Há quem diga que todas as histórias possíveis podem ser encontradas na Bíblia e em Shakespeare. Há ainda quem as conte e conclua haver apenas 12, ou quatro, ou mesmo uma só. Paralelamente a tais generalizações, há quem procure apenas isolar as tramas mais comuns – que por sua vez podem se tornar o centro de uma boa história ou ajudar a sustentá-la numa narrativa lateral menor. Uma classificação padronizada de histórias muito comumente empregada, especialmente por folcloristas, é o índice de narrativas folclóricas de Aarne-Thompson. Nele, a trama de número 444 refere-se ao príncipe encantado – ou oculto – que é desencantado e revela ou descobre quem realmente é.
Há várias possibilidades dentro deste cerne narrativo. Afinal, um príncipe é o filho de um rei, e ao mesmo tempo um rei em botão. Um príncipe encantado, que não se revela como príncipe, pode ser alguém que o pai perdeu e procura sem ver que está debaixo do seu nariz, bem como pode ser o escolhido por alguma profecia para liderar sua terra entregue ao caos pela falta de um rei. O primeiro exemplo foca no pai, enquanto o segundo o procura no filho. Outros, ainda, apresentam o príncipe como dotado de nobres qualidades devidas à sua condição, sendo por meio delas que ele é descoberto e desencantado.
As possibilidades são quase infinitas, mas o que não deixa de estar presente em todos os temas agrupados sob tal número pelos estudiosos é a “qualidade” do príncipe. Ele é, por definição, melhor que os demais, ou não seria príncipe. Em segundo lugar surge a questão do poder, que no caso de um príncipe deveria, igualmente por definição, estar nas mãos de um rei seu pai. Estando encantado o príncipe, todavia, tanto o rei quanto todos os demais podem não o perceber destinado ao poder. Em outras palavras, o encantamento oculta as duas qualidades ontológicas essenciais do príncipe: sua superioridade sobre o vulgo e sua filiação.
Um príncipe encantado, que não se revela como príncipe, pode ser alguém que o pai perdeu e procura sem ver que está debaixo do seu nariz, bem como pode ser o escolhido por alguma profecia para liderar sua terra entregue ao caos pela falta de um rei
Ora, sonhos e devaneios de superioridade são uma constante na natureza humana; rara é a pessoa realmente humilde. Raríssimo é quem não se perceba, ainda que no silêncio mais profundo do coração, como superior à média ou aos que o circundam. É contudo bem diferente a questão da filiação, mais ainda oculta ou encantada. Quem teve uma infância saudável, a despeito de Freud, não deseja matar o pai. Não sonha em ter outro pai, em ser filho d’algo, de alguém poderoso que se sonha ter por guia, por pai no lugar do pai. Essa busca perpétua e fantasiosa de um pai é o triste apanágio de quem não teve uma figura paterna amorosa e presente durante a infância. Ninguém tem mais forte tal devaneio que os pobres meninos de um orfanato, ainda que hoje não estejam necessariamente num orfanato os tantos órfãos de pai vivo. Para o órfão, a narrativa 444 é a máxima esperança. A solução de tudo que o aflige. Identificando-se com o príncipe, ele sonha com o dia em que será retirado dali e todos saberão que lá estava por engano. O dia em que haverá de se revelar forte, sábio e poderoso: um rei justo, não mais a figura indefesa que tudo assusta e ameaça.
O sucesso de uma ou de outra narrativa, assim, varia de acordo com as necessidades dos ouvintes. As formas que toma em cada tempo e lugar a fábula do príncipe finalmente desencantado acabam dizendo mais sobre quem a conta e ouve que sobre a própria narrativa. Afinal, este é um papel essencial da ficção. Não nos esqueçamos do famoso aforisma de Chesterton sobre ser evidente que dragões existam e necessários os contos de fadas para que saibamos que eles podem ser mortos. No caso, poderíamos dizer ser evidente que a orfandade existe e necessário que aprendamos que patinhos feios podem se tornar cisnes.
A orfandade pode tomar também outras dimensões; o ateísmo militante provavelmente é a mais famosa delas. Mas há também uma orfandade social, quando a anomia da decadência final faz com que uma sociedade não seja mais nem pai nem mãe de seus membros adultos. Quando não se tem certeza de nada, quando as águas são turvas e tudo parece esconder serpentes. Uma sociedade em tal estágio de decadência torna órfãos todos os seus membros, especialmente os que nasceram tarde demais para lembrar de quando as coisas não eram assim. As leituras que farão do tipo 444, destarte, terão mais e mais presente a questão da filiação, e mais dependente dela a questão das qualidades intrínsecas do príncipe encantado com quem seus membros se identifiquem.
