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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Quando acabar a quarentena

O porta-aviões USS Abraham Lincoln (e), o destróier HMS Defender e o destróier USS Farragut navegam pelo Estreito de Ormuz, em 19 de novembro de 2019. (Foto: AFP)

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Quem consegue acompanhar – entre as miríades de notícias, notícias falsas, factoides e pseudonotícias sobre o coronga – as movimentações de tropas e navios de guerra tem ficado assustado por estes dias. Os americanos mandaram dezenas de milhares de soldados para a Europa. A Polônia ressuscitou a conscrição em massa. Os ingleses e os russos estão se estranhando ao largo da costa venezuelana. Isto ocorre por uma razão simples: a incerteza. Ninguém sabe nem tem como saber o que há de acontecer com o mundo em termos de economia, política, alianças e tudo o mais que compõe o pouco que há de estabilidade no mundo pós-moderno.

A situação já estava “esquisita”, fluida e vaga, antes da súbita interrupção do comércio internacional. Com ela, os Estados ganharam uma espécie de cessar-fogo temporário, em que todos os lados aproveitam para se armar mais ainda para quando recomeçarem os conflitos. Como escreveu Henry Kissinger, “[o] mito fundamental do governo moderno [...] é o duma cidade murada”. Em outras palavras, ninguém entra e ninguém sai. É mais ou menos isso o que a prefeita doida da cidade mais próxima de onde moro fez, fechando as estradas de acesso ao município, com a exceção de duas, em que postou guardas com poder de decisão sobre quem pode ou não entrar. A regra é não poder, e poucas são as exceções; quem disser que vai ao médico, por exemplo, terá de esperar os guardas confirmarem com o doutor a consulta marcada. Loucura, loucura, loucura.

E os Estados-nação estão fazendo a mesma coisa; na Europa, até mesmo as movimentações internas do espaço Schengen (em que não havia qualquer controle de fronteiras) foram suspensas. É cada um por si e Deus por todos, e os organismos supranacionais, como a União Europeia, vêm se revelando não apenas incompetentes, mas desnecessários, quiçá danosos. É extremamente improvável que a Itália, por exemplo, que foi afetada durissimamente pelo vírus chinês e só teve alívio da Rússia e da própria China, continue a ver com bons olhos seu pertencimento à UE. Se antes a ideia de um “Italexit”, à moda do “Brexit” britânico, era a plataforma apenas de alguns poucos radicais de extrema-direita, após a crise serão poucos os que terão coragem de defender a permanência da Itália em uma organização que, na hora do vamos ver, a deixou na mão.

É cada um por si e Deus por todos, e os organismos supranacionais, como a União Europeia, vêm se revelando não apenas incompetentes, mas desnecessários, quiçá danosos

Os EUA, enquanto isso, entregam-se sem vergonha alguma à mais tremenda rapinagem, roubando e sequestrando material médico (máscaras, respiradores, o que for) destinados a outros países, demolindo de vez a fantasia vendida por Hollywood de um país bonzinho, que ajuda a todos. A Rússia e a China cujos hábitos alimentares causaram a presente crise, por seu lado, estão fazendo uma política de boa vizinhança global, mandando aviões e mais aviões com o mesmo tipo de produtos que os EUA estão sequestrando para uso próprio. Um deles, inclusive, foi para os EUA.

Israel, por sua vez, continua bombardeando a Síria, via espaço aéreo libanês. A Índia e o Paquistão continuam bufando e fazendo cara feia um para o outro. A África, onde o caos é a regra, vem se tornando cada vez mais propriedade chinesa.

Cada ator global vem se posicionando cuidadosamente para quaisquer situações que venham a ocorrer, das mais tresloucadas (invasão russa da Europa Ocidental, como se temia na Guerra Fria) às mais realmente temíveis, como um recrudescimento da ação turca (secundada pelos salafistas de estimação dos EUA) contra a minoria curda em seu território, na Síria e naquela bagunça que ora atende por Iraque. É isso que explica os movimentos de tropas e navios de guerra para lá e para cá. Ainda que o avanço da tecnologia de mísseis russa e chinesa tenha feito com que as marinhas de guerra ocidentais (a começar pela americana, centrada em porta-aviões excelentes para lutar a Segunda Guerra de novo) só possam ter uso contra pseudo-Estados falidos, como a Venezuela e o “quintal” americano no Oriente Médio, contra esses alvos um barquinho que os chineses afundariam em 15 minutos ainda é algo temível.

