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Uma das muitas coisas que me fazem não gostar de megalópoles é a possibilidade de anonimato e de vida dupla que elas oferecem. Numa megalópole, é perfeitamente possível nunca passar do “bom dia” ao lidar com pessoas que não pensam exatamente como nós. Ou de ser uma pessoa no trabalho, outra na noitada e outra, ainda, dentro de casa. Isto não tem como fazer bem à alma.
As redes sociais vieram para piorar ainda mais esta situação, agrupando as pessoas em bolhas virtuais cada vez mais fechadas, que muitas vezes chegam a tomar o lugar da convivência real de tal maneira que esta vira função daquelas. É comum ver adolescentes sentados numa praça, com cada um olhando para o próprio fone; muitas das vezes, eles estão se comunicando por ali mesmo, fazendo do próximo distante e vice-versa, sempre se fechando mais e mais à realidade circundante.
Dentro das bolhas a toxicidade só faz aumentar, com cada um respirando virtualmente os gases também virtualmente exalados pelos outros, de tal maneira que a tendência é sempre de crescimento gradual do absurdo. Se passarmos uns dias fora das redes, ao voltar veremos os amigos tornados em rinocerontes, como na peça de Ionesco. Se não passarmos, rinocerontificamo-nos sem perceber, afastando-nos duma normalidade mínima que nos permitiria conviver numa sociedade aberta real e entrando mais e mais numa alucinação coletiva digna duma seita.
Dentre as que conheço, a rede social mais ferozmente bolhosa, mais absurdamente rinocerontificada é o Twitter
Cada bolha informática é como uma seita, com vocabulário próprio, uma visão própria (normalmente delirante) do mundo, e por aí vai. Quando se entra nos assuntos mais básicos em relação ao modo como nos localizamos no mundo, como religião e política, então, a coisa é assustadora. É comum que os grupos dedicados a assuntos mais desimportantes para a pessoa e a realidade, como técnicas de arte, gambiarras, carros antigos, o que for, sejam constantemente invadidos por loucos dedicados a repetir lá dentro o que se diz em sua bolha político-religiosa. Em sua seita.
Dentre as que conheço, a rede social mais ferozmente bolhosa, mais absurdamente rinocerontificada é o Twitter. Não sei se por causa da exiguidade do espaço de escrita, que obriga a deixar de lado as qualificações por que se viesse a moderar algum comentário, mas o fato é que gente que no Facebook parece até normalzinha torna-se um rinoceronte ferocíssimo, pisando em gatinhos, no Twitter. O ambiente é, a meu ver, o mais tóxico de todos; o canário da mina não consegue mais pipilar (“twitter” é “pipilador” em inglês) há tempos. O pior é que, pelo menos na minha parca experiência (mesmo porque eu não demoro por lá; posto o link da coluna da semana e pulo fora), a regra é o reativo negativo. São raros os que venham a postar por lá algo que não seja uma reação negativa, uma “acusação” em pouco mais de 100 caracteres.
A realidade de quem permanece muito tempo num ambiente como esse acaba sendo composta por sucessões de “assuntos” (na verdade meras desculpas para indignação gratuita) a que todos reagem. E, claro, reagem unanimemente, na medida em que só o que se vê são as reações dos que habitam a mesma bolha. Alguém posta uma notícia (“comunistas queimam igreja no Chile”), e enfileiram-se pipiladas raivosas: “que absurdo!”, “eu matava”, ou – noutra bolha – “agora vão ver a importância do povo nas ruas!”, “abaixo a ditadura!!”, e por aí vai. É um pouco como o “minuto de ódio” de 1984, em que todos dedicam-se a odiar unanimemente o mesmo alvo, num frenesi coletivo, como uma manada de rinocerontes batendo furiosamente com as patas no chão para fazê-lo tremer... naquela bolha, porque na bolha em que vive a pessoa ao lado no mundo real o alvo é outro.
Eu faço um esforço consciente para tentar ao máximo não me fechar em bolhas, na rede social e no mundo. Mas esta, decididamente, não é a regra geral. E, dado o meu anticomunismo, acabo tendo no meu perfil uma montoeira de gente encerrada na bolha da nova direita bolsotrumpista. Ora, para mim os dois tristes personagens são, na melhor das hipóteses, males menores que os concorrentes eleitorais. Mas há quem os veja como semideuses, como novos messias. E em geral vem no pacote, junto à idolatria bolsotrumpista, o ódio ao Santo Padre. E, mais ainda, uma tremenda ignorância tanto de como opera o mundo real, a geopolítica, o toma-lá-dá-cá da política eleitoral brasileira e tudo o mais, quanto uma total e absoluta incompreensão do que seja a fé cristã, a Igreja, o papa, os santos, e tudo o mais em que o sobrenatural toca o natural, em que o Eterno e o transitório se aproximam.
