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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Paternidade e radicalismo

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A Primeira Guerra Mundial, em seu tempo, foi dita “a guerra para acabar com todas as guerras”, tamanha a sua inutilidade e ferocidade. Armas químicas, metralhadoras e bombardeios aéreos de baixa altitude eram comumente usados no front, em guerras de trincheiras que faziam com que um ganho de umas poucas dezenas de metros de antigo pasto, no meio do nada, revertido e retomado ad nauseam, pudesse cobrar dezenas de milhares de vidas. Ela foi provavelmente a mais assassina das guerras, ao menos até a sua continuação, a Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, dado o alto preço em vidas de tão ínfimas conquistas de território, se medirmos as mortes por metro quadrado disputado, a Primeira Guerra continua em primeiríssimo lugar.

Tendo começado em 1914 e acabado em 1917, como todas as demais guerras modernas ela deu origem a uma geração de órfãos, de meninos cujo pai fora oferecido em sacrifício a Marte. Esta geração, cujo núcleo duro chegou à idade adulta na década de 30, é que constituiu o grosso das milícias ideológicas europeias. Estas milícias e, ainda mais importante, os líderes ideológicos que elas seguiam serviam-lhes de figuras paternas substitutas. Um rapaz sem pai não sabe o que é um homem, por não ter tido um exemplo em casa ao crescer. Só o que ele sabe é que o homem difere da mulher nos muitos pontos em que percebem diferir da mãe e das irmãs. O principal deles, que salta aos olhos a quem quer que tenha visto menininhos e menininhas juntos, é a agressividade maior dos membros do sexo masculino.

Um rapaz sem pai não sabe o que é um homem, por não ter tido um exemplo em casa ao crescer

Uma figura paterna putativa que não apenas manifeste agressividade, mas a encoraje e fortifique ao fazer dela parte de um conjunto agressivo maior, apresentava-se, assim, como uma forma pujante de masculinidade, como a resposta a todas as questões que os pobres rapazes evidentemente tinham de se colocar ao definir a própria identidade. Daí os camisas pardas, os camisas pretas e outros grupos cuja identidade era a ideologia e o próprio grupo, em que submergiam e no qual desapareciam as identidades particulares. Como no símbolo fascista, tornavam-se parte dum feixe de gravetos, muito mais forte que um graveto solitário. Enfrentando-se como cães raivosos pelas ruas enquanto seus líderes enfrentavam-se nos meios pouquinha coisa menos selvagens da política, saltava aos olhos que só poderia sobrar uma dessas milícias, ou ao menos uma dessas ideologias, em cada país. Até mesmo, todavia, a luta entre milícias da mesma ideologia acabava por ter a mesma lógica, cruelmente comprovada na chacina dos líderes da milícia nazista das SA, perpetrada a mando de Hitler pela milícia igualmente nazista das SS após a tomada do poder.

Isto era então. Estava no ar naquele tempo a ideia de que o futuro seria necessariamente ideológico, e que fora da ideologia, fora do pensamento utópico, não haveria solução possível para a crise de legitimidade causada pelas vastas mudanças causadas pela Primeira Guerra na geopolítica europeia. Era a era das Grandes Narrativas, em que versões radicalmente simplificadas da realidade – as ideologias – competiam pelo domínio da realidade necessário para implantar sua utopia. Cada ideologia tinha uma utopia diferente, cada uma tinha um bode expiatório diferente, e cada uma, destarte, via como tantalizantemente próxima a sociedade ideal. Nenhuma delas, claro, fazia o menor sentido se nos lembrarmos deste pequeno detalhe que é a existência e imutabilidade da natureza humana; todas essas filhas do romantismo rousseauniano negavam a realidade e mesmo o senso comum em prol da emoção. Eram concursos de quem gritava mais alto, de quem melhor tangia as cordas dos corações de jovens criados sem pai e inseguros da própria identidade como homens.

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Foi daí que veio a Segunda Guerra Mundial, em última análise uma versão em escala tremendamente ampliada das brigas de rua entre milícias de jovens comunistas e fascistas, tão comuns nos anos 1930 Europa afora. As identidades nacionais substituíram, ou somaram-se, às ideológicas, de tal forma que o próprio Stálin teve de apelar à mitologia nacionalista da Mãe Rússia, mesmo estando no comando do que deveria ser uma união transnacional puramente ideológica. O que se tinha, então, era a solução dos problemas afinal individuais de cada rapaz criado sem pai pela proposição duma figura paterna de proporções míticas – Stálin, Mussolini, Hitler – e uma “filiação” (logo identidade) coletiva, primeiro ideológica e depois tão ideológica quanto nacionalista.