Ou seja: por um lado a coisa é péssima, porque, se os Estados ressuscitaram os planos de contingência que tinham guardados em cofres até agora, trata-se de um passo na direção de usá-los. Por outro, todavia, são preocupações relativamente compreensíveis em relação ao absoluto desconhecido que é a ordem geopolítica que nascerá desta confusão. Quais mercados serão fechados e quais abertos à China, por exemplo? Só Deus sabe. De uma certa maneira, é bem interessante perceber, enquanto estudioso da história, estes estertores finais do Estado nacional, esse absurdo decorrente da péssima “solução” dada às guerras de religião europeias do início da Idade Moderna. Eles são – ou foram – uma fantasia criminosa, responsável por mais assassinatos de inocentes que qualquer peste do passado. As miríades de nacionalidades reais sacrificadas no altar da falsa nacionalidade dos Estados nascentes, de línguas e dialetos desaparecidos, e mesmo de vítimas de genocídios e massacres cometidos em nome do novidadoso Estado nacional (a Vendeia é um prelúdio entre muitos do horror nazista e comunista) jamais se levantarão de seus túmulos. Era uma situação perfeitamente artificial, que não tinha como durar. Seus 200 anos de “validade”, conseguidos pela força, foram até mais do que se poderia esperar.

Mas, como apontou o Kissinger, na hora em que a coisa aperta são os Estados nacionais que se veem de uma certa maneira fortalecidos. Este fortalecimento, todavia, não é algo com que se possa contar no longo prazo. Ao contrário, até: é exatamente por serem neste momento gastas as forças necessárias para a manutenção dessas “cidades muradas” que se sabe que não sobrarão forças suficientes para as muitas outras coisas que se farão necessárias. E mais ainda: é perfeitamente previsível que, nos Estados nacionais em que a modernidade foi introjetada pela população (o Ocidente, basicamente: Europa Ocidental, EUA, Canadá e Oceania), a única solução de manutenção de alguma semelhança de ordem social virá pela tirania. E, mais ainda, tirania hipertecnológica, à moda chinesa. Vários destes países já estão usando meios de controle da população que seriam impensáveis poucos meses atrás, como rastreamento de telefones (sim, em Pernambuco isso também está sendo feito, mas é mera paródia tropicalista do que é feito a sério no Ocidente rico), drones com alto-falantes mandando as pessoas trancar-se em casa e dedurando os que saem etc.

A Inglaterra, ironicamente a pioneira das liberdades civis que a Modernidade veio a espalhar pelo Ocidente, rasgou a Magna Carta e cobriu-se de câmeras de circuito fechado já faz tempo. E agora a tendência é que o controle aumente, pela simples razão de não haver outro meio de manter a ordem social quando a ficção que é o contrato social desaparece. E este contrato já desapareceu faz tempo, como se pode perceber pelo fato de haver, só na França, 751 zones sensibles, eufemismo para “lugar em que a polícia só entra de caveirão e arma na mão”. Ou de, na mesma Inglaterra das câmeras, haver gangues de jovens descendentes de paquistaneses que “adotam” mocinhas inglesas (que eles, por serem muçulmanos, consideram prostitutas por definição), viciam-nas em drogas e as alugam por hora para depravados, enquanto a polícia nada faz para não ser acusada de “islamofobia”. Isso sem contar com os “casamentos” polígamos (mais de 20 mil, em estimativa de 2011), claro.

Que a Europa já acabou é de conhecimento comum. O que muita gente prefere fingir que não existe, todavia, é o fim dos EUA. Afinal, dentre os Estados modernos, este é ao mesmo tempo o mais estranho – por não ser exatamente um Estado nacional (no sentido de não ter um mito de origem pseudogenético; “nacionalidade”, afinal, é uma combinação de xenofobia e ilusão genética) – e o mais epitomante de todos os demais, sendo moderno até a medula; afinal, lá a ideia de nacionalidade legal vem antes mesmo de um apreço a uma ascendência teoricamente comum. Ao longo dos seus dois séculos de existência, todavia, a abertura da nacionalidade a enormes massas de pessoas oriundas de culturas diversas daquele miolinho branco, anglo-saxão e protestante fez com que hoje se tenha, na verdade, várias nações dividindo o mesmo território. Primeiro os irlandeses viraram “brancos”, depois os italianos, depois os latino-americanos, depois os orientais, e por aí vai, diluindo a base étnica no início considerada parte integrante da americanidade.

