Na dita Guerra Fria, o mundo se via constantemente à beira de uma guerra atômica. Dada a potência dessas armas asquerosas, Einstein famosamente teria dito que na guerra seguinte as armas seriam paus e pedras. Uma quantidade relativamente grande de explosões atômicas levantaria poeira suficiente para escurecer o Sol mundo afora por um período longo o bastante para matar de fome mesmo quem estivesse distante das detonações. Naquele tempo, contudo, havia alguns mecanismos para garantir que a precaríssima paz entre as grandes potências não fosse quebrada sem querer: os famosos “telefones vermelhos” ligando Washington e Moscou, além de outros mecanismos de aviso e comunicação.
Já hoje estamos ainda mais próximos da destruição atômica, e esses mecanismos não existem mais. A chance de algum incidentezinho besta levar à destruição do planeta nunca foi tão grande. Sabemos hoje que apenas a sensatez de um comandante de submarino nos mares cubanos durante a Crise dos Mísseis impediu o apocalipse nuclear; hoje dependemos ainda mais de tais arroubos de sensatez, capazes de levar à desobediência pontual mesmo aqueles cuja carreira depende do hábito da obediência incondicional.
O pior é que a coisa é absolutamente unilateral. Enquanto antes o que se tinha era uma disputa ideológica binária entre um império capitalista e um império comunista, hoje temos provocações gratuitas de um império em decadência terminal que dificilmente se poderia ainda dizer capitalista ou liberal. Estados democráticos e liberais não invadem os palácios de ex-presidentes nem prendem seus apoiadores, afinal.
Curiosamente, a origem ideológica do pessoal que finalmente, no quadro de uma presidência fraquíssima e contestada, conseguiu o monopólio do poder nos EUA está na extrema-esquerda. O dito neoconservadorismo, uma ideologia que – como o fascismo – faz da guerra a função primeira do Estado, vem da “conversão” de ideólogos trotskistas à ideia de exportar mundo afora não a Revolução Russa, mas a Americana. Muitos deles, como aliás é mais a regra que a exceção na extrema-esquerda americana, descendem de judeus fugidos dos territórios dominados pela Rússia. Os horrores perpetrados pelo império russo contra a população judaica de seus territórios garantiram contra este o ódio permanente de suas vítimas. Coisa semelhante, diga-se de passagem, ao ódio votado à Rússia pelas vítimas europeias orientais do império soviético.
A chance de algum incidentezinho besta levar à destruição do planeta nunca foi tão grande
O fato é que nas agitações comunistas do século passado, inclusive e especialmente a Revolução Bolchevique que derrubou o czar Nicolau e deu início à União Soviética, a presença de membros de grupos étnico-culturais oprimidos pela Rússia era enorme. Lênin foi o único governante soviético russo; Trótski era judeu, Stálin era georgiano e os governantes soviéticos seguintes, ucranianos. Russos são imperialistas odientos.
Tendo Stálin vencido a batalha pela herança leninista, o trotskismo conseguiu espaço para crescer no Novo Mundo, vindo a tornar-se a principal corrente da extrema-esquerda marxista nos EUA, tolerada até mesmo por sua inimizade para com a União Soviética stalinista. Pois os pensadores centrais da corrente ultrabelicista neoconservadora que ora está com a faca e o queijo na mão nos EUA vieram exatamente desse grupo, o que inclusive ajuda a entender o pouco apreço que demonstram, na política interna, pelos direitos civis dos opositores.
Na visão neoconservadora, os Estados Unidos não seriam sequer remotamente semelhantes aos demais países. Pelo contrário; os EUA seriam o Estado Excepcional, dotado de prerrogativas únicas, e a eles competiria decidir tudo e a tudo controlar. No âmbito da Guerra Fria, essa “excepcionalidade” tinha um indesejado contraponto na odiada União Soviética. Fazia, então, algum sentido que os EUA, por seu poderio financeiro e militar, fossem o país mais importante do dito Mundo Livre. Finda a Guerra Fria, porém, em vez de passar a perceber-se como um país entre os outros, a orientação neoconservadora foi no sentido oposto. Os EUA deveriam dominar o mundo, tornar-se o polo único de poder global. A fonte da legitimidade e da (limitada) soberania de qualquer outro Estado.