Já agora o mesmo problema existe, por razões bastante diferentes e com resultados igualmente diferentes. A história, afinal, já disse o famoso subversivo Carlos Marques, é primeiro tragédia e depois farsa. A Revolução Social da virada dos anos 1960-1970, somada à descoberta e generalização do uso de pílulas anticoncepcionais e antibióticos, teve em grande medida o mesmo efeito que a Primeira Guerra. A possibilidade de prevenir a gravidez e as doenças venéreas tornou aparentemente desnecessário o autocontrole juvenil diante da mais forte das pulsões humanas, o sexo. Ao mesmo tempo, o valor de “mercado” da nubilidade despencou devido à chegada súbita de uma quantidade inaudita de moçoilas em flor. Afinal, jamais houve (e tudo indica que jamais haverá) uma geração tão grande, uma quantidade de nascimentos quase simultâneos tão superior à média anterior quanto a ocorrida no “Baby Boom”, logo após a Segunda Guerra. Como, todavia, as mulheres amadurecem muito antes dos homens, na prática isto resultou em um “mercado” amoroso em que cada rapaz de 20 e poucos podia escolher entre várias beldades de 16 ou 17. A existência simultânea de magotes de rapazolas de 16 ou 17 jogando bola em nada afetava a oferta desproporcional de moças, pois elas jamais olhariam para eles.

O resultado prático de tal situação foi que as moças se viram forçadas a agir sexualmente de modo masculino, priorizando a promiscuidade e menosprezando o compromisso. A vida, contudo, sempre dá um jeito, e mesmo com todas as pílulas do mundo crianças continuaram a nascer, embora nunca mais em tão farta quantidade. Os pais dessas crianças, todavia, não eram casados com suas mães. Podem alguns ter sido, tendo-se divorciado depois; podem outros terem sido apenas uma aventura de uma noite só; outros, ainda, tiveram por um curto momento a mãe do menino como “peguete”. E por aí vai.

Na prática, a transformação social ocorrida em decorrência da Revolução Sexual fez com que um porcentual de meninos muitíssimo maior que o de qualquer geração anterior (à exceção, talvez, dos órfãos da Primeira Guerra...) crescesse sem a presença de uma figura paterna. Hoje, ter tido uma presença paterna em casa é novamente mais um privilégio que a regra. O que mais se vê por aí é órfão de pai vivo, por assim dizer. O resultado para os rapazes é o mesmo que para seus antecessores de há 90 anos: um sério problema de indefinição identitária. Um sério problema de percepção da masculinidade, do que significa ser homem. Uma redução inconsciente do masculino a versões caricaturalmente exacerbadas das diferenças entre os sexos que mais saltam aos olhos.

A transformação social ocorrida em decorrência da Revolução Sexual fez com que um porcentual de meninos muitíssimo maior que o de qualquer geração anterior (à exceção, talvez, dos órfãos da Primeira Guerra...) crescesse sem a presença de uma figura paterna

Hoje em dia, entretanto, as Grandes Narrativas simplesmente não “colam” mais. Mesmo as sobrevivências ideológicas mais fortes hoje – do salafismo islâmico à “lacração” ou identitarismo vitimista, do neomarxismo ao populismo de direita – não seriam capazes de organizar os rapazes em “feixes”, em milícias. Cada um percebe duma forma diferente a ideologia, e a vive fundamentalmente como um componente da própria solidão, alimentada pela pseudossocialização das redes digitais.

E daí termos rapazes cuja vida gira em torno da ambição de hipertrofiar este ou aquele músculo (sem com isso ficar mais forte), ainda que ao preço de horas de esforço diário e injeções diárias de venenos que, quando não matam, levam à impotência sexual. Para “parecer homem”, vale a pena até mesmo deixar de ser sexualmente capaz como homem!

Daí termos outros que acham na persona pública dalgum guru político ou mesmo religioso uma figura paterna substituta, e tomam por masculinidade a repetição de seus trejeitos, gostos e desgostos efetuada por seus adeptos, ampliando-os ao absurdo e fazendo deles a própria identidade virtual.

