Pandemias sempre são momentos de grandes mudanças sociais. E, se já vivíamos – como na praga chinesa (não esta) – em “tempos interessantes”, agora é que a coisa se acelera. O equivalente a décadas de mudanças sociais ocorrerá nestas poucas semanas. O resultado, por certo, é absolutamente imprevisível, exatamente como a Idade Média seria inimaginável para Santo Agostinho, que escreveu enquanto o Império Romano se esboroava ao seu redor.
Assim sendo, creio não valer a pena tentar fazer exercícios de futurologia neste espaço. Mas podemos, por que não, tentar examinar com atenção o que temos, ou melhor, tínhamos, e expressar algo que na verdade não passa do que os anglófonos, com rara poesia, chamam de wishful thinking: um pensamento desejoso.
O primeiro elemento a sofrer com esta epidemia é o modelo absoluta e completamente insustentável que a economia e a sociedade mundializadas vinham seguindo. Trata-se de um modelo baseado no consumo, ou seja, na destruição (“consumo” e “destruição” costumavam ser sinônimos, aliás). A economia mundial mantinha-se em funcionamento a partir de dois fortes elementos, ambos insustentáveis. O primeiro deles era a produção, que ao longo das décadas foi passando para as nações periféricas (China, o “Império do Meio”, entre elas, e em lugar de destaque). Assim, uma equipe de engenheiros americanos projetava a cada ano um novo modelo de, digamos, telefone ou injeção eletrônica de automóvel, e terceirizava a sua fabricação para um país distante, normalmente oriental e comunista, para ser produzido em condições de semiescravidão dos operários.
O equivalente a décadas de mudanças sociais ocorrerá nestas poucas semanas
O resultado, ironicamente, é que apenas nos países dominados por um Partido Comunista encontravam-se ainda condições de trabalho semelhantes àquelas que levaram Marx, ao encontrá-las na Inglaterra da Revolução Industrial, a declarar que o proletariado fabril iria fatalmente levantar-se contra os donos dos meios de produção. Ao contrário dos tempos de Marx, todavia, a produção de até ontem à tardinha era complexa, complexíssima, demandando matérias-primas oriundas do mundo inteiro (incluindo o famoso nióbio bolsonárico) e gerando produtos completamente impossíveis de reciclar. Enquanto, por exemplo, uma garrafa pet pode, sem tanto esforço (ainda que também sem muito lucro), ser transformada em tecido ou mesmo outra garrafa, um telefone celular tem quantidades tão ínfimas de cada material, colocadas umas junto às outras de formas tão intrincadas, que reciclá-los de forma economicamente viável seria praticamente impossível. Isto, claro, não impede que haja – ou houvesse, quem sabe? – multidões de famintos respirando fumaças tóxicas para tentar extrair este ou aquele elemento de milhões de carcaças, em lugares como a Índia ou Bangladesh.
O mais importante a perceber nesta sociedade da destruição é que ela, como São Paulo, não pode parar. Para que seja viável a fabricação de telefones, por exemplo, é importante que eles não durem. Exatamente por isso a obsolescência planejada está embutida no modelo de negócios: os telefones são feitos, mais que para serem usados, para serem consumidos. Destruídos. Enterrados num lixão, junto com toneladas de outros materiais caríssimos e raros, após transcorrido um curtíssimo período. Quando se compara isto a, por exemplo, a produção industrial britânica do tempo de Marx, vemos o quanto o absurdo foi longe. Faziam-se, por exemplo, bombas d’água de ferro fundido, naquele tempo. Muitas delas continuam, mais de 100 anos depois, bombeando água aqui e ali, neste vasto interiorzão brasileiro. As que não estão mais em ação foram, em sua maioria, derretidas e transformadas integralmente em outra coisa.
Isto era possível porque a engenharia envolvida era bastante rudimentar em comparação com a atual, e o modelo industrial não dependia em nada da obsolescência planejada. Muito pelo contrário, aliás: os fabricantes orgulhavam-se de produzir bens praticamente eternos. De lá para cá, a produção foi-se acelerando a níveis frenéticos, e exatamente por isso dependendo cada vez mais do consumo-destruição do que foi produzido a duras penas. Algo durável seria contraproducente, antieconômico mesmo, pelos critérios atuais. Tudo hoje é descartável. Tudo hoje é feito tendo em vista nem o seu uso nem a sua reciclagem, mas a sua destruição, ou quase-destruição (na medida em que daqui a dezenas de milhares de anos nossos lixões ainda estarão minando subprodutos tóxicos das porcarias que neles atiramos). Arrancamos do solo os minérios e o petróleo, e literalmente os destruímos, apenas para manter em funcionamento um modelo econômico absoluta e completamente insustentável.