O problema, como apontou Garrincha, é que faltou combinar com os russos. Logo após a derrocada da ditadura soviética, os EUA mandaram “consultores” e negociantes para, em tese, orientar a inserção da Rússia no comércio global. Na verdade, o que foi feito foi um desmanche vil de todas as estruturas industriais e sociais, levando a população a uma tremenda queda de nível de vida e enriquecendo tremendamente uns poucos, em sua maioria gente oriunda do pior do regime anterior. A população russa, com razão, sentiu-se traída. Vem daí, em grande medida, o enorme apoio popular a Putin, que foi quem conseguiu cortar as asinhas de muitos dos novos oligarcas e não apenas devolver à população russa os confortos materiais de que dispunham antes, mas aumentar-lhe tais confortos, reindustrializar o país e inseri-lo no sistema internacional de comércio de maneira lucrativa, não como a colônia de exploração que os EUA queriam que ele se tornasse.
Enquanto isso os EUA fizeram o oposto, desindustrializando o país e transferindo para o exterior (especialmente para a China) praticamente todo o parque fabril nacional. Hoje praticamente só são fabricados nos EUA equipamentos de uso militar; até mesmo para produtos necessários para a segurança sanitária nacional, como máscaras e remédios, os EUA revelaram-se dependentes da China na crise da Covid. A economia americana passou a depender quase exclusivamente do valor fiduciário do dólar como moeda de troca internacional, vivendo do “extravagante privilégio” de poder imprimir dinheiro e exportar a inflação, sem precisar produzir bens materiais. A riqueza foi substituída pela finança.
Quem enriqueceu de verdade com isso foi a China, que sabiamente deixou para trás a ortodoxia marxista e conseguiu criar uma política própria de desenvolvimento que combina elementos do capitalismo com um forte aspecto comunitarista (não comunista) de origem confuciana. A superioridade industrial que fez primeiro da Inglaterra e depois dos EUA um superpoder hoje é um campo em que a China simplesmente não encontra competidores. O mundo inteiro importa da China.
Estando uma ao lado da outra, sem sequer haver barreiras fronteiriças físicas, como cadeias de montanhas ou mares, nada mais natural que a Rússia (rica em matérias-primas) e a China (rica em indústrias que requerem tais matérias-primas) aproximassem-se mais e mais.
Para os ideólogos neoconservadores americanos, contudo, tanto essa aproximação quanto a outra, igualmente sensata, entre a Europa ainda industrial e a Rússia exportadora de insumos energéticos, não podem ser permitidas. Mesmo sendo uma relação que beneficiaria os EUA enquanto os pagamentos fossem feitos em dólares, o simples fato de haver relações diretas entre a odiada Rússia e os subordinados europeus dos EUA já os agasta.
Finda a Guerra Fria, em vez de passar a perceber-se como um país entre os outros, o neoconservadorismo americano foi no sentido oposto. Os EUA deveriam dominar o mundo, tornar-se o polo único de poder global
Para sabotar o acordo energético entre a Europa e a Rússia, os neoconservadores americanos tentaram de tudo, chegando até a ameaçar destruir fisicamente o gasoduto Nordstream 2, entre a Rússia e a Alemanha, já pronto, que acabaria com os problemas de geração de energia na Europa. Finalmente conseguiram – ao menos por ora – sabotar a relação ao provocar a guerra na Ucrânia. Mesmo após seu início, a Rússia e a Ucrânia estiveram perto de chegar a um acordo que evitaria o pior. Contudo, Boris Johnson, então primeiro-ministro do Reino Unido, foi a Kiev levar ao governo ucraniano a notícia do veto americano às negociações de paz. O resultado está nas sepulturas coletivas de ucranianos inocentes.
Daí a Europa estar à beira da pior crise energética da história, especialmente porque ao corte do gás russo decorrente das sanções impostas pelos EUA e (por ordem americana) pela União Europeia soma-se agora uma horrível seca, que impede tanto o tráfego hidroviário das barcas de carvão (russo, comprado com intermediação turca), que poderia servir de combustível para geração de energia, quanto o funcionamento pleno das usinas nucleares francesas, que dependem da água fluvial para resfriamento. O inverno se aproxima, e com ele a necessidade de aquecimento das casas. Com o preço já altíssimo do combustível, decorrente da guerra, muitos pobres terão de escolher entre passar fome ou frio, e os países terão de escolher entre manter a energia elétrica das residências ou das indústrias.