Daí o triste, embora curioso, fenômeno pelo qual esse pobre pessoal tenta alinhar a fórceps o papa à nova direita ou à esquerda, e pensa ser o papel de Sua Santidade enfiar-se em suas linhas do tempo de rede social repercutindo o que eles repercutem e condenando o que eles condenam. O mais triste é que o mundo virtual de reações condenatórias em que vive este pessoal é um mundo de fluxo, de devir, em que quando uma pessoa perde o bonde por algumas horas ou – horror dos horrores! – dias é até um pouco difícil inteirar-se do que está acontecendo. Acontecimentos reais, como o nascimento dum filho, um parente internado ou um prazo prestes a vencer sempre provocam nos viciados na constante ação excitatória de milhares de pequenas reações a impressão de terem perdido algo muito importante. Há até, claro, um neologismo para isso: seria o “FoMO”, “Fear of Missing Out”, “Medo de Ficar por Fora”. Pois o mundo é um bonde que não para, e quem dele apeia fica fora do mundo por ter perdido o bonde.
Mas o mundo não é um bonde. Aliás, mais ainda: o mundo, o universo inteiro, é uma bolinha com que uma criança brinca. É por isto que há tantas imagens religiosas, como o Menino Jesus de Praga, em que o Deus-Menino é representado com um globo às mãos: Ele é eterno, e o mundo é passageiro. Não passageiro como o bonde de pequenas emoções, de pequenas injeções de adrenalina reativa do Twitter (ou de serotonina dos canais pornográficos, aliás), sim passageiro por ser contingente, por ter tido um início no tempo e ser fadado naturalmente a ter igualmente um fim no tempo. Transitório como a beleza duma flor ou o voo duma mosca.
No pacote da bolha da nova direita bolsotrumpista costuma vir, junto à idolatria pelos dois presidentes, o ódio ao papa
Quando vemos qualquer cidade pouquinha coisa mais antiga, podemos ter a certeza de que todos os que um dia trabalharam na construção de cada uma de tantas casas já faleceram, e que provavelmente algumas pessoas nasceram e morreram em cada uma delas. A vida na Terra passa, passa como as estações; trata-se apenas, como já disse Santa Teresa d’Ávila, de “uma má noite numa pousada ruim”.
E o papel do Vigário de Cristo, daquela uma pessoa dentre tantos bilhões de pessoas sobre cujos cansados ombros pesa naquele momento a imensa responsabilidade dada pelo Criador de representá-l’O na Terra (sim, o papa representa o Cristo, não os fiéis!), é justamente de apontar este fato. De apontar para a Eternidade e fazer-nos comparar a nossa rápida vida com a sua duração sem fim que nos espera. De mostrar o Eterno, inclusive no que ele se reflete no transitório; o necessário, inclusive no que ele se reflete no contingente.
Quando alguém deixa de lado até mesmo a já tão rápida vida, com seus momentos fortes de nascimento, puberdade, casamento, filhos e velhice, para ater-se às besteiras do microssegundo, da última novidade a demandar uma reação instantânea, fica ainda mais difícil entender o papel do papa. Se para eles já é difícil entender que, por exemplo, ganhar músculos rechonchudos por razões estéticas é besteira, porque em poucas décadas, que passam muito depressa, esses músculos ficarão flácidos, imagine perceber o Eterno!
O mesmo Eterno que já nos seria difícil perceber quando estávamos apenas ocupados com os afazeres cotidianos que ligam cada um dos três ou quatro grandes momentos da vida passa a ser completamente incompreensível, destarte, quando os afazeres parecem ser coisas longuíssimas de que cuidamos nos intervalos entre as microexcitações consecutivas, com seus pequeníssimos picos de adrenalina reativa, que formam a realidade tuitada. E quando o em última análise rapidíssimo besteirol cotidiano passa a parecer ser algo que se desenvolve em câmera lenta devido à rapidez com que pululam as reações tuitadas, a religião torna-se impossível. Religião é religação com o Eterno; é sair do temporal para adentrar uma realidade muito maior, fora do tempo e do espaço. Se o temporal percebido passa da escala das semanas ou meses para adentrar a escala dos segundos e minutos, quando realmente parece absurdo a muita gente que o papa “não tenha se manifestado acerca” disso ou daquilo (por pior ou melhor que seja a notícia, ainda que normalmente seja pior), fecha-se-lhes o Eterno.