Ora, uma das características mais marcantes destes tempos é a progressiva influência cultural americana sobre todas as demais culturas a vazante do Iluminismo, especialmente na popularização e globalização de um fabulário de origem americana e adotado mundo afora sem mudanças substanciais. Tomando aproximadamente uma forma popular da figura arquetípica do príncipe encantado em cada geração nos últimos cem anos, podemos traçar um quadro que certamente nos será útil à percepção dos estágios da decadência social em que estamos imersos.
Uma das primeiras formas do arquétipo a ser globalizada foi a de Tarzan – publicado pela primeira vez na década de 1910, transportado para os quadrinhos a partir da década de 1920 e para o cinema a partir da década de 1930. Estas apresentações sucessivas do mesmo personagem, aliás, demandando cada vez menos esforço do “consumidor cultural”, já podem ser percebidas como sinal da decadência da sociedade moderna. Afinal, falências e decadências costumam ocorrer gradualmente de início, acelerando-se ao ponto de parecerem súbitas apenas numa fase mais tardia.
Tarzan é rei, antes mesmo de ser príncipe: é o rei da selva, reinando sobre todas as feras que a habitam. É uma metáfora óbvia do que Kipling chamava de “fardo [colonial] do homem branco [nórdico]”. Percebendo-se como tremendamente superior a todos os outros povos, o único adulto num mundo de povos imaturos e infantis, o tal homem branco teria a obrigação de reinar sobre eles para os “educar” e evitar que fizessem besteiras. Assim seria também Tarzan entre os macacos, que o tinham por rei. Tendo tido contato com a herança de seus pais na casa tomada pela selva em que foi criado, contudo, ao entrar em contato com outros seres humanos ele se revela em toda a extensão de suas soberbas e principescas qualidades. Seu título nobiliárquico é de visconde, mas sua figura é de príncipe; seu contato com o homem branco é seu desencantamento, a revelação do que até então estivera oculto nas selvas. Ele não precisa de um pai e não o busca, por já o ter encontrado nos objetos deixados por seus ancestrais diretos na casa da selva. Tarzan é todo qualidades, é o príncipe pronto e perfeito, até mesmo no hábito do mando.
Tomando aproximadamente uma forma popular da figura arquetípica do príncipe encantado em cada geração nos últimos cem anos, podemos traçar um quadro que certamente nos será útil à percepção dos estágios da decadência social em que estamos imersos
A geração criada identificando-se com o Tarzan “facilitado” em quadrinhos e filmes é a que construiu o auge do poder econômico e militar dos EUA. Ao lado de Tarzan, aliás, chegou também em 1938 outra figura em muitos aspectos semelhante, outro príncipe de início oculto, pujante de qualidades e sem carência alguma de figura paterna: o Super-Homem. Até mesmo o seu “encantamento”, sua identidade secreta, era controlada por ele. Tal como Tarzan, era um gigante entre pigmeus, tendo sido criado por eles sem jamais deixar de ter o gozo das qualidades determinadas por sua ascendência. O sonho de ser Tarzan ou o Super-Homem não tinha conflito algum com a situação de filho de bons pais criado num lar amoroso. O leitor não estava em busca de um pai, pois já o tinha, e por isto mesmo não esperava que Tarzan ou o Super-Homem o buscassem. Sua identificação era baseada nas qualidades do príncipe, a quem o desvelamento nada acrescentava. Ao contrário, até: era o príncipe que vinha em socorro do mundo, tornando-o um lugar melhor com sua presença.
Já os filhos da geração que cresceu se identificando com tais príncipes tenderam para o lado oposto. Foi a geração dos ditos “boomers”, filhos da bolha demográfica do pós-guerra e artífices da explosão final da Modernidade. Seu príncipe nada acrescentava ao mundo, e recusava-se a aceitar qualquer responsabilidade. Era um príncipe encantado deliciado com seu encantamento, e nem um pouco disposto a aceitar o fardo decorrente das obrigações impostas por sua nobreza. Lançado em 1953, o desenho animado Peter Pan forneceu àquela geração – provavelmente a mais mimada da história, nascida num momento de máxima prosperidade material e miséria espiritual – um modelo que veio bem a calhar mais tarde. Quando aquela geração chegou à idade em que deveria assumir as responsabilidades da vida adulta, preferiu lançar a Revolução Sexual – que com algum auxílio da indústria farmacêutica retirou até mesmo do sexo o sentido de responsabilidade – e o movimento hippie, a rebeldia sem causa como modo de vida, e tudo o mais com que acabou de enterrar aquela sociedade em cujo auge foi criada. Esta é a geração que está hoje no poder, sempre tentando negar que atos gerem consequências, sempre tentando calar quem se lhe oponha.
