Vivemos em uma sociedade que tem como um de seus parâmetros – ou valores, se assim se preferir – a dignidade humana, a dignidade individual de cada ser humano, que não pode ser perdida. É esta dignidade que faz com que sejamos contrários ao assassinato de uma criança ou, mais ainda, de um idoso. Não importa se a pessoa é ou não produtiva, se ela é feia ou bela, se é rica ou pobre, inteligente ou limitada: ela é dotada de uma dignidade única e intransferível, que nem ela mesma, por mais mal que faça, consegue perder.
A razão pela qual a nossa sociedade, e só ela, tem este parâmetro fundamental a orientar as relações entre as pessoas é a novidade absoluta da Igreja Católica, que surgiu de uma dúzia de testemunhas do milagre da Ressurreição do próprio Deus feito homem e, crescendo, veio a dominar e a guardar no que foi possível o então já decadente Império Romano. Disto veio, com a adição, ainda, da filosofia grega, o triunvirato intelectual e moral que formou a Igreja e, por conseguinte, toda a civilização a que pertencemos. Roma, Atenas e Jerusalém, juntas, nos deram o sistema de valores que hoje em dia consideramos evidente.
Mas este sistema não é evidente, e vem correndo riscos cada vez mais sérios há já 500 anos. Afinal, perguntando-se a um católico de agora, do primeiro século, do século 12 ou do século passado por que razão ele crê na dignidade humana, sua resposta seria sempre a mesma: porque o Verbo se fez Carne, e ao fazer-se Carne elevou e santificou toda a natureza humana. E por que razão creria ele nesta Encarnação do Verbo, neste acontecimento inimaginável de o próprio Criador de todas as coisas ter-se feito homem e morrido por nós? Sua resposta seria também sempre a mesma: ele crê pelo testemunho da Igreja, de seus santos e mártires, ininterruptamente afirmando a mesma fé que traz como corolário a dignidade humana desde aquele acontecimento tão importante que, na nossa sociedade, contamos o tempo a partir dele. Estamos no ano 2018 da Encarnação do Verbo. Há 2018 anos a natureza humana, ensina a Igreja, foi assumida num ato de amor pelo seu próprio Criador.
Quinhentos anos atrás, este precioso cristal que dá a base do nosso entendimento do que seja o homem foi rompido pela revolta luterana. Começou a era em que a verdade da dignidade humana (e de seus corolários, como o direito à propriedade, ao matrimônio, à liberdade individual de buscar o próprio bem etc.) passou, em última instância, a não ter, fora da Igreja cada vez mais relegada às margens, uma razão de ser. Para o protestante, as mesmas perguntas acabam não tendo resposta. Um dos muitos frutos da Igreja, a Bíblia, é tomada por ele como causa, como se o fruto fosse a árvore. Mas do fruto só pode surgir outra árvore, diferente, ainda que em muito semelhante àquela que o gerou. Suas raízes estarão alhures, seus galhos terão outra forma, sua substância individual será outra. Ela não terá como ser uma testemunha daquilo que aquela que o gerou testemunhou. Daí o seu problema ao responder às mesmas perguntas. A razão da dignidade humana, a maior parte deles há de responder, é, sim, a Encarnação do Verbo. Mas por que crer nessa Encarnação, tão fabulosa? Pelo testemunho da Bíblia, responderia o protestante de agora ou de há 500 ou 300 anos. Mas e a Bíblia, por que alguém haveria de crer nela e não, por exemplo, no Corão, que afirma sua suficiência e inspiração divina ainda mais claramente que a Bíblia? A isso ele não terá resposta; no máximo dirá que pelos frutos ele conhece seu valor. Mas, no fim das contas, ele acaba forçado a dizer que crê no valor da Bíblia, no qual baseia sua crença na Encarnação, que por sua vez baseia sua afirmação da dignidade humana, “porque sim”.
O “porque sim”, este perigo e negação da razão e da verdade – pudera que os heresiarcas protestantes negassem a razão e mesmo o livre arbítrio! –, tornou-se, mais tarde, base de ainda outros sistemas éticos e morais. Kant, ao negar a moral teleológica, ou seja, a moral que tem um fim (a salvação cristã, por exemplo; não me mato porque não quero acordar sentado no tridente de Satanás), inaugurou uma era em que morais diferentes competem, muitas delas negando liminarmente ou em última instância a dignidade humana, desde que – como o protestante que se apoia na Bíblia para dizer uma coisa enquanto outro, apoiado na mesma Bíblia, diz o oposto – elas pudessem apoiar-se numa “razão”. A moral estaria tão evidente para Kant quanto as estrelas no céu. Ao contrário destas, contudo, que são iguais para todos os que as virem do mesmo lugar e na mesma hora, o que parece moralmente evidente a um não o parece para outro. E daí, deste pensamento moderno, tivemos horrores inimagináveis surgindo no seio de nossa civilização.