Para piorar a situação, as sanções aumentaram tanto o preço dos combustíveis no mercado internacional que a Rússia acabou saindo ganhando. Sua exportação de combustíveis diminuiu um pouco (não muito, por ter sido possível direcionar parte da produção para importadores orientais, como a Índia e a China, além de aumentar a cota da Turquia, que vem servindo de intermediário das necessidades europeias), mas os lucros da venda de hidrocarbonetos, mesmo reduzida, aumentaram mais de três vezes do mesmo período no ano passado até os últimos meses.
Mais ainda: as sanções à Rússia só cortaram laços entre a Rússia e os subordinados americanos na Europa e na Ásia, não afetando as relações da Rússia com a vasta maioria dos demais países. Não foi a Rússia, mas os EUA e seus subordinados que sofreram consequências danosas reais. O Brasil mesmo aumentou suas ligações comerciais com a Rússia aproveitando o rearranjo comercial internacional, para grande benefício nosso. Os projetos chineses e sino-russos de ligação comercial global e infraestrutura na Eurásia aceleraram seu avanço enormemente, do mesmo modo, devido ao fato de a tentativa de isolamento da Rússia ter acabado se tornando um isolamento de fato dos EUA e da Europa Ocidental em relação ao resto do mundo. Isto, por sua vez, está fazendo surgir alternativas ao dólar no comércio internacional, enfraquecendo mais ainda a posição americana.
Mas o horror deslanchado na Ucrânia pela loucura dos neoconservadores americanos parece não lhes bastar, mesmo já aumentando exponencialmente o perigo de uma crise nuclear. Indo um passo além dos já desnecessariamente provocativos passeios de navios militares americanos pelo estreito que separa a ilha de Formosa da China continental e potencializando as gafes do presidente americano, que prometeu auxílio militar a Taipei apenas para ser desautorizado por seus supostos subordinados, houve agora a visita da presidente da Câmara dos Deputados americana a Formosa. A China havia avisado inúmeras vezes que tal ato seria uma violação de um limite seu muito claro, algo intolerável. Mesmo assim, a provocação foi feita. É o que chamam “tática do salame”, em que se vai homeopaticamente, “fatia por fatia”, aumentando o número e a gravidade das provocações, para que, quando uma reação for finalmente provocada, possa ser dito que ela foi exagerada: “isso tudo por conta duma fatiazinha assim fina?”...
A resposta chinesa mal começou. Logo após a provocação americana, um exercício militar com munição real ensaiou uma anexação pela força de Formosa. Esta foi a parte, digamos, de espetáculo. Além disso, várias exportações e importações entre a China continental e Formosa foram cortadas e, muito mais importante, uma série de ações bilaterais sino-americanas foram interrompidas. Dentre estas, as mais importantes são a interrupção do mecanismo de conversas rápidas e imediatas entre as forças armadas de ambos os países, crucial devido ao gosto americano por ações provocativas em águas tidas pelos chineses como territoriais, e a colaboração no combate ao tráfico de entorpecentes.
Os EUA estão passando por uma grave crise de vício em opioides. Dentre estes, o mais comum hoje em dia é o fortíssimo fentanil. Trata-se de um analgésico fortíssimo, comumente usado na medicina em forma de emplastros que mantêm até mesmo um canceroso terminal sem dor por dias. Ora, a China é o maior produtor de fentanil do mundo, e – em função do tal acordo – quando a crise americana de abuso de opioides atingiu proporções consideráveis ela proibiu a exportação de fentanil para a América do Norte. O fentanil vendido nos EUA hoje é majoritariamente produzido no México a partir de precursores químicos de uso mais amplo, cuja venda não foi restringida pela China. Tendo sido jogado no lixo o acordo bilateral de combate ao tráfico de drogas, é extremamente possível que o fentanil chinês volte a inundar o mercado americano de drogas ilegais.