Nem entro na questão ambiental, ainda que as redes sociais estejam cheias de fotografias e filmes de golfinhos em Veneza e outros retornos do natural a ambientes temporariamente sem gente, logo sem tanta poluição. Trato aqui antes do modelo social e econômico. Digo também social, porque, justamente, não se trata de uma economia que funcione às margens da sociedade – nem seria possível tal coisa, na medida em que “economia” é simplesmente o grego para “leis da casa”; não é por acaso que “ecologia” e “economia” comecem com o mesmo radical “eco” (do grego “oikos”, “casa”). A ecologia é apenas o conhecimento, a “lógica” de nossa casa comum.
Com a produção empurrada para os países periféricos, as nações economicamente centrais (mormente os Estados Unidos e a Europa) transferiram a maior parte de sua economia para o dito setor “de serviços”. Em outras palavras, passaram a fazer girar dinheiro com trabalho que – embora seja trabalho real, no sentido de haver alguém que sua e se movimenta transformando elementos da realidade – nada produz. Outra prova do erro da teoria de preços de Marx, aliás, mas isso não vem ao caso. A economia de serviços, assim, assenta-se sobre a economia de consumo, de tal forma que poderíamos até dizer que se consomem serviços. A comida que grande parte dos americanos come, por exemplo, é processada industrialmente, apenas para “poupar” o seu consumidor de cozinhar em casa. É a divisão capitalista do trabalho levada ao paroxismo.
Em termos práticos, todavia, o que se tem é uma economia (a dos países ricos) baseada primordialmente em não produzir nada, mas empurrar as coisas de cá para lá e de lá para cá, sendo ainda ela mesma, geograficamente falando, o nexo de destruição de enorme quantidade de inutilidades ou parautilidades (como um celular do último modelo, que no fim das contas não é em nada mais útil que o do modelo imediatamente anterior).
A economia mundial mantinha-se em funcionamento a partir de dois fortes elementos, ambos insustentáveis: a produção e a obsolescência programada
A base financeira deste sistema, particularmente nos EUA, é, por sua vez, o dólar. Dólar este que não tem lastro algum que não a “boa fama” dos EUA (cada vez menor devido às loucuras dos últimos presidentes), mas que por sua vez, por ser a moeda de troca internacional, especialmente na compra de petróleo (para ser queimado: consumido, destruído!), acaba “lastreando”, à moda boi, todas as outras moedas. A moral da história é que na hora em que cair o dólar (o que já era uma questão de tempo) cairão quase todas as demais. Justamente preparando-se para esta eventualidade, muitos países estão já há alguns anos estocando ouro, para terem como lastrear suas moedas em caso de derretimento do sistema financeiro, além de criarem novos sistemas de câmbio paralelos aos controlados pelos EUA. Isto é bom, na medida em que o sistema fica um pouco menos apoiado no vazio.
Evidentemente, este processo de busca de diminuição da dependência do dólar vem sendo acelerado exponencialmente pelo abuso de sanções internacionais pelos EUA contra quem comercia com seus inimigos do momento. Cumpre lembrar que o modelo americano depende, do mesmo modo, da fabricação de armas e munições, feitas para serem usadas (consumidas, destruídas; armas não criam riqueza, apenas a destroem); sem uma boa guerra ou duas permanentemente acontecendo, metade dos EUA pararia. É também pertinente que elementos essenciais para a fabricação de armas nos EUA são produzidos apenas na China.
Contudo – e aqui chegamos à pandemia – os dois nexos principais do sistema, que já andavam se estranhando antes (os EUA e a China), estão agora a ver-se com as consequências deletérias da infernal pandemia. Isto, claro, enquanto trocam acusações: para os chineses foram os EUA que criaram a pandemia, e para os EUA os chineses. Na verdade, tanto faz como tanto fez. Se alguém foi imbecil o suficiente para soltar de propósito ou deixar escapar sem querer tal vírus ou se algum chinês comeu sopa de morcego ou escondidinho de pangolim contaminado, mesmo assim – especialmente devido a suas mutações – o problema de contágio continua existindo para todo o mundo. A origem primeira da pandemia virou questão acadêmica, uma dessas dúvidas à la traição de Capitu, a discutir por toda a eternidade sem jamais chegar a uma conclusão.
Mas o fato é que, por conta da prevenção do contágio, a derrocada dos EUA no fascismo parece estar ganhando força e velocidade. Trata-se de um fenômeno que já vinha acontecendo há algumas décadas, com as polícias recebendo e usando material militar do governo federal, o que por sua vez levou a um brutal aumento de coisas como invasões de domicílio pela SWAT porque o morador não pagou em dia a conta de luz, ou mortes de “suspeitos” com centenas de tiros só porque o sujeito piscou na hora errada.