A maior parte dos sistemas de pensamento e de governo surgidos a partir daí teve, como Kant, parâmetros em muita coisa semelhantes àqueles ensinados desde há 2 mil anos pela Igreja. Costumo dizer que a moral invariável de Kant é aquela que aprendeu no colo da babá. Mas outros foram-se afastando deles, mais e mais, passando pelo Terror da Revolução Francesa, em que o pescoço de um nobre pedia a guilhotina e sua dignidade de nada valia, apesar de a “igualdade” figurar entre as palavras-chave do discurso revolucionário; até chegar aos genocídios nazista e comunista do século passado; e finalmente, em nossos dias, alcançar a negação liminar da possibilidade não só de moral, mas de reconhecimento da própria existência de uma natureza humana que hoje grassa no pós-modernismo.
Hoje o mundo inteiro aceita, da boca pra fora que seja, alguns parâmetros filtrados da moral católica pelas sucessivas vagas que varreram o Ocidente. Estes são os direitos humanos, uma novidade absoluta oriunda da Igreja e mantida por muitos sistemas de pensamento e governo surgidos a partir de 1517. Mas eles são mantidos “porque sim”. Não há base alguma a suportar o imenso peso da responsabilidade que é reconhecer no mendigo alguém igual a um rei na sua dignidade humana essencial mais básica. Ao mendigo não pode faltar liberdade, não pode faltar o direito à propriedade (o que se lhe deu é dele!), não pode faltar o respeito ao corpo, à vida e tudo o mais que decorre, em última instância, da aceitação do testemunho da Igreja acerca da Encarnação do Verbo.
Vemos claramente, no mundo globalizado de hoje, a diferença essencial entre os sistemas de pensamento e governo não cristãos e os parâmetros católicos (ainda que filtrados) que orientam nossa moral e nossos valores na nossa sociedade. Para dar apenas exemplos recentes ou mesmo atuais, no Oriente Médio, por exemplo, o governo muçulmano saudita atraiu para um consulado um jornalista que lhe era desagradável e o assassinou e esquartejou. Para isso foi enviada uma trupe de assassinos, dentre os quais um legista, para facilitar o esquartejamento. Onde está o respeito à vida humana?
Ali ao lado, em Israel, o governo igualmente não cristão usa atiradores de elite para matar todo e qualquer árabe que se aproxime do imenso muro que cerca Gaza. Mais de 200 pessoas foram assim assassinadas. Onde está o respeito à vida humana?
No Irã muçulmano xiita, os homossexuais que não queiram fazer cirurgias de “mudança de sexo” são enforcados em guindastes e deixados pendurados para aterrorizar os demais. Onde está o respeito à vida humana?
Na China pagã, a minoria muçulmana de uma província, como já comentei em coluna anterior, está sendo submetida a lavagem cerebral em campos de concentração, e o próprio chefe da Interpol foi sequestrado por capangas do governo ao desembarcar no país, sem que até hoje se tenha tido notícia confiável dele. Onde está o respeito à vida humana?
Na África animista, albinos são caçados para que seus órgãos sejam usados em rituais de magia negra. Onde está o respeito à vida humana?
Nos EUA protestantes, onde em muitos lugares é proibido dar de comer a quem tem fome, mas em toda parte pode-se matar um bebê ainda vivendo dentro da mãe, o governo tem uma imensa frota de robôs voadores assassinos (que, para disfarçar, dizem-se “drones”, quando nada têm em comum com aquelas coisinhas bonitinhas com quatro hélices: são enormes aviões de guerra controlados a distância, com asas de até 40 metros de envergadura!) que voam incessantemente nos países assolados pelas forças armadas americanas, chacinando com mísseis centenas de inocentes por ano. Onde está o respeito à vida humana?
A Rússia cismática é a campeã mundial de abortos, com cerca de 2 milhões por ano, rivalizando apenas com os EUA e seu milhão anual de crianças assassinadas ainda no ventre da mãe. Onde está o respeito à vida humana?
Na Coreia do Sul confuciano-capitalista, sistemas de competição acirradíssima fazem da vida dos cidadãos, especialmente dos mais jovens, uma maratona incessante de estresse. Até mesmo os popularíssimos cantores e dançarinos daquelas bandas são frutos de internatos dedicados ao treinamento intensivo de profissionais do entretenimento; não é raro que os que passem por essas máquinas de moer almas acabem por suicidar-se. Onde está o respeito à vida humana?
Na Coreia do Norte comunista, quem quer que faça algo tido como desrespeitoso aos veneradíssimos (ou mesmo adorados) ditadores falecidos da família Kim é enviado para um campo de concentração em que sua dignidade é cotidiana e horrendamente espezinhada. Alguns escaparam, e escreveram livros. Não recomendo lê-los com a barriga cheia, e poupo meu querido leitor de transcrever ou parafrasear um trecho que seja. Só o que afirmo é que a dignidade humana é desconhecida naquele país. Onde está o respeito à vida humana?