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Daí termos tantos “lobos solitários” matando inocentes em nome dum Alá, dos “celibatários involuntários”, do meio ambiente, dos animais confinados, dalgum político de estimação ou do que for. Nada mais individual, hoje em dia, que a “radicalização”, o nome genérico dado hoje à adoção de extremos ideológicos, colocando-os como valendo mais que a própria vida e fazendo assim com que o suicídio (tido como “martírio”) pareça um ato nobre. “Radicaliza-se” o rapazinho chato e de mau hálito que culpa as mulheres por não ter sucesso com elas, e assim invade ele a escola em que estudou e põe-se a matá-las. “Radicaliza-se” o outro idiota que varre um calçadão lotado de inocentes com um caminhão, crendo assim saciar a sede de sangue de seu Alá individual com o de suas vítimas. “Radicaliza-se” o outro que mata a própria família, ou invade um clube e põe-se a chacinar metodicamente quem lá está, ou o outro ainda que perpetra outra barbaridade, e outros muitos, muitos outros.

Esta “radicalização” no mais das vezes ocorre na solidão do próprio quarto. É lá que fermenta na mente do “radicalizando” uma concocção malsã de vídeos e mais vídeos de imbecis pregando simplificações da realidade que no mais das vezes conflitam umas com as outras. Ao contrário do que acontecia com seu antepassado ou antecessor em 1930, ele não busca nem encontra um pai putativo que não a imagem coletiva de masculinidade oferecida pela soma, ou antes pela média, de todos aqueles rostos, palavras e sugestões. Mesmo os adeptos de gurus têm na verdade a comunidade formada em torno do guru como mais importante que o próprio guru, como se pode perceber pela persistência do fenômeno Rajneesh, mesmo após terem sido descobertos seus crimes e ele mesmo ter morrido. É a leitura individual da persona do guru tal como refletida em seus adeptos que conta, muito mais que as palavras dele.

Isto faz com que, duma certa maneira, seja ainda mais difícil lidar com este fenômeno que com o seu equivalente de 90 anos antes. Não há mais uma casa onde uma milícia se reúne, nem mesmo uma ideologia comum. O que há são sinais de membresia, “senhas” (jargão, peças de roupa, músicas, memes...) pelos quais cada indivíduo atomizado reconhece o coleguinha de identidade. Aliás, nos ambientes virtuais mais “radicalizados” é comum que sejam usados apenas pseudônimos, e a quase ninguém ocorreria sequer tentar encontrar fora das telas algum camarada virtual, a não ser já no contexto de uma aproximação terrestre da utopia, como o Estado Islâmico para os tantos que foram “radicalizados” individualmente pela internet.

Nada mais individual, hoje em dia, que a “radicalização”, o nome genérico dado hoje à adoção de extremos ideológicos, colocando-os como valendo mais que a própria vida e fazendo assim com que o suicídio (tido como “martírio”) pareça um ato nobre

A violência, porém, é real. Se seu auge está (por enquanto) nos ataques terroristas, ela está igualmente presente na desumanização das mulheres pelos movimentos “masculinistas” ou pela pornografia; na ação física contra todo e qualquer símbolo duma história que querem ver negada, repetidamente encetada ano passado por membros de movimentos identitários vitimistas; na censura, cada vez mais presente e com várias “mãos”, que faz com que a cada dia esteja mais restrita a liberdade de expressão mundo afora; na negação de fatos biológicos elementares, como o dimorfismo sexual humano ou a morbosidade da obesidade mórbida...

Tudo isto que apontei tem uma causa única, que a sociedade deveria encetar esforços máximos para impedir: a infância sem pai, a dissolução da célula básica social, onde ocorre ou deveria ocorrer a formação de cada cidadão. Quando, contudo, nem mesmo lhes é dado saber quem eles são, ou nem sequer o que é ser homem, tudo degringola. E é então que a força do rapaz, aquilo que deveria ser a proteção primeira das crianças, das mulheres e dos idosos, volta-se contra a própria sociedade. Afinal, ela lhes negou o direito mais básico e primeiro: saber quem se é. E é então, por conta da injustiça perpetrada contra eles pela sociedade em decomposição, que sofremos todos. A começar por eles.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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