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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Partidos e repartidos

O presidente Jair Bolsonaro e parlamentares do PSL convidados para reunião em que foi anunciado o partido "Aliança pelo Brasil". (Foto: Reprodução/Facebook)

Nove é um número interessante: é três vezes três, e é o número de dedos que sobraram a um mau metalúrgico após – dizem as más línguas –, depois de umas doses de cachaça para criar coragem, amputar o dedo mínimo da mão esquerda para conseguir aposentar-se cedo. E é também o número de partidos de que nosso bolsopresidente terá sido membro, ao se efetivar o registro da sua “Aliança pelo Brasil” no tribunal eleitoral.

O que isso mostra, na verdade, é a palhaçada absurda que são os partidos políticos no Brasil. Em tese, partidos deveriam ser uniões de cidadãos que têm – dentro da Janela de Overton delimitada pela Constituição, legislação, moral e bons costumes, claro – ideias semelhantes acerca de como melhor gerir a nação. As ideias entrariam, então, em confronto aberto no debate político, e levariam a uma saudável alternância de partidos no poder, com numa hora um partido dando ênfase a este ou aquele aspecto da cidadania, e noutra hora outro partido dando ênfase a outros aspectos. Muito lindo, no papel. Na prática, contudo, o que se tem é um sistema eleitoral que simplesmente não tem nada a ver com a realidade dos fatos. Como, aliás, sói acontecer no Brasil, temos uma lei que não se coaduna com a cultura popular e, por isso, “cola” apenas no estrito, estritíssimo limite do que pode gerar punições graves.

Veja-se o próprio caso de Bolsonaro – para poupar a paciência do meu punhado de leitores, deixo de lado os sete primeiros partidos. Para concorrer à Presidência de nossa malsinada República, ele entrou para o PSL. Trata-se, como aliás a maior parte dos partidos registrados, do que se chama uma “legenda de aluguel”: um partido sem bandeira, sem ideologia, sem ideias acerca do que deve ou não deve ser feito, de qual aspecto da cidadania deve ser enfatizado etc. Legendas de aluguel servem ao propósito único de permitir que pessoas físicas (políticos, artistas, o que for) que têm votos garantidos possam concorrer a um cargo. Afinal, pela lei, só se pode concorrer a um cargo, qualquer cargo eletivo, sendo filiado a um partido há sei lá quanto tempo. Alguns meses; não interessa.

Na prática, o sistema eleitoral simplesmente não tem nada a ver com a realidade dos fatos

No caso de cargos proporcionais, como o de deputado, a lei consegue piorar ainda mais as coisas, pois, além da contagem dos votos dados às pessoas físicas (e ninguém, fora os mais delirantes fanáticos da extrema-esquerda, vota na legenda), há uma contagem de votos da legenda, que premia os partidos mais votados com mais vagas. Conheço pessoalmente um senhor que foi vereador por décadas a fio numa cidade média do Sudeste. Numa dada eleição, para evitar indispor-se com os candidatos a prefeito, escolheu uma legenda pequena, um partideco de aluguel que não fedia nem cheirava e não ofenderia nenhum dos poderosos em cujos calos ele cuidadosamente tentava evitar pisar. Foi o vereador mais votado da cidade, mas não levou. O voto de legenda o deixou fora. No sentido oposto, o finado Enéas conseguiu, pelo número avassalador de votos que recebeu para deputado federal, colocar na Câmara uma tal – se não me engano – Senhorita Suely, que se teve algum voto foi de familiares seus. Tudo por obra e graça do voto de legenda.

Ora, se as legendas fossem realmente reflexos de visões ideológicas díspares, faria algum sentido, ainda que tosco, que isso tudo existisse. Mas não são. E assim, a filiação obrigatória, o cargo como propriedade do partido (outro absurdo inominável!), a proibição de mudar de partido e todo o resto do entulho delirante que a “Constituição Cidadã” empurrou goela abaixo dos brasileiros simplesmente serve apenas para criar uma corrida de obstáculos que em nada ajuda a cidadania. Para piorar, há ainda o Fundo Partidário, uma obscenidade legal pela qual os partidos ganham o suado dinheirinho dos contribuintes na razão direta do número de deputados de que dispõem. Em outras palavras, quem tem mais poder ganha mais dinheiro, e quem tem menos poder ganha menos. Quem bolou isso com certeza leu seu Maquiavel.

Nesta eleição a coisa foi simples, até: quem queria “colar” no Bolsonaro correu a filiar-se ao mesmo partideco, o que o tornou um dos mais poderosos. Até ontem o PSL não era nada. Depois desta eleição, tornou-se fortíssimo, poderosíssimo, apto a receber uma fortuna incomensurável do dinheiro dos trabalhadores honestos, que no mais das vezes nem sabem que o feijão está caro porque no preço estão embutidos impostos enormes destinados a engordar políticos enquanto emagrecem os eleitores.

O resultado é que agora o dono do partido, que havia alegremente alugado a legenda para Bolsonaro, tenta desesperadamente impedir que os deputados bolsonaristas (que ainda são uma maioria no partido, ainda que alguns tenham mudado de lado assim que a mosca azul que habita os salões acarpetados do poder os mordeu) mudem para a tal Aliança. Afinal, estão em jogo cargos na Câmara e no Senado, dados em função do tamanho do partido, o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral – sim, senhores, aquele lixo todo jogado nas ruas na época da eleição é pago com os impostos que pagamos todos sobre comida, remédio, combustível e o que mais o Estado conseguir taxar. Nem começo a falar aqui sobre impostos sobre comida e remédios, porque seria difícil manter esta coluna livre de palavrões.