Este respeito, afinal, por ser um fruto incontestável da fé católica, perde-se ao ser filtrado pelos pensamentos que não se nutrem diretamente da seiva desta frondosa oliveira. Ele se perde quando passa por filtros alheios à fé e, principalmente, quando passa por filtros que a negam diretamente. E, mais ainda, ele se perde radicalmente quando em última instância sua origem não tem como passar de um “porque sim”. É por isso que os direitos humanos são cotidianamente desrespeitados mundo afora: porque uma árvore sem raízes não tem como dar frutos. O que é mesmo imposto pelas organizações internacionais, como a ONU, acaba sendo ou motivo de piada (veja-se a composição do Conselho de Direitos Humanos daquela entidade!) ou algo feito para inglês ver, que não toca na realidade a população de cada país.
É esta a triste situação moral em que estamos. E aqui, no Brasil, nós temos dois frutos de sistemas de pensamento e governo que filtraram e aguaram a moral dos Apóstolos competindo pelo trono do Planalto. Um, Bolsonaro, é fruto do sistema de formação militar brasileiro, que, apesar de trazer boas coisas, como um saudável patriotismo que não se confunde com o nacionalismo demagógico que hoje anda a fazer sucesso na Europa Oriental, tem por base um sistema de pensamento absurdo e artificial, o positivismo. Por cima desta base já venenosa, por cortada, aguada e filtrada, ele ainda se aproximou tremendamente do protestantismo pentecostal, ao ponto de fazer-se “batizar” no Rio Jordão, num ato de apostasia pública do pouco que lhe restasse de fé católica. O outro, Haddad – que, a esta altura do campeonato, só ganha se as urnas eletrônicas que impedem a recontagem de votos fizerem sua mágica – é comunista, adepto de um sistema de pensamento e governo que não é só laico, mas abertamente antirreligioso, o sistema que mais matou gente na história da humanidade. Além, claro, de pertencer ao partido que mais roubou na história do Brasil, e que contava com um retorno ao governo (e daí ao poder, como bem disse José Dirceu) para que seus dirigentes se livrassem da merecida cadeia.
É um páreo duro, mas temos de considerar que os filtros de um são mais largos que os filtros de outro. Enquanto o filtro comunista acaba por levar a uma negação completa da dignidade humana – como a Sibéria de Stalin ou o Holodomor provam claramente –, o outro leva apenas a erros e enganos que podem ser perfeitamente tolerados numa sociedade plural e democrata. O que temos de buscar, o que temos de lutar para que seja reconhecido por toda a sociedade, o que temos de procurar com todas as nossas forças difundir e fazer valer são os parâmetros morais originais, completos, enraizados. Menos que isso e temos, em última instância, o genocídio.
Assim sendo, não basta repousar sobre os louros de uma mais que provável vitória sobre o comunismo. Os parâmetros morais que gerenciarão a sociedade brasileira, que graças ao bom Senhor Deus tem ainda sua alma católica, estão aguados, filtrados, parcialmente negados ou substituídos por sucedâneos da moda, e isto não basta. Precisamos ir além e sermos, como já temos sido, agentes de transformação das estruturas de poder da sociedade brasileira para que elas se adequem à moral que, em última instância, as gerou.
Isto pode ser feito na situação ou na oposição política. Mais ainda: isto deve ser feito tanto numa quanto noutra. Afinal, o que buscamos não é uma impossível utopia, à moda comunista ou capitalista, e sim o respeito às bases da moral que nos deu a sociedade em que vivemos. Sem esta moral, temos a luta de lobo contra lobo que já pode ser vista e vivida no Rio de Janeiro e em outros lugares. Sem esta moral, temos sistemas de corrupção locupletando-se com o suado dinheiro dos contribuintes. Sem esta moral, temos um centralismo exacerbado que nega as liberdades individuais e familiares. Sem esta moral, temos os horrores da perversão a envenenar nossas crianças.
Já disse o grande humorista Sérgio Porto: “Restaure-se a moral ou locupletemo-nos todos!” Mas não é isso que é necessário. Não há alternativa à restauração moral do Brasil, especialmente depois que a locupletação ilimitada em escopo e limitadíssima em privilegiados da era petista chegar ao fim. Só nos cabe lembrar que a moral tem um sentido e uma base, que a dignidade humana é inviolável justamente por também ter um sentido, uma base, e fortes raízes que suportaram os séculos. Não existe imperativo moral categórico “porque sim”. Existe, sim, uma moral verdadeira e única, por única ser a natureza humana que esta moral deve governar. E é esta que deve ser restaurada.
Que Deus nos ajude.