá um dinheirinho a um policial corrupto), é perigoso demais, em suma, que um governo incompetente e instável como o nosso tenha acesso a tantos dados. É melhor a polícia ter mais trabalho; é melhor mesmo que alguns criminosos não sejam alcançados pelos braços da lei que abrir as portas para que um cérebro maligno que controle ou tenha acesso a estes dados os use para punir inocentes.
Quanto à medida do “plea bargain”, ou solução negociada, vejo-a um pouco como sonho de juiz. Mas é também algo perigoso. Sendo bem usada, pode ser boa, mas no seu país de origem (os EUA) esta instituição, somada à subordinação das polícias à promotoria, leva a um viés de punição que abre espaço para negociações péssimas. Lá, por exemplo, é comum que um criminoso que tenha cometido um homicídio doloso sem que a polícia tenha elementos suficientes para garantir a sua condenação faça uma negociação e “confesse” um homicídio culposo, livrando-se assim da justa punição. Ao mesmo tempo, uma pessoa perfeitamente inocente, com medo de acabar sendo condenada num julgamento (por exemplo, por não dispor de bons advogados), frequentemente acaba “confessando” algo que não cometeu, mas que é menos grave que o crime de que está sendo injustamente acusada, para livrar-se do tribunal. Assim, os crimes maiores tendem a ser menos punidos e os menores, ou mesmo a inocência, tendem a ser punidos. É mau negócio, que dependerá, pela lei de Moro, em grande medida do arbítrio do juiz e do Ministério Público. Como, todavia, temos no Brasil instituições processuais ainda piores, esta pode acabar não tendo efeitos deletérios assim tão graves. É uma incógnita.
É excelente medida que o crime de resistência armada que leve à morte do policial seja punido com pena gravíssima. Hoje em dia, matar policial e matar mosca são quase a mesma coisa. Aliás, não duvido que matar mosca seja crime “ambiental” inafiançável, ao contrário de matar policiais. Só no Rio de Janeiro, mais de 100 policiais são mortos por ano. Igualmente, são boas as medidas para punir o “caixa dois” eleitoral, ainda que o problema neste caso seja muito mais básico que caixa dois. Enquanto houver Fundo Partidário e outras jabuticabas, a coisa continuará sórdida. A previsão expressa da videoconferência e a determinação legal das condições que devem ter as penitenciárias de segurança máxima (onde, aliás, o Lula deveria estar) são igualmente boas, assim como as restrições aos criminosos contumazes e integrantes de facções. A previsão legal de ação de policiais infiltrados em quadrilhas (“agentes encobertos”) também é boa, ainda que esteja sendo feita de maneira pontual e um tanto quanto confusa. O correto seria haver todo um código de comportamento e de regras para essa infiltração. A permissão de escuta ambiental sem autorização legal prévia também é uma boa medida, que transformará radicalmente o combate ao crime ao permitir empregar como prova gravações feitas por um dos interlocutores. Coisa muito boa, que facilitará tremendamente a persecução penal de corruptos e boquirrotos em geral. Aplaudo, igualmente, a previsão de proteção aos informantes. Já não era sem tempo. Finalmente, é ótimo que haja previsão legal para acordos e cooperação internacional no combate ao terrorismo, tráfico de drogas e outras mazelas que atravessam fronteiras.
Concluo dizendo que é um raio de luz em meio às trevas que haja, finalmente, pela primeira vez em muitos anos, uma proposta oriunda do Executivo com o fito de combater a criminalidade. Os desgovernos de esquerda que vieram transformando o Brasil neste país com cifras de mortos piores que as de muitas guerras, neste país em que é proibido tirar o celular do bolso em qualquer capital, em que o crime decididamente compensa e o policial é mais duramente punido que o criminoso, para confundir as coisas, costumavam falar de “violência”.
Ora, o problema do Brasil não é nem nunca foi a “violência”. O problema é a criminalidade. Criminosos não são punidos, a polícia é proibida de investigar, os juízes de prender, e por aí vai. É um escárnio à população e à própria noção de justiça que matricidas possam sair para passear no Dia das Mães. Mas este projeto combate a criminalidade, não uma suposta violência. É por isso que as esquerdas uivaram, bufaram e cuspiram enxofre por entre os dentes quando o leram, ou leram sobre ele. Foram unânimes os uivos de “isso vai aumentar o número de mortos pela polícia” e outras besteiras. Pois bem, que aumente. É melhor um confronto em que tombe o criminoso que um confronto no qual este se safe livre e o policial seja morto, ferido ou preso. O policial está do lado da sociedade; o criminoso é seu inimigo. E, como as medidas também buscam combater a corrupção e os crimes cometidos por policiais, a meu ver são no geral justas e benfazejas. Não são suficientes, nem seria possível resolver uma situação que vem de uma lei inadequada desde o princípio, feita para outra situação e subentendendo punições paralegais que hoje, felizmente, não são mais aceitas.
Trata-se, assim, de uma colcha de remendos podres à qual Moro propõe costurar alguns remendos novos, tampando os rasgos maiores por onde entram as gélidas baforadas da impunidade garantida. Não basta. Está longe de bastar. Tem seus problemas, alguns graves. Mas já é um passo adiante, já dá ao Brasil a possibilidade de vislumbrar um começo de saída da horrenda situação em que as esquerdas nos lançaram com sua fantasia de “violência”, em que dar uma palmada no bumbum do filho que brinca com fósforos seria tão ou mais grave que sequestrar, estuprar ou matar.
Como disse, temos aí algo que pode ser – ao contrário do péssimo decreto sobre armas – um bom começo. Agora é com o Congresso.