O tempo entre uma missa e outra, ainda por cima, nos nossos tempos corongudamente interessantes, que em muitas paróquias é hoje ainda maior que o de uma semana que já era para mim tão longo e sofrido, torna-se algo da escala das eras geológicas. O estado da alma torna-se algo incompreensível, algo tão distante da pseudorrealidade vivida quanto as eras glaciais da previsão meteorológica. Afinal, que importância pode ter a alma diante de tanta indignação homeopática, ministrada em tuitadas seguidas?! A alma não bipa, não cutuca, não chama a atenção a cada segundo. Ao contrário, até: quanto menos se lhe presta atenção, menos atenção ela parece demandar.
Os vícios anteriores, doutros tempos, eram menos drásticos. Até mesmo o crack, com efeito de quase meia hora, já parece algo que avança com a lentidão da deriva continental diante da rapidez dos microestímulos das redes sociais: tem um pico fortíssimo comparado ao delas, mas que é separado no tempo do próximo pico por uma distância inimaginável. Eu não saberia dizer da relação entre o vício em reações tuitadas e o vício em pornografia, que tanto mal anda a fazer ao manter muitos na busca permanente dum estado de esgotamento pós-orgásmico. Parece-me, contudo, serem estes vícios os sucedâneos do Eterno e do temporal d’outrora, da escala de tempo em que uma semana é pouco tempo e um ano é um pouco mais. Numa escala o orgasmo vazio da masturbação tenta preencher o lugar de Deus (que, por definição, é um “não lugar” e impreenchível, por ser Ele anterior e maior que o tempo e o espaço!). Noutra, os pequeninos choques repetidos da indignação superficial e da sensação de ação decorrente de somar a própria voz àquela fieira de vozes iguais a reagir da mesma forma ao assunto do momento tomam o lugar de constituir família, estudar, deixar uma herança para os filhos e para o mundo.
Vale muito a pena tentar fugir. Desligar as telas todas no fim do horário do expediente e aos fins de semana, passear em florestas, meditar, rezar o terço, estudar
Como disse, todavia, não sei em que medida ambas as coisas andam juntas, mas me parece bastante possível, e mesmo provável, que os que lançam como tema de indignação a ausência de uma reação indignada de Sua Santidade na própria linha do tempo sejam também masturbadores compulsivos. A dificuldade de lidar com a realidade, com os pesos das coisas, com os tempos, com a vida terrena e a Eternidade são similares demais para que não se possa prever tal combinação. É toda uma virtualização e aceleração brutal da vida, em que o amor é substituído pelo orgasmo gélido e infértil diante duma tela, imediatamente seguido de sucessivas razões e reações de indignação.
Não duvido, inclusive, que haja uma proporcionalidade direta entre a frustração do orgasmo vazio e a indignação igualmente vazia da reação tuitada. Assim, as variações hormonais que deveriam ocorrer no espaço de anos passam a suceder-se em cascata dentro duma mesma tarde, sem que, todavia, nasça algo de novo ou de bom daquilo tudo. É um processo loucamente acelerado, mas totalmente desprovido de orientação a um fim ordenado, ou mesmo de coerência interna. O masturbador compulsivo coloca-se como juiz do Sumo Pontífice, tanto mais feroz quanto menos casto; o clicar frenético em telas toma o lugar da construção duma vida ou duma sociedade, dando ao clicador a sensação de ter feito algo quando na verdade foi mero figurante num instante de frenesi de baixa intensidade que dali a dois dias já terá sido esquecido por todos. E por aí vai.
Sendo este efetivamente o quadro – e deixo a quem com ele se identifique a tarefa de verificar se é mesmo –, vale muito a pena tentar fugir. Desligar as telas todas no fim do horário do expediente e aos fins de semana, passear em florestas, meditar, rezar o terço, estudar. Deixar com que o corpo e, mais ainda, a psique e a alma percam o hábito da aceleração constante, desumana em sua origem algorítmica e desumanizante em suas consequências. Só assim talvez possa se recobrar a esperança, a Esperança real que repousa sobre um Eterno do qual a montanha-russa acelerada da hipermodernidade nega a presença. Só assim se pode perceber a ponte mantida pelo pontífice, e cruzá-la rumo a algo para o qual todo Bem aponta. Assim, quem sabe, a casca de rinoceronte pode se dissolver ao longo dos meses e dos anos, e ressurgir dali uma pessoa, criada à imagem e semelhança do próprio Senhor, conatural da Segunda Pessoa da Trindade e chamada a habitar o Eterno. Quem sabe? Só o que posso dizer é que é nula em graça toda tentativa de batismo dum rinoceronte. Não há rinoceronte batizado; no máximo podemos ter um rinoceronte levemente umedecido. E isto de nada serve.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos