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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Postergação de desejos

(Foto: anncapictures/Pixabay)

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A base de toda civilização é a postergação da obtenção do desejado: planta-se hoje para colher amanhã, trabalha-se hoje para receber depois, economiza-se hoje para comprar depois. A pessoa ou grupo social que não consegue postergar a obtenção de algo desejado não apenas paga mais caro como prejudica o próprio futuro. Afinal, na prática o que se faz é empenhar o futuro em prol do presente, quando o racional – o civilizatório – seria exatamente o oposto. Na sociedade ocidental atual, que se desintegra em velocidade espantosa, a ausência desta virtude em todos os níveis, do pessoal ao global, salta aos olhos.

No nível pessoal ou familiar, o problema é tornado evidente pelo sucesso das Casas Bahia e similares. Ao contrário do que parece, tais estabelecimentos não são lojas de móveis, mas bancos; os objetos à venda são apenas chamarizes, usados para convencer as pessoas que não têm a verba disponível a pedir dinheiro emprestado para comprá-los. Os juros, embutidos na prestação, é que compõem o grosso do lucro de tais estabelecimentos. O resultado disto é que quem tem o dinheiro no bolso não há de comprar lá; afinal, além de ter de fazer um complicadíssimo cadastro em tudo similar ao de abertura de conta num banco que não tenha medo de afirmar-se tal, o preço à vista será o mesmo da prestação, com os juros embutidos. Esta é uma forma de garantir ao estabelecimento a preponderância maciça de pessoas incapazes de postergar a obtenção do que desejam.

O mesmo se vê no endividamento maciço dos que caem nas arapucas bancárias do cheque “especial” e do cartão de crédito. Enorme parcela da população compromete parte significativa da renda na compra a crédito de besteiras, objetos de consumo inúteis (como um celular caríssimo, que será usado para funções que um modelo mais simples desempenharia sem problemas), automóveis caros, o que for. Para muita gente, aquilo que pode ser adquirido pedindo dinheiro emprestado e pagando juros extorsivos sobre ele é tido como estando ao seu alcance financeiro.

A pessoa ou grupo social que não consegue postergar a obtenção de algo desejado não apenas paga mais caro como prejudica o próprio futuro

O juro, afinal, é o que se paga para avançar o tempo e obter o objeto de desejo antes de ter-se meios para o adquirir. É o valor dado pelo mercado ao esforço futuro do comprador. Se a pessoa economizar uns tantos meses, mesmo com o spread bancário obsceno brasileiro, ela poderá comprar à vista o mesmo objeto por muito menos, já que não pagará juros. Seu tempo será seu. O único “problema” é que a posse do bem cobiçado ocorrerá no futuro; a maioria prefere pagar mais e comprometer a própria renda futura para ter aquilo agora em mãos. Como o que se busca na sociedade de consumo é a brevíssima alegria de ter acabado de tomar posse de um objeto de consumo, o padrão é que o consumidor esteja ainda pagando caríssimas prestações quando o objeto já lhe parecer defasado, vergonhoso mesmo.

O mesmo ocorre em todo tipo de empreendimento humano que demande dedicação e trabalho agora para obtenção futura de um bem. Das artes marciais aos instrumentos musicais, da poesia ou prosa à programação de computadores, do aprendizado duma língua estrangeira ao duma técnica artística, é cada vez menor o número de pessoas capazes de passar longas horas, todos os dias, estudando, treinando e aprendendo para, anos depois, ser capaz de fazer algo, de realmente dominar alguma coisa, de ter em si uma capacidade rara. Quando a isto se soma o fracasso formidoloso do sistema escolar – que em tese deveria treinar hoje as crianças para que possam ter um desempenho futuro, na idade adulta –, vê-se que as expectativas futuras para a sociedade são péssimas.

Não é de se espantar que o mesmo ocorra em organizações sociais mais amplas. Um vício mental, uma incapacidade que atinge grande parcela da população, fatalmente acabará atingindo as organizações sociais formadas daquelas mesmas pessoas. Vê-se isto na paróquia em que a música litúrgica é função de uma bandinha de rock amadora, preferindo-se algo ruim no presente a investir no futuro pela formação de um coro decente. Vê-se isto no abandono da malha ferroviária em prol de rodovias, mais baratas no curto prazo e muitíssimo mais caras para a sociedade no médio e longo prazos. Vê-se isto no hábito social difundido de juntar as escovas de dente sem casamento ou compromisso futuro algum. Vê-se isto no recorrente fenômeno publicitário de explorar ao máximo uma marca tradicional para lucros imediatos, jogando no lixo um patrimônio de confiança na marca ao aplicá-lo ao Deus-dará até que perca totalmente o valor. Vê-se isto na substituição da seriedade acadêmica, dos estudos realmente superiores, pela sinalização de virtudes e igualitarismo desesperado no sistema universitário.

Mais ainda, isto pode ser claramente percebido na geopolítica. Nela vem se tornando tão comum que os atores ocidentais ajam pensando apenas no curtíssimo prazo que qualquer expectativa de retomada de significância geopolítica deles foi esvaziada. A Alemanha, querendo parecer “verde”, ecológica, apostou tudo na geração de energia solar e eólica, em detrimento de sua tradição industrial. Apostou e perdeu, e hoje se vê dependente de gás natural russo para poder manter as indústrias que ainda tem, e aquecer os lares de seus idosos cidadãos. A França, necessitada de mão de obra, acolheu e acolhe ainda, em massa, imigrantes de suas antigas colônias, sem contudo integrá-los à sociedade preexistente. O resultado é que há hoje centenas de “zonas urbanas sensíveis”, o eufemismo da burocracia francesa para áreas dominadas por muçulmanos radicais aliados a traficantes de drogas, onde a polícia só entra em caveirões. Até mesmo fora de tais áreas, tornou-se mortal a qualquer um ofender o suscetibilíssimo Islã, como se a França se houvesse tornado colônia saudita.

Os EUA são hoje um país essencialmente sem base industrial, substituída por atividade financeira improdutiva. Como o dólar tornou-se no pós-guerra a moeda de troca internacional, basta ao governo americano “imprimir” mais dólares, na prática exportando a própria inflação, para movimentar uma economia basicamente formada de serviços internos e inexportáveis. Seria de se esperar, assim, que os EUA protegessem ao máximo este papel internacional do dólar. O que se viu e se vê, todavia, é o contrário: o papel de moeda internacional do dólar tornou-se mero meio para sanções comerciais contra quem não aceitar a hegemonia americana. Seus alvos maiores no momento são quem comercie com o Irã, o atual monstro malvado da propaganda americana, ou com a Rússia, contra quem os EUA parecem decididos a retomar a Guerra Fria. O resultado é que a economia mundial vem se desdolarizando, usando como substitutos o bom e velho ouro, o euro e a nova moeda digital chinesa. Em outras palavras, o governo americano vem estrangulando a própria galinha dos ovos de ouro, sem que sequer tenha benefício direto e imediato disto. Afinal, o problema do Irã é apenas ser um poder regional que apoia interesses anti-israelenses; a Rússia, por seu lado, abandonou o expansionismo soviético, e só é perigosa para quem a ataque.

A própria forma como foram conduzidos os lockdowns durante a atual pandemia foi marcada, em muitos lugares, pela ênfase no presente em detrimento do futuro. Tratamentos de saúde importantíssimos foram interrompidos; cadeias de abastecimento essenciais foram rompidas; pequenos comércios faliram aos magotes. Não será de se espantar se os problemas causados no médio e longo prazo por lockdowns mal manejados alcancem aqui ou ali índices de letalidade tão altos quanto os dos países que não impuseram medidas preventivas.