Que a Europa já acabou é de conhecimento comum. O que muita gente prefere fingir que não existe, todavia, é o fim dos EUA

Os hoje ditos pretos e brancos podem ser distinguidos pela roupa, pelo sotaque, pelo gosto musical; os próprios descendentes dos colonos anglo-saxões originais dividem-se em duas culturas tão radicalmente opostas (que, ainda por cima, a moralidade de base kantiana impede que sequer dialoguem) que seria difícil achar algum ponto em comum; os descendentes de latino-americanos por todo o sul não se misturam com nenhuma das nações de facto apontadas acima; os descendentes de orientais que – após ter sido levantada a proibição legal, de base racialista, que vigorou desde que os culés chineses deixaram de ser necessários por ter sido completada a conexão ferroviária entre a costa atlântica e a do Pacífico – formam uma minoria considerável no oeste, por sua vez, dificilmente vêm a casar-se com membros dos outros grupos, ainda que não formem massa crítica bastante para separar-se de todo dos brancos, de quem mais se aproximam.

Como segurar esse povo todo, na ausência de um mito de origem, de uma ordem moderna (logo inventada e artificial) que todos compartilhem, que tenha sido introjetada ao ponto de ser tomada pela própria realidade dos fatos? O único jeito é pela força. E a maior força do mundo é composta pelas Forças Armadas americanas, às quais juntam-se milhares de corporações paramilitares policiais. E as Forças Armadas não têm interesse algum na partição dos EUA em vários paisezinhos; seria o seu fim. Mesmo vivendo de ilusões e do valor atual do dólar como referência, ainda que impresso em quantidades monstruosas (mais ainda agora, em tempos de crise), apenas a gigantesca economia americana poderia bancar Forças Armadas tão absurdamente avantajadas. Não nos esqueçamos que os gastos militares dos EUA são dez vezes maiores que os dos nove próximos países somados. Um país composto por apenas alguns dos Estados ora unidos não teria a capacidade de manter nem sequer uma pequena parte de tamanha capacidade militar.

O resultado é que a chance de os EUA atuais deslizarem, pouco a pouco ou subitamente, para uma ditadura totalitária à moda chinesa só fazem aumentar. As tensões “raciais” (na verdade, como apontei mais cedo, nacionais) não diminuem, nem há no horizonte de possibilidades algo que possa fazê-las diminuir. As tensões entre as costas e o interior (“a terra sobrevoada”, que votou predominantemente em Trump e cuja cultura pouco tem a ver com a das elites “progressistas” das costas) também não apresentam nem sinal nem razão de diminuição. E assim a vaca saltita a caminho do brejo.

A experiência americana de secessão, todavia, é péssima. A primeira guerra total moderna foi de americanos contra americanos, ou antes de unionistas contra confederados, quando alguns estados do sul quiseram sair da União por razões fiscais e foram impedidos pela força. Civis massacrados, estupros em massa, inocentes bombardeados com o único fim de criar terror, tudo isso foi invenção americana usada primeiro contra seus próprios compatriotas. E o Exército da União naquela época era coisa pequena e amadora perto do atual. É realmente difícil imaginá-los deixando de entrar em ação contra uma secessão tentada por qualquer região – seja uma costa cansada de Trump ou estados do interior cansados de um membro do Partido Democrata que venha a sucedê-lo um dia. Com ou sem ordens superiores, aliás. E, neste ponto, a militarização fortíssima das forças policiais, que mesmo descendendo, de certa maneira, da polícia inglesa desarmada (via xerifes armados do faroeste, claro...), vem tornando-as, cada vez mais, forças paramilitares de terror em estado bruto, invadindo residências com SWAT de madrugada e matando os animais de estimação dos moradores por estes terem atrasado o pagamento de alguma conta.

Na Europa a chance de recrudescimento da ação centralizadora dos Estados nacionais é menor pela simples razão de estarem em estado mais grave de decomposição, mas em alguns lugares – como na Alemanha – ela ainda é uma ameaça palpável. Se depois de o vírus passar o AfD conseguir os troninhos berlinenses, por exemplo, é bem pouco provável que não tentem impor pela força uma nacionalidade que já está se esfarrapando aos imigrantes que a social-democracia importou para fazer as vezes das novas gerações que os alemães preferiram não gerar, e assim sustentar o Estado de bem-estar social.

A nossa sorte, enquanto brasileiros, é que aqui o Estado simplesmente não tem competência para tal. Se um governo brasileiro tentasse realmente impor uma ditadura totalitária, ele fracassaria completamente. Viraria piada. Como disse o gari, personagem de Sérgio Porto, ao ser interpelado sobre se não temia o comunismo, “se o comunismo aparecer por aqui, doutor, a gente avacalha com ele”. E é a mais pura verdade. Nestas terras totalitarismo não se cria. Cuba, que tem uma cultura parecida com a nossa, conseguiu a duras penas impor sua ditadura, mas apenas pelo expediente de expulsar ou “deixar” fugir grande parcela da população e matar outra multidão. Isso numa ilha fechada, pequenininha. Aqui, então, nem em sonhos seria possível importar a solução tecno-totalitária chinesa.

Felizmente.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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