E agora a ideia de uma quarentena forçada está cada vez mais se fazendo presente na mídia gringa. A questão será se o Estado conseguirá mais ou menos facilmente impor esta quarentena, dado o alto grau de individualismo de grande parcela da população americana. É relativamente fácil impô-la no nordeste ou sudoeste dos EUA, mas no Texas, por exemplo, é enorme a chance de os guardinhas acabarem trocando tiros com milhares de malucos armados que exigem exercer seu sacrossanto direito de ir rezar ou beber cerveja na praça.
E disso pode vir – reparem: pode vir, não necessariamente virá – um apressamento da inexorável dissolução dos EUA enquanto entidade política, que já estava sendo motivo de debates nos meios acadêmicos e jornalísticos. Afinal, o país está dividido em pelo menos quatro nações (ou culturas) diferentes, e elas não se dão umas com as outras, mesmo muitas vezes morando relativamente perto (os pretos do lado de lá da linha do trem, os brancos do lado de cá; os esquerdistas concentrando-se nas costas e os direitistas no interior, com os descendentes de latinoameríndios espalhados por todo o sul). Daí para uma balcanização, o pulo é pequeno.
Os meios de estímulo artificial da economia pelo Estado já foram praticamente exauridos antes mesmo da pandemia
Mas antes mesmo de uma balcanização que em outros momentos seria, pelo menos inicialmente, impedida pelas Forças Armadas – que têm interesse em manter o mega-Estado inteiro – pode ocorrer uma falência generalizada do setor de serviços, provocada justamente pela quarentena. Cabe lembrar que os trabalhadores americanos não têm direito trabalhista algum, o que torna facílimo demitir todo mundo num primeiro momento. Do mesmo modo, o inquilino tampouco tem direitos, o que faz com que após um ou dois meses de calote do aluguel o senhorio possa reintegrar a posse do imóvel onde se situa um negócio, por exemplo. Isto facilita, na outra mão, o ressurgimento dos negócios, mas se o capital de giro houver sido consumido comprando comida – mais ainda quando a comida crua aumentar tremendamente de preço e a industrializada desaparecer das prateleiras – não há como retomar nada. Os meios de estímulo artificial da economia pelo Estado também já foram praticamente exauridos antes mesmo da pandemia.
E, do outro lado deste belo planetinha azul, há uma chance que não se tem como avaliar (dada a natureza secreta e totalitária da administração chinesa) de que a pandemia leve a algum grau de perda de poder do governo central de Pequim. Ela pode tomar inúmeras formas: revoltas de populações etnicamente minoritárias contra os chineses han que o governo plantou em todas as regiões periféricas (Tibete, Turquestão Oriental etc.), destruição dos ubíquos equipamentos de vigilância, tomada pelo povo de Bastilhas, ops, de campos de concentração etc. O desgoverno chinês certamente tem tropas para lidar com essas situações, mas, havendo um agravamento da crise somado a transtornos sociais sérios, talvez elas não sejam o bastante e ele ou bem caia, ou bem passe a controlar apenas as áreas de maioria han.
Um resultado possível da soma disso tudo é cessar a demanda de produtos chineses no Ocidente, especialmente nos EUA (seja por barreiras alfandegárias, por boicote, ou por desagregação do tecido social), e com isso se desintegrarem ambos os sistemas que por ora coexistem em dependência mútua: consumismo ocidental e totalitarismo oriental.
O que tal desintegração causaria, em termos de criação de nova ordem social, é difícil, senão impossível, de prever. Remeto novamente à impossibilidade de Santo Agostinho prever o Medievo. O que podemos afirmar sem medo, todavia, é que os lugares que não estão plenamente integrados no sistema consumismo/totalitarismo, como o Brasil (em que apenas as classes médias altas urbanas estão perfeitamente integradas nele) ou a Rússia, serão os que passarão por uma readequação com menores consequências negativas sociais. Nossa economia é uma das mais fechadas do mundo, o que faz com que sejamos mais ou menos infensos às crises de produção mundializada (ainda que elas possam levar a sérios desabastecimentos, eles serão sempre localizados: pode faltar trigo, mas haverá soja à vontade, por exemplo). O sistema bancário brasileiro, todavia, bem como a própria moeda fiduciária, podem desabar. Não é um bom momento para ter dinheiro no banco ou – menos ainda! – aplicado em mercado de ações etc.
Mas, sem dúvida, vivemos, sim, em tempos interessantes. O que não nos faltará serão histórias para contar a nossos netos. E, até segunda ordem, ficaremos dentro de casa, assistindo de camarote a tudo acontecer. Lavem bem as mãos, senhores, para que seus netos possam ouvir suas histórias deste tempo interessante!
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