A Política é, ou deveria ser, o trato das coisas da pólis (a cidade-estado grega). Normalmente, até o surgimento dos imensos Estados nacionais monopolistas, a política ocorria em pequena escala; era algo mais semelhante à lida dos prefeitos e vereadores que à de um presidente atual. Assim assegurava-se que a política seria pessoal, ou melhor, personalista. As decisões eram tomadas de modo a conseguir ao menos uma aprovação majoritária, se não unânime, sendo assim exercido o poder na busca do melhor possível, não o ótimo ideal. Os políticos (quando os havia dedicados a esta labuta) eram conhecidos de todos; na sua maior parte, eram cidadãos que assumiam um cargo após terem sido eleitos ou sorteados (método empregado em Atenas para evitar a ascensão de demagogos), e findo o mandato voltavam a seus afazeres.
Mas não é esta a nossa realidade: temos um Estado gigantesco, orientado por uma ficção delirante, a “Constituição Cidadã” inventada pela esquerda após o fim dos governos militares. Lembro do caso de um americano, que – como bom americano, moderno até os gorgomilos – acreditava piamente que a constituição era o que constituía uma nação, resolveu ler a brasileira, em tradução, para entender o Brasil. Claro, não entendeu nada, até que lhe expliquei que a moral da história é que no Brasil ninguém acredita no que está escrito num papel carimbado. Papéis carimbados aqui são como breves ou amuletos, não “mínimos morais”. Mas a teoria, essa coisa tão distante da realidade, requer os tais breves. Daí a sanha brasileira por diplomas (que não garantem sequer que seu portador saiba ler e escrever), carteirinhas e quetais.
Mas tudo isso é ficção, na nossa cultura, o que faz com que o mundo orientado pela legislação positiva seja uma espécie de mundo das fadas, em que o tempo corre diferentemente do nosso e em que tudo está de ponta-cabeça, com o mal sendo premiado e o bem espezinhado. Costumo dizer aos amigos advogados que eles são como mães-de-santo, intermediários entre um mundo fantasmagórico, que o vulgo não entende nem vê até ser afligido por ele, e o mundo real. Uma pessoa que esteja tendo muito azar, no Brasil, muitas vezes vai recorrer a um feitiço, botando uma garrafa de pinga na encruzilhada para ver se o “encosto” vai embora. Se ele não se for, o sujeito apela à mãe-de-santo, que consegue conversar com o “encosto” e o fazer buscar novos ares. Exatamente assim é a faina do advogado brasileiro: se um sujeito começa a ter problemas com, sei lá, a fiscalização estatal em seu negócio, ele primeiro tenta apaziguar a situação dando um faz-me rir ao fiscal. Se não funcionar, ele apela ao advogado, que – precisamente como a mãe-de-santo – tem a manha de conversar com o encosto, ops, o fiscal, e fazer com que ele deixe em paz o pequeno negociante.
Vivemos assim num mundo em que a lei não só não é o “mínimo moral”, mas é fantasmagórica, desconhecida, na melhor das hipóteses irrelevante e na pior apavorante por sua desconformidade à moral real da população. Esta é uma das heranças dos delírios de um intelectual francês que conseguiu a proeza de estar ainda mais errado que a média dos intelectuais franceses: Auguste Comte. Escrevendo na primeira metade do século retrasado, ele criou um monstro que migrou da França para o Brasil – de mãos dadas com o espiritismo, aliás – e até hoje perturba a nossa política. O nome do monstro é positivismo, e praticamente todos os males da República lhe são devidos.
No Império, havia uma instituição política (ou supra-política) extremamente interessante, e particularmente bem-conformada à mentalidade do povo brasileiro: o Poder Moderador, exercido pelo Imperador. Sua função, crucial para o bom andamento da governança no Brasil, era a de “turma do deixa-disso”. A “turma do deixa-disso”, peculiar elemento cultural brasileiro, tem a missão de evitar que confrontos sejam escalados. Nossa cultura tem ojeriza ao confronto aberto, e para evitá-lo criou esta peculiar instituição, pela qual toda e qualquer briga tem sempre uma chance de ser encerrada antes que problemas maiores sejam criados. O Poder Moderador do Brasil Imperial tinha exatamente esta função, podendo dissolver um Congresso ou depor um Primeiro-Ministro que estivesse batendo demasiadamente de frente com algum adversário. Coisa boa e saudável, sumamente de acordo com nossa cultura cristã.
