Ariane Sherine e Richard Dawkins no lançamento da campanha do “ônibus ateísta”, em Londres, em 2009.| Foto: Zoe Margolis/Atheist Bus Campaign
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Quase 100 anos atrás, o grande filósofo espanhol Ortega y Gasset escreveu a obra-prima A Rebelião das Massas, em que prescientemente viu a que levava o pensamento burguês de então. Naquele momento os fenômenos de massa, e, mais ainda, de massas jovens (comunismo e fascismo, que se digladiaram em horrenda guerra fratricida na Espanha do autor), estavam começando um percurso que os levou à situação que atingiu seu auge na virada do milênio. Começava a ser negado o valor da dedicação e do trabalho árduo, bem como a fixação de objetivos mais altos. Afinal, mesmo que eles não sejam alcançados (e raramente o são, se forem realmente altos), eles sempre servem para mirar mais além e não se deixar ficar onde se está, conduzindo assim sempre a algum aprimoramento de si.

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Quem busca aprimorar-se todo o tempo acaba por fazer parte de uma elite, ensinou o filósofo. Mais ainda: a elite é composta por aqueles que se colocam objetivos mais altos e em prol deles laboram. Já naquele tempo, porém, essa busca do aprimoramento, da qualidade, estava já sendo deixada de lado em favor da quantidade. Nas décadas seguintes, passou a ser comum haver “verdades de ibope”, factoides cridos pela massa que, justamente por o serem, passavam a valer mais que os fatos sabidos por quem dedicou a vida a seu estudo. A juventude e a força física, no fascismo e no comunismo, passaram a sobrepujar a velhice e sua sabedoria, como magnificamente ilustrado no confronto entre Unamuno e Millán-Astray na mesma Espanha conturbada de Ortega y Gasset: o sábio pregava a necessidade de usar a razão no convencimento, enquanto o fascista bradava “abaixo a inteligência; viva a morte!”

Essa multidão e suas verdades de ibope, preocupava-se Ortega y Gasset, por não buscar melhorar, por crer que sua opinião sem qualquer base na realidade valeria tanto ou mais que a da elite dos estudiosos deste ou daquele tema, poderia levar a um grave retrocesso da ciência. Afinal, a pesquisa científica não é algo que se faça assistindo a videozinhos e comendo isoporitos: ela demanda muito tempo e, mais ainda, dedicação. Para onde iria a ciência?, perguntava-se o filósofo. Sabemos hoje para onde ela foi: tornou-se religião de Estado. Tornou-se Ciência. Mais ainda: foi aos poucos se pervertendo, misturando-se com a política e, ao depender da alta finança, visando mais e mais o lucro. O que era ciência muitas vezes passou a ser simplesmente busca de aprimoramento técnico ou, pior ainda, busca de contenção de despesas. Com o consumismo a levar a ciência adiante qual cavalo furioso, deixando para trás vastíssimas regiões poluídas e muita miséria para que os mais ricos possam jogar o telefone celular “velho” no lixo a cada ano, a ciência foi aos poucos se desvirtuando. Cada vez mais Ciência e menos ciência.

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É cientificista o bocó que proclama solenemente ser o amor na verdade “apenas uma questão de fluxo de oxitocina”, reduzindo uma realidade infinita, e infinitamente bela, a um dos vários fenômenos biológicos a ela associados

No fim do século retrasado a ciência já se arrogava muitas vezes uma capacidade que não tinha, e já dava ibope fantasiar de ciência os devaneios dos mais imaginativos. Daí, por exemplo, todo o vocabulário deliciosamente datado da má ciência do fim do século 19 que se encontra nas confusões cosmogônicas da necromancia kardecista. Chega a ser engraçado, aliás, este ponto. Se me permitem o excurso, vale perceber como o que naquela época era um vocabulário de ponta da ciência (mais ou menos como a pobre física quântica de hoje, abusada nos delírios dos coaches e outros picaretas) – os “miasmas”, “fluidos”, “energias sutis” etc. – hoje em dia é tão identificado com o espiritismo, e só com ele, que o sinal foi trocado. Em vez de o espiritismo apresentar-se como “científico” (“viu, a gente fala das mesmas coisas que os cientistas!”), todo tipo de neopaganismo e pseudoxamanismo pós-modernos adotou o vocabulário espírita no ensejo de “provar que não são materialistas” (como os cientistas), sem nem sequer perceber mais que ele originalmente era mero decalque do vocabulário científico.

Voltando à pobre vaca tiritante, foi daquela má ciência que surgiu uma das pragas mentais (pois “intelectual” já seria um termo demasiadamente elogioso para ela) da segunda metade do século passado: o cientificismo. Este erro filosófico crasso consiste em achar que, por a ciência dedicar-se ao estreito campo do que pode ser pesado e medido, só é real o que pode ser pesado ou medido. É cientificista, por exemplo, o bocó que proclama solenemente ser o amor na verdade “apenas uma questão de fluxo de oxitocina”, reduzindo uma realidade infinita, e infinitamente bela, a um dos vários fenômenos biológicos a ela associados, pela simples razão de que estes podem ser mensurados, mas não aquela. É, mutatis mutandis, o mesmo que fazia Descartes ao chutar sua sofrida cachorrinha e asseverar que ela não tinha capacidade de sentir dor, sendo seus ganidos de desespero mero “reflexo instintivo”.

Temos, assim, uma Ciência religião de Estado, que como tal orienta ações dos governos e tenta impor uma falsa moralidade (pois o campo da moral, todo ele, coloca-se fora do mensurável, logo da alçada da ciência cartesiana!). Sua forma vulgar, ou fanática, comum no meio do populacho e entre alguns de seus “sacerdotes” mais famosos (Neil deGrasse Tyson, Stephen Hawking, Carl Sagan et caterva), é o cientificismo. Sua forma mais produtiva, a pesquisa, desviou-se em enorme medida da busca do conhecimento sobre o universo (ou ao menos sobre a minúscula parte dele que é mensurável) para o campo da pesquisa aplicada, do que pode render. E, desprovida de qualquer senso moral pela sua própria negação liminar do imensurável, apenas raspas e restos da moral cristã ainda socialmente aceita impedem, ou tentam impedir, que a coisa fique ainda mais desumana. E isto no Ocidente apenas, e olhe lá. Por exemplo, a clonagem humana, assim como a criação de quimeras semi-humanas, não é “aceitável”, ainda que não haja uma razão para esta inaceitabilidade que não