Até mesmo a recusa de procriar, cada vez mais frequente no Ocidente e causa indireta da necessidade de importação de mão de obra imigrante, é uma recusa da postergação do desejo. É outra forma de penhora do futuro em prol do presente

O que se vê nestes tantos exemplos – e há muitos outros! – é o exato oposto do que se viu quando o homem começou a plantar e criar animais de abate, em vez de simplesmente caçar bichos selvagens e colher frutas silvestres. A ação de quem posterga a recompensa, de quem age agora para mais tarde colher os frutos de seu trabalho, é a base de toda cultura e civilização. Sem saber tocar um instrumento, é quase impossível compor uma música nova. O que mais se vê hoje em dia, todavia, não são músicas novas, mas colagens de elementos anteriores, feitas por gente que quer, claro, obter agora mesmo o resultado de qualquer esforço.

Até mesmo a recusa de procriar, cada vez mais frequente no Ocidente e causa indireta da necessidade de importação de mão de obra imigrante, é uma recusa da postergação do desejo. É outra forma de penhora do futuro em prol do presente. Faz-se sexo – dificilmente fazendo-se amor, aliás – de forma tal que hormônios artificiais, objetos estranhos ou barreiras impeçam que venha uma nova vida. Que, literalmente, nasçam as futuras gerações. O objetivo maior desta recusa à vida é desviar a energia e capacidade de que o jovem casal é dotado, retirando-a de seu fim precípuo, que é cuidar de crianças pequenas, e dedicando-a ao mais vazio “lazer”. A mais amarga solidão na velhice é o altíssimo preço da possibilidade de viagens e sexo estéril casual na juventude. Há mesmo quem faça desse fechamento à vida uma pseudovirtude, comparando o ser humano a pragas ou parasitas sobre a Terra!

O sexo estéril, a obtenção imediata de objetos de consumo em detrimento da renda futura, a prodigalidade com que os Estados destroem o que os faz ricos, a impaciência, a incapacidade de estudo continuado do que quer que seja... Tudo isto faz parte dum mesmo quadro de “descivilização”: é um processo exatamente igual ao do surgimento da civilização, mas ao inverso. Como todavia o homem é um animal naturalmente social, nas palavras de Aristóteles, outra sociedade, outra cultura surgirá dos escombros desta. Assim como o glorioso Medievo, após uns tantos séculos de trevas, surgiu das ruínas do Império Romano, algo há de surgir para tomar o lugar do que se está destruindo a cada momento, da herança que se está negando às próximas gerações.

O que será, contudo, é impossível saber. A Europa, ao que tudo indica, acabará por unir-se à vasta mancha verde do Islã. Nos países anglófonos, a artificialidade das sociedades as levará rapidamente à anomia. Na continuação latino-americana da Ibéria romana, há ainda esperança. Para que se possa reter o que de bom foi produzido nestes dois milênios de que somos herdeiros, todavia, é necessário que haja quem se disponha a passar horas ao dia aprendendo um instrumento, para que nem Bach nem Pixinguinha se percam; que haja quem se dedique a aprender e a retransmitir o aprendido a outros interessados, no mais das vezes com enormes dificuldades para pagar as contas; que haja quem plante jaqueiras, sabendo que apenas seus netos provarão das frutas; que haja, em suma, quem aceite a postergação da recompensa como a virtude que é. Sem isto, nada se constrói; Roma não foi feita em um dia, nem foi feita para ser dissipada pela mesma geração que a erigiu.

O colapso duma sociedade não significa o colapso individual de todos os seus membros, afinal. Ao contrário, até: é o colapso moral duma maioria que causa o colapso da sociedade a que pertence. Uma minoria sensata, todavia, é quem mantém acesa a chama da civilização até que outra se alevante. É este o papel que convido meu paciente leitor a desempenhar.

Agora peço sua licença; este velho aposentado resolveu aprender piano clássico e precisa sentar e estudar. Todos os dias.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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