Ao longo do Sínodo da Amazônia, o que mais se viu pelas redes sociais – a ágora virtual da pós-modernidade, onde miríades de grupelhos idolatram deuses falsos, sem que quase ninguém faça mais que olhar de relance para o altar vazio do Deus verdadeiro e desconhecido – foram mistificações. Mistificações por parte tanto do modernismo de esquerda (“teologia da libertação”, conservacionismo ambiental enlouquecido e outras pragas) quanto do de direita, que aceita as mesmíssimas premissas, delírios e falsificações do de esquerda, rasgando todavia as vestes em escândalo farisaico em vez de celebrá-los.
Uns e outros esbravejavam, em tom triunfalista ou de horror, que o Sínodo seria a vitória final do conservacionismo, do paganismo, da negação do Sacrifício redentor de Nosso Senhor. Cada suspiro de um padre sinodal, ou mesmo de alguma leitura delirante feita por algum desinformado de um arroto pós-prandial de um padre sinodal, era motivo de horror. A farsa chegou ao ponto de termos no coração do Sudeste brasileiro, em Minas Gerais, manifestação com cartazes antissínodo na porta de uma basílica. Não sei os senhores, mas eu, cá por mim, acho extremamente improvável que a Santa Sé tenha tomado o mínimo conhecimento que seja da patética manifestação de meia dúzia de seguidores de um desses tantos Apolos ou Paulos pós-modernos, a espalhar incessantemente seu separatismo pelo YouTube.
Eu mesmo, que não tenho mais a paciência e o sangue de barata que já tive em tempos idos, confesso que cheguei a suspirar e sentar para escrever, reiterar e repetir que nada, absolutamente nada daquilo que estava sendo veiculado na mídia e nas redes sociais tinha qualquer importância eclesial prática, que dirá valor magisterial. Debalde. Escrevia eu algo, e nos comentários pululavam os delírios modernistas: padres casados!, padras lésbicas!, ídolos entronizados sobre os sacrários!, conservacionismo radical expulsando a todos das selvas do Norte!...
Absolutamente nada daquilo que estava sendo veiculado na mídia e nas redes sociais sobre o Sínodo da Amazônia tinha qualquer importância eclesial prática, que dirá valor magisterial
E eis que agora, em resposta às preces não só dos povos da Amazônia, mas também de todo católico que não tenha caído na esparrela modernista, chega-nos a belíssima exortação apostólica pós-sinodal (esta, sim, de valor magisterial) Querida Amazônia, do nosso bom pai e Vigário de Cristo, o papa Francisco, o timoneiro da Barca de Pedro nestes nossos tempos tão complexos. Mais uma vez vejo a sabedoria absoluta e inefável da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, que inspirou o Colégio Cardinalício a escolher para nos guiar neste difícil momento este “papa do fim do mundo”. Fim do mundo, aliás, que fica aqui ao lado.
A exortação é dividida numa série de “sonhos”: social, cultural, ecológico e eclesial. Eles vão, como na montagem de um belo edifício, erigindo-se uns sobre os outros de modo a nos dar uma torre de onde perceber mais ainda que apenas a Amazônia. Os problemas dela, afinal, não são só dela; a maior parte deles é, na verdade, oriunda de uma lógica falseada pela qual a Modernidade, afastando-se da visão cristã, relegou o restante da Criação que não as sociedades humanas no senso mais estrito, ou mesmo citadino, a um papel que até há pouco era o de mera reserva de “recursos” (minerais, hídricos, o que for). Hoje, numa falsa reviravolta que, percorrendo 360 graus, cai no mesmo lugar, só um pouco mais tonta, a mesma visão pretende colocar, de um lado, o homem citadino, vivendo num mundo falso de cimento, asfalto e vidro temperado, com água que surge magicamente nas torneiras, eletricidade farta e barata para assistir ao Faustão e a séries sem fim numa tevê de plasma de trocentas polegadas e ar condicionado no carro, na casa e no trabalho; e, do outro, uma “natureza” intocada, em que todos os bichos são o Mickey, em que todas as plantas são panaceias, maconha ou ambas, e que o homem jamais pode tocar para que não as suje com seus dedinhos sebentos.
E é por isso que grande parte da exortação dedica-se a desfazer, carinhosa e cuidadosamente, estes enganos. O primeiro “sonho” é social, justamente para mostrar que o homem e o restante da Criação não apenas têm lugar juntos, mas somos nós, homens, que temos a responsabilidade de custódios, tomadores de conta, do restante da Criação. Assim, estão errados ambos os pesadelos recorrentes da modernidade e da pós (ou antes hiper) modernidade: é errado devastar uma floresta desprovida de solo fértil, em que as árvores nascem do substrato vegetal de suas antecessoras, não de nutrientes que o solo preserve após ser desnudado, para vender a madeira ou qualquer outro “uso” que não perceba na Criação nem a sua beleza nem o seu valor. E é igualmente errado – na verdade o erro é exatamente o mesmo – querer que a floresta seja uma coisa intocada, “pura”, sem que a presença humana a conspurque, ou besteira equivalente.
Deus Nosso Senhor nos instou a vê-l’O, Ele mesmo, no pobre, no faminto, no sedento, no nu, no preso. E é por vê-l’O e ao vê-l’O que nasce o labor cristão neste mundo, que informa o “sonho” social para a Amazônia. O doce Cristo na Terra, com razão, denuncia a visão “extrativista” tanto de quem vê o homem como um obstáculo no caminho da exploração dos recursos naturais quanto de quem o vê como um obstáculo no caminho da preservação da suposta natureza intocada (ou, o que talvez seja ainda pior, coisifiquem o índio ao colocá-lo como mais ou menos equivalente a araras ou tatus, fazendo parte da tal “natureza”, não da humanidade predadora). Assim, qualquer projeto de ação para a Amazônia deve, antes de qualquer outra coisa, ser um projeto de ação para com os homens que ali vivem, para levar a eles não a negação de sua humanidade subjacente nos projetos modernos e pós-modernos, mas a reafirmação de sua dignidade humana, decorrente da Encarnação do Verbo e a Ele conducente.
E daí passa ele para o próximo “sonho”, que é o cultural. Trata-se de uma breve apresentação de algo que é esquecido no meio dos delírios que mencionei mais acima: a Amazônia não é uma coisa só. Há tantas Amazônias humanas quanto as há climáticas ou ambientais. A vida de quem vive à beira do grande rio não tem muito a ver com a de quem vive em montanhas cobertas de névoa mais ao norte, por exemplo. E cada uma dessas culturas apresenta aspectos dignos de nota por representarem “seminae Verbi”, sementes do Verbo: aspectos culturais que preparam ao recebimento da mensagem do Evangelho. Muitos destes, aliás, preparam não por serem semelhantes aos carregados pela nossa cultura já infelizmente em grande medida pós-cristã, mas justamente por não terem caído nos erros modernos que a tornaram pós-cristã. São, por exemplo, os aspectos comunitaristas no sentido preciso do termo – que não pode jamais ser confundido com o coletivismo de multidões da extrema-esquerda, que nega as diferenças locais e busca enfiar a todos num leito de Procusto ideológico –, o respeito à voz dos anciãos, à dignidade de mulher etc. Evidentemente, havendo muitas culturas, há muitos graus de erro e de acerto em cada uma delas; todas, todavia, mesmo por serem todas necessariamente frutos da mesma natureza humana que o Verbo assumiu e que por Ele clama, apresentam-se de alguma maneira preparadas para Seu anúncio, por vezes mais preparadas que a sociedade pós-moderna, que O ouviu e O esqueceu.
Passa, então, o texto magisterial ao “sonho” ecológico. É uma apresentação clara e nítida da doutrina cristã acerca do nosso papel de custódio da Criação, deixando no caminho os escombros dos delírios do ultraconservacionismo, lado a lado com os de seu irmão gêmeo, o pesadelo moderno da Criação como mera fonte de recursos a explorar em breves escalas rumo ao lixão até que acabem, em benefício do pseudoconforto material do consumismo. São duas pragas gêmeas, dois erros graves que, inclusive, apresentavam-se a cada momento nos gritos dos modernistas de esquerda e de direita ao longo do sofrido Sínodo. Uns a pregar índios de iPhone na Bolsa de Valores, e outro a deixá-los nus e expostos a todo tipo de praga e endemia, abandonados à mais negra idolatria nas florestas obscuras. É interessante, inclusive, perceber como esta apresentação vem a complementar, por ter exemplos mais claros por localizados, a exortação que já nos fora feita pelo mesmo sumo pontífice na magistral Laudato Sì.
E a revelação cristã que os povos amazonenses merecem e esperam. É pelo batismo que anseiam em seus mergulhos nas turvas águas de seus rios
E, finalmente, completando o magnífico edifício, o ponto principal, central, crucial: o “sonho” eclesial. É a mais perfeita negação do bestialógico vomitado pelas diversas seitas modernistas ao longo do Sínodo (incluindo aqui o dos próprios padres sinodais infelizmente a ela vendidos, pois Judas sempre teve seguidores e herdeiros infiltrados no tecido eclesial). É uma exortação franca e aberta ao anúncio do Evangelho, ao anúncio do Cristo, à pregação e recurso aos sacramentos. Claro, não fala nada de padres casados; ao contrário, até: insta os senhores bispos a rezar e mandar rezar pelas vocações boas, sérias, castas, santas, e a mandar missionários para a Amazônia, que por vezes absurdamente recebe menos missionários que a Europa ou os Estados Unidos, e isso da parte de dioceses daquela mesma região!
Evidentemente, não poderia também deixar de ser uma necessária aula do que seja realmente a inculturação proposta novamente pelo Concílio Vaticano II, mas já praticada desde que a Igreja saiu do Cenáculo. “Inculturar” não é enfiar funk carioca (ou tambores tribais) na liturgia, e sim perceber perfeita e claramente o que há de correto e de santo nas sementes do Verbo presentes em cada cultura e fazer com que floresçam estes aspectos, dando-lhes o seu pleno sentido, que só poderia vir à luz da Revelação Cristã. É inculturar, por exemplo, receber das culturas pagãs europeias e nelas santificar a beleza do símbolo matrimonial expresso nas alianças de casamento, como a Igreja fez séculos atrás. E é inculturar, do mesmo modo, perceber os sinais da Verdade já presentes nas diversas culturas locais, nas festas tradicionais e demais manifestações que, na realidade, são formas pelas quais homens bem-intencionados tentam, aos trancos e barrancos, render homenagem ao que conseguem perceber duma Verdade eterna que só se revela no Cristo Jesus. E é esta a revelação que os povos amazonenses merecem e esperam. É pelo batismo que anseiam em seus mergulhos nas turvas águas de seus rios. É o Cristo que nos chama a anunciá-l’O a todo e cada um dos habitantes daquela vasta região, sem querer nem fazer deles operadores de bolsa de valores nem tatus ou lagartixas.
São, sim, homens como nós, chamados como nós à mesma santidade, e que nos trazem ainda a bênção de visões que por vezes, na decadência final de nossa cultura, esquecemos. E é a evangelizá-los, todos e cada um, que o Santo Padre nos chama. Acolhê-los plenamente não apenas no seio da Mãe Igreja, dando-lhes o bom alimento da sã doutrina, a cura espiritual dos sacramentos, mas também na dignidade plena de seres humanos, tendo sua cultura purificada, não eliminada; suas tradições santificadas, não devastadas; sua terra fertilizada, não exaurida. É a isto que o bom papa Francisco nos exorta. E, nisso, como de hábito, como sempre ocorreu nestes quase 2 mil anos de papado, nada mais faz ele que repetir as palavras de Cristo: “lançai as redes!”.
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