Mas não é pouca porcaria. Para não regurgitar a janta, recuso-me a pesquisar exatamente quantos milhões de reais estão diretamente em jogo. E, além deles, claro, há também outro montante, muito maior, que advém do simples poder. Quem tem poder ganha dinheiro, simples assim. Quem tem muito poder nem precisa pensar em dinheiro, porque ele aparece. Qualquer policial sabe que é comum que venha gente literalmente tentando enfiar dinheiro no bolso dele, com o simples intuito de ganhar sua boa vontade, até em casos em que não há nenhum crime envolvido. O sujeito estava sóbrio, derrapou numa poça de óleo e enfiou o carro num poste, sem quebrar o poste, mas arrebentando bem com o carro. O guardinha chega lá pra registrar a ocorrência e o sujeito enfia cem reais no bolso dele, por exemplo. É a coisa mais comum do mundo, e gera – para os honestos, claro – imenso constrangimento. Isso com um guardinha de nada; imaginem os senhores o que acontece com um deputado federal. E com um deputado federal que preside uma Comissão disso ou daquilo, capaz de fazer sumir ou mandar pro Plenário leis que mexem no bolso de gente muito poderosa. Muito mais poderosa que ele. Se ele suspira “ah, Paris deve estar linda no outono”, em poucos segundos aparecerá na sua mão uma viagem para Paris com tudo pago para ele e mais três pessoas. Mera cortesia, vejam bem os senhores. Mas deve viciar. Aliás, certamente vicia.

O resultado, como se pode imaginar, é que o que parecia apenas uma palhaçada, uma corrida de obstáculos, acaba sendo algo muito pior: uma fonte de corrupção. Já vi gente honesta tentando sair candidata e sendo forçada pelos donos da legenda de aluguel a pagar um dinheiro “por fora” para o partido (ou para o dono do partido, sei lá; partido é um bom negócio no nosso pobre país). Já vi, como aliás todo mundo já viu, algo que era mais do que previsível quando começaram a inventar besteiras de cotas até nas candidaturas, pseudocandidatas registradas no tribunal eleitoral com o simples intuito de encher a cota do belo sexo e garantir o fundo eleitoral, sem que jamais lhes passasse pela cabeça fazer campanha. Afinal, nada mais fácil que achar candidatas: basta procurar numa repartição pública. Todo funcionário público (que, a meu ver, por depender do Estado não deveria nem sequer ter direito a voto, que dirá a sair candidato) tem seis meses de férias pagas quando sai candidato. E se a funcionária for militar, melhor ainda: ela pode filiar-se ao partido no último momento, pois, como os militares não podem, via de regra, ser filiados a partidos (coisa que, repito, deveria acontecer também com os demais funcionários), é-lhes permitido filiar-se muito depois dos civis, quase às vésperas das eleições.

Até ontem o PSL não era nada. Depois desta eleição, tornou-se fortíssimo, poderosíssimo

Ora, se fizessem cotas para deficientes, para pessoas com sei lá que cor de pele, tamanho de nariz ou beiços e demais horrores racistas que insistem em voltar, ou o que fosse, o mesmo fenômeno se repetiria, e teríamos pseudocandidatos aos magotes apenas para que o partido garantisse a bufunfa extorquida do povão.

É por isso tudo que eu digo que, para dar um jeito na política brasileira, uma das primeiras medidas seria o Estado não reconhecer partidos. Acabar com voto de legenda, obrigação de filiação, prazos, fundos e tudo o mais. As candidaturas seriam no papel, como já são na prática, de pessoas, de seres humanos, de Bolsonaros, Lulas, Josés e Joões. Afinal, já temos o que se apelidou de “bancadas”: a Bancada Evangélica, a Bancada LGBT, a Bancada Pró-Vida, a Bancada Ruralista, e por aí vai. Cada deputado, na prática, pode e deve participar de várias destas bancadas, exatamente como na vida real participamos de diversos tipos de associações de pessoas ou famílias. Mas elas não são reconhecidas; ao contrário dos partidos, elas não têm “lideranças” formais (outra fonte de corrupção inominável) com gabinetes luxuosos, seus membros não podem votar pelos outros, ninguém é obrigado a pertencer ou a deixar de pertencer de nenhuma delas...

Para dar um jeito na política brasileira, uma das primeiras medidas seria o Estado não reconhecer partidos

Os partidos deveriam ser exatamente assim: se os atuais componentes, digamos, do PSol ou do PCO sentirem enorme vontade de manter um partido (comunista adora um partido), que criem uma associação ou fundação, que pode até ser registrada em cartório com o nome de fantasia de “Partidão dos Proletários”, ter dinheiros próprios, e o que mais for. Mas seu dinheiro não virá da Viúva. E participar dela ou de qualquer outra equivalente não será jamais obrigatório. E votar num componente dela não significará “puxar” outro com a sobra de votos (foi assim que o triste Jean Wyllys conseguiu sua vaga: sua fama do Big Brother não lhe bastou para ser eleito, mas foi puxado para dentro do Congresso pelos votos do Chico Alencar, velha raposa felpuda da esquerda carioca).

Se, além disso, pela adoção do voto distrital acabasse esse absurdo de todo candidato ter de fazer campanha em todo o seu estado (na prática impedindo que pobres concorram, pelo simples preço do transporte), a política brasileira ficaria muito mais limpa e muito mais concorde à nossa cultural e à simples realidade dos fatos.

Bem sei que querer que no Brasil políticos deixem de extorquir dinheiro do contribuinte e que os pobres e fracos tenham alguma chance de representação é sempre querer demais. Mas sonhar é um direito que não nos foi arrancado. Ainda.

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