Bem diverso foi o príncipe da geração de seus filhos, frequentemente criada em lares desfeitos ou filha de mães solteiras, “vitimadas” pela sempre presente possibilidade de ineficácia da contracepção química. Ao contrário de Peter Pan, que não tinha pai nem queria tê-lo ou sê-lo, Luke Skywalker, o herói de Guerra nas Estrelas, filme de 1977, tinha pais até demais. O primeiro era “normal”, correspondendo ao aspecto da fábula 444 em que o príncipe é criado por plebeus. O segundo, Obi-Wan Kenobi, que lhe revela sua condição principesca, era também uma espécie de “príncipe oculto”. Enquanto Luke era a alvorada, Obi-Wan era um crepúsculo. Antes famoso guerreiro, retirou-se derrotado para viver em paz. Seria possível vê-lo como um príncipe que escolheu voltar ao encantamento, esconder suas qualidades e, de certa forma, negar-se a desempenhar seu papel de direito. Ao despertar o jovem Luke, todavia, ele como que lhe passa a condição principesca que não conseguiu pessoalmente levar a cabo ao tornar-se seu mentor. Desse novo pai já superior ao normal, mas encontrado fora de casa, Luke passa às mãos (ou antes às orelhas) de um outro cuja estranheza parece ser absoluta: Yoda, o estranho e poderoso gnomo que desvenda e traz à luz qualidades principescas com que nem mesmo o próprio Luke ousara sonhar. A estranhez, contudo, não tinha ali seu ponto máximo. Ao fim da saga inicial (deixo de lado os filmes tardios, mesmo por não serem parte da formação da geração de que trato), Luke descobre que seu pai verdadeiro é Darth Vader, o maior inimigo de tudo aquilo que aprendera a amar. Não um rei oculto, um salvador esperado, mas, ao contrário, o destruidor do reino.
Talvez o sucesso de Luke como modelo para a geração de que ora trato venha, até, da dificuldade de ser filho de quem se percebia Peter Pan. Primeiro se tem a aparente normalidade doméstica – pois os filhos de Peter Pans não têm como saber que é possível haver famílias estruturadas, e percebem aquilo como normal. Depois se descobre, lá fora, a possibilidade de encontrar um novo modelo de paternidade; um pai/mentor de extrema dignidade e evidente nobreza, com um baú cheio de coisas misteriosas e fascinantes. Mas não é ali que acaba a busca de um pai, necessidade absoluta para quem foi gerado e criado por um Peter Pan sem senso algum de responsabilidade, para quem encontrou à porta de casa os escombros de uma sociedade dinamitada pela geração que o gerou. A estranheza recrudesce com o novo pai/mentor, cuja dignidade é oculta sob uma aparência ridícula, mas cuja força é extraordinária. Tendo tido três pais, mas sem saber a verdade sobre a própria origem, quando Luke assume a responsabilidade da posição de rei exilado vem a cacetada final, a descoberta de que ele na verdade não tem como escapar da orfandade, com a revelação de que seu pai verdadeiro, definitivo, é Darth Vader. Também conhecido como Peter Pan...
A busca ativa pela geração de Lukes de uma compreensão real do modelo familiar que lhes havia sido negado pela revolução de seus pais talvez tenha feito o pêndulo pender na direção oposta. A previsível busca de um simulacro de ordem burguesa por parte dos filhos de revolucionários preparou o terreno para que seus próprios filhos encontrassem um modelo de príncipe cuja história é em muito semelhante à do de seus pais. Afinal, a história de Harry Potter, lançado em 1997, é praticamente a mesma de Luke Skywalker, numa medida de união de gerações maior que as de todas as anteriores. Mas há diferenças gritantes, que talvez possam ser apontadas como devidas mais à anomia onipresente da porta de casa para fora, à orfandade social, que à orfandade pessoal do órfão de pais vivos.
A primeira, e maior, e mais gritante, é a percepção negativa da condição de “ocultamento” pré-Hogwarts. Enquanto a vida de Luke em Tatooine era apenas entediante, Harry vive um pesadelo sob o tacão maldoso dos tios que o criam. Tais tios, porém, não estão num vácuo: eles são representantes extremamente ciosos da manutenção de uma dada normalidade burguesa que é a condição dos “trouxas” (termo bastante negativo, quando se pensa que ele se aplica a toda a sociedade!). Pior ainda: eles o fazem sabendo da existência e riqueza de possibilidades da magia dos pais de Harry, de quem sentem vergonha, e procuram ativamente afastá-lo daquilo que é sua herança principesca.
A orfandade social de Harry Potter, que o leva a encontrar-se apenas quando se retira da sociedade “trouxa” para um outro mundo paralelo de magia, acarreta uma condenação no atacado de toda a sociedade, ausente em todas as versões anteriores desta fábula
Ou seja: o primeiro obstáculo que Harry encontra é muito maior que os de Luke. Sua condição inicial enquanto “encantado”, ou oculto, é muito pior. Isto faz com que a descoberta de suas qualidades seja para ele ao mesmo tempo uma estupenda libertação, em que descobre que o horror que tinha por normalidade era de uma certa forma ilusório. A libertação, porém, não é apenas dos tios malvados, sim de toda a sociedade “trouxa”, de que os tios eram membros entusiastas. Ela passa a pegar o trem que sai de uma plataforma inacessível à ralé “trouxa”, o carro da família dos amigos voa, a escola é um castelo assombrado, e por aí vai. Ao ser desencantado (na terminologia empregada até aqui, não no sentido da mágica de Hogwarts), ele não apenas descobre em si as qualidades principescas que desconhecia, mas adentra um mundo superior, uma condição superior, de onde pode olhar com desprezo para toda a sociedade “trouxa” opressora. A identificação com tal príncipe da criança cujo imaginário ele forma, assim, vai além da descoberta de qualidades: é um verdadeiro sonho de libertação, que nega não apenas o ambiente doméstico, mas toda a sociedade ao redor. Em contraste com Luke, do mesmo modo, Harry não busca ativamente um pai. Ao descobrir-se príncipe ele descobre também os próprios pais com pessoas admiráveis e de certa forma presentes; está totalmente ausente a relação conflituosa de Luke com seus pais sucessivos. Ainda, as figuras masculinas de Hogwarts desempenham papéis quase complementares de mentor paterno, com Hagrid, Dumbledore e Severo Snape acabando sempre por revelar-se bons e protetores. O fato de Harry chegar a Hogwarts ainda criança também acaba, de um certo modo, impedindo grandes problemas com figuras paternas; no fim das contas, é como se o príncipe fosse desencantado a tempo para ser educado no castelo!
A orfandade social de Harry, que o leva a encontrar-se apenas quando se retira da sociedade “trouxa” para um outro mundo paralelo de magia, entretanto, acarreta uma condenação no atacado de toda a sociedade, ausente em todas as versões anteriores desta fábula. Nem mesmo Peter Pan chega a tal ponto, na medida em que, em seu supremo egoísmo e imaturidade, ele só percebe a si mesmo. O que ele condena não é a sociedade, mas o próprio avanço, maturidade e aprimoramento que, por si, o levariam a participar frutuosamente dela. Luke vê-se numa luta política de que nada sabia antes de desencantar; ao contrário, a normalidade da fazendola em Tatooine é de certa forma o que ele busca defender. Tanto Tarzan quanto o Super-Homem colocam suas qualidades principescas a serviço da sociedade (anglo-saxã, no caso de Tarzan, em contraposição às colônias representadas pela selva), em que têm um lugar certo e inegável. O sentimento de alienação absoluta, assim, só surge em Harry Potter.
Só agora estão começando a nascer os filhos (provavelmente únicos) da geração que se viu em Harry Potter. Ainda não há, ou ainda não foi desencantado, o príncipe dessa geração
É coisa assaz compreensível, diga-se de passagem, na medida em que a ascensão final da geração de Peter Pan ao poder é mais ou menos simultânea ao surgimento de Harry. O que havia transcorrido como conflito intrafamiliar na geração que se espelhava em Luke e sua complicadíssima relação com seus tantos pais passa, em Harry, a ser conflito social. A instabilidade geral causada por uma infinidade de Peter Pans impondo seus delírios anômicos torna a sociedade incompreensível, como aliás comprova a tentativa de “cancelamento” da própria autora de Harry Potter ao levantar a voz em defesa de algumas vítimas de loucuras recentes de projetos de poder imaturos e inconsequentes.
Como uma das consequências da dissolução social em curso cada vez mais acelerado é a postergação absurda dos matrimônios até vários anos depois do fim do auge da fertilidade feminina, só agora estão começando a nascer os filhos (provavelmente únicos) da geração que se viu em Harry Potter. Ainda não há, ou ainda não foi desencantado, o príncipe dessa geração. Na verdade, dada a atomização dos meios de comunicação na pós-modernidade, é provável que não venha a surgir um príncipe único para toda a geração; alguns o encontrarão num personagem japonês, outros em Bollywood, e outros ainda em algum influenciador digital. Dificilmente deixará de estar presente, contudo, a tristeza da orfandade pessoal e social, que – como vimos – foi-se agravando mais e mais a cada geração.