Quando do golpe que derrubou a monarquia, todavia, esta função foi eliminada, justamente por influência positivista. O positivismo tem como peculiaridade maior a ojeriza àquilo que compõe o cerne da moral cristã: as noções de causa primeira e de fim último. Em outras palavras, às perguntas “por quê” e “para quê”. Só lhe interessa o “como”. Seus três maiores filhos são o cientificismo (crendice segundo a qual só existe o que pode ser medido usando o método científico), o positivismo jurídico (crendice segundo a qual a lei positiva determina a moral e a organização da sociedade, e está acima de tudo) e o positivismo tecnocrático (crendice segundo a qual a administração pública deve ser técnica, não política). Por estes meios, por esta busca de um “como” desprovido de razão ou causa, teríamos a “ordem e progresso” do lema positivista inscrito em nossa bandeira. A política não existiria mais, sendo substituída por uma administração “científica” ou técnica.
Crendices, todavia, são apenas crendices. Elas são incapazes, evidentemente, de lidar propriamente com a realidade, e os elementos culturais sempre surgirão independentemente da crendice a que adiram os governantes. E é isso o que ocorreu com a “turma do deixa-disso”, ou Poder Moderador, após ele ter sido oficialmente (“positivamente”) eliminado da administração brasileira. A política, na realidade, não é, nunca foi e jamais seria algo técnico. Ao contrário, até: a política é a arte do possível, a busca de, se não um consenso, ao menos uma resposta positiva da maioria dos poderosos. Toda política é e encerra centenas de confrontos institucionais, pessoais e de interesse, que devem ser regidos de alguma forma. Nos EUA, com sua cultura dualista de base cultural calvinista, há sempre dois partidos que se odeiam abertamente. Aqui no Brasil, dada a nossa tendência cultural a evitar o conflito aberto, ao contrário, temos milhares de pequenos, médios e enormes interesses fazendo e desfazendo alianças momentâneas todo o tempo. E precisamos, para evitar que um desses infinitos conflitos sempre em curso em nossa política torne-se coisa maior e mais feia, de uma “turma do deixa-disso”. De um Poder Moderador. E onde foi parar este poder, com a queda da monarquia e sua eliminação da legislação positiva? Sendo ele necessário culturalmente, não há como ele deixar de existir. Tendo, porém, sido liminarmente negado pela ascensão do positivismo em suas várias formas ao poder, ele necessariamente surge de maneira algo informal, sem ousar afirmar ser o que na realidade ele se julga ser. Afirmando uma superioridade que na prática não existe, e negando liminarmente a igualdade de quaisquer instituições com que entre em conflito.
E este é o problema. Temos duas instituições que se percebem como Poder Moderador, cada uma regida por uma vertente diversa do positivismo comteano, mas unidas, ambas, em sua negação liminar da política. Uma – a que depende do positivismo jurídico – é o Supremo Tribunal Federal. São os sacerdotes da seita da Lei, que idolatram a Constituição (na prática absolutamente delirante e impraticável, mas que eles realmente acreditam ser o que constitui a ordem social) e veem as praxes processuais, a obediência à letra da lei positiva e outros rituais pseudocívicos como sendo tudo o que importa. A política, claro, não existe: existe apenas a Aplicação da Lei.
A outra instituição que se percebe como Poder Moderador é composta pelas Forças Armadas, mormente o Exército (a Marinha e a Aeronáutica brasileira empalidecem em poder e organização perto das forças de terra). Esta instituição tem por ídolo a técnica e também nega a política. Para ela, o melhor administrador é um engenheiro, um autista incapaz de perceber as pessoas e seus conflitos, resolvendo tudo por razões e meios técnicos. Interessa-lhe apenas o “como”, numa matematização delirante da realidade, em que todo conflito político tem seu valor negado liminarmente e tratado como briga de crianças numa sala de aula. O outro filhote de Comte, o cientificismo, está implícito nas visões de mundo destas duas instituições.
O que temos em curso hoje no Brasil, portanto, é um conflito insanável. Um Poder Moderador, para ser exercido de maneira correta, depende de duas condições ora ausentes: a primeira, evidente, é que ele seja um só. Dois Poderes Moderadores significam na prática que todo conflito entre eles, ao escalar, exigiria um terceiro Poder Moderador acima deles, que faria delas “meras” vertentes políticas, não mais Poderes Moderadores. A segunda necessidade premente para que bem opere um Poder Moderador é que ele perceba claramente as condições e disputas políticas, e as respeite como tal. Um Poder Moderador que se perceba como técnico – seja sua técnica o domínio da legislação positiva ou da engenharia de processos – é incapaz de intervir a contento numa disputa política, pela simples razão de não entender o que está em jogo. Ou, mais ainda, de negar haver valor em qualquer disputa política “abaixo dele”. Sua posição é necessariamente a de uma professorinha que não sabe nem quer saber as razões da briga de aluninhos que ela percebe como indisciplinados por brigarem por alguma questão que lhes é sumamente importante, mas que ela ignora totalmente.
É este conflito que vem se desenrolando ao redor do bolsopresidente nos últimos tempos, com leituras radicalmente diferentes e conflitantes de dois atores políticos que não se percebem como tal, o STF e o Exército. Ambos se veem acima da política, ambos se consideram o legítimo Poder Moderador, o que, claro, faz com que um rejeite o outro e tente rebaixá-lo a criador de casos. Para quem apoia o Poder Moderador que o STF pretende ser, toda a questão gira em torno de definições constitucionais de competências e ritos processuais. Assim, o bolsotelefone poderia perfeitamente ser requisitado, e quem fizesse marola acerca disso estaria sendo um “mero” ator político insubordinado. Lembro que para um positivista de qualquer tipo, atores políticos são mera areia na engrenagem, chatos que insistem em prestar atenção em coisas irrelevantes e perturbar o sereno mecanismo positivo de administração. Para estes, então, a hipótese de intervenção militar seria um golpe de estado, na medida em que – por estarem sendo seguidos os ritos processuais – não haveria razão alguma para o bolsopresidente invocar o famigerado Artigo 142. Ou, como preferem seus seguidores mais fanáticos, “AI-5”.
Os apoiadores do Exército como Poder Moderador têm uma visão radicalmente oposta, ainda que informada pelas mesmas crendices positivistas. Para eles, a bolsoadministração – sumamente técnica – está sendo atrapalhada por uma série infinita de provocações “meramente” políticas – ou seja: areia na engrenagem, atenção a irrelevâncias, e tudo o mais. Daí o desabafo presidencial no famoso vídeo, quando disse que não veria problema em ser impichado por ter dinheiro na Suíça ou tretas com empreiteiras, mas que considera ridículos os motivos ora aventados para impeachment (cito de memória). Para os fiéis do Exército como Poder Moderador, assim, a requisição do bolsotelefone é apenas uma provocação a mais, outra intromissão indevida de “meros” atores políticos (o STF e a AGU) na serena bolsoadministração positiva. E, claro, se a palhaçada continuar a única coisa a fazer será invocar a contragosto o bendito Artigo 142, como uma professorinha que manda para a sala da coordenação o aluno que insiste em perturbar a aula.
Ambas as culturas positivistas negam liminarmente o valor da política. Ambas as culturas reverenciam abstrações na prática inexistentes e são totalmente incapazes de colocar-se no lugar do outro, por verem-se a pairar acima da “mera” política, esta coisa suja em que todos os demais estão mergulhados. Cada uma delas percebe a outra como intrometida, como ilegítima, como parcial. Como, em suma, um “mero” ator político, logo por definição abaixo do Poder Moderador que ela se percebe sendo.
A situação é, assim, insanável nos termos em que se coloca. A única maneira de sair dessa disputa seria eliminando-a, o que poderia acontecer por um processo de impeachment ou canetada do Supremo (que tivesse aceitação política do Congresso, ao menos) ou por uma intervenção militar (que se veria como constitucional, por ser solicitada pelo presidente, de acordo assim como tal Artigo 142; dificilmente, todavia, a oposição a veria como tal, especialmente a oposição que percebe o STF como poder moderador).
Quem viver verá.
Boicote do agro ameaça abastecimento do Carrefour; bares e restaurantes aderem ao protesto
Cidade dos ricos visitada por Elon Musk no Brasil aposta em locações residenciais
Doações dos EUA para o Fundo Amazônia frustram expectativas e afetam política ambiental de Lula
Painéis solares no telhado: distribuidoras recusam conexão de 25% dos novos sistemas
Deixe sua opinião