Mas mesmo a visita da deputada não foi provocação bastante para os neoconservadores nos porões do poder americano: os EUA estão prestes a começar exercícios miliares conjuntos com a Índia junto à altíssima área, na região dos Himalaias, em que a China e a Índia disputam territórios. Dentro do quadro geral, é impossível que os chineses não percebam também isto como provocação deliberada. Ainda por cima, justamente por não haver um acordo acerca de onde exatamente se situa a fronteira, a chance de os exercícios entrarem em área tida pelos chineses como sua é enorme.
As ações americanas, além de colocarem em risco até mesmo a continuação da vida humana no planeta, estão cada vez mais alijando os EUA do sistema internacional de comércio e diminuindo na prática a sua influência pelo mundo
Tudo isso cria, aumenta e extrapola a chance de um conflito nuclear. Tanto a China quanto a Rússia (mas não os EUA) dispõem hoje de mísseis ultrassônicos atômicos e convencionais capazes de destruir os tradicionais instrumentos americanos de projeção de força, os porta-aviões, sem qualquer possibilidade de defesa. Além, claro, de atingir alvos civis nos EUA continentais, o que garantiria a generalização da guerra.
As ações americanas, além de colocarem em risco até mesmo a continuação da vida humana no planeta, estão cada vez mais alijando os EUA do sistema internacional de comércio e diminuindo na prática a sua influência pelo mundo. O Irã, em grande medida por ser um dos “pioneiros” da sobrevivência a sanções americanas, está aumentando enormemente sua importância política e econômica na região, até por imbricar-se cada vez mais no sistema de infraestrutura comercial da Eurásia. A África está se tornando colônia chinesa, e os sistemas de comércio sino-russos estão crescendo ao ponto de a organização dos Brics, de que o Brasil também é parte fundadora, estar recebendo pedidos de adesão vindos de todas as partes do mundo.
O prejuízo americano advindo do domínio neoconservador não se restringe, todavia, ao campo internacional. A erosão dos direitos civis dentro do território americano tem a mesma origem que o aumento do risco de confronto atômico global. O ex-presidente Trump tentou, debalde, diminuir o poder que essas facções neoconservadoras têm no governo americano, e até por isso mesmo foi vitimado por elas. E continua sendo, como a invasão do seu palácio em Palm Beach, com direito até mesmo a ameaças de indiciamento numa lei que prevê a pena de morte(!), deixa claríssimo. Do mesmo modo, a transformação do patético passeio de trumpistas pelo Capitólio na Epifania do ano passado em equivalente americano do incêndio do Reichstag que deu a Hitler a desculpa que queria para tornar-se ditador deve causar preocupação entre os muitos americanos que dão valor ao sistema liberal tradicional naquele país.
A questão é, no momento, como fazer para tirar os loucos da direção do hospício. Os delírios belicistas (e neofascistas) dos neoconservadores não ajudam ninguém, nem mesmo os próprios. A guerra nuclear, capaz de matar no médio e longo prazo até mesmo os sortudos que moramos longe dos alvos dos mísseis, é morte garantida para quem está nas áreas diretamente atingidas. A posição americana no mundo, que dirá a manutenção do sistema que possibilita aos EUA importar sem exportar, também é de interesse direto de toda a população americana; sem isso, os EUA perdem qualquer possibilidade de sobrevivência como país. E, finalmente, fazer dos EUA um Estado fascista representa a morte do sonho americano.
Como, contudo, tirar do poder os que lá se encastelaram? Serão eles, mais uma vez, quem vai contar os votos nas eleições. Serão ainda eles a decidir quais ordens presidenciais serão ou não obedecidas. Os EUA estão numa tremenda sinuca de bico; o grosso da população americana, tradicionalmente ignorante das ações de seu governo no exterior, descobre-se agora subitamente refém de um grupelho de ex-trotskistas que está prestes a jogar no lixo tudo o que os EUA são, foram e representam. Será que ela aguentará calada? A possibilidade de insurreições armadas, e mesmo de outra guerra civil entre nossos irmãos do Norte, é cada vez maior.
Que Deus tenha piedade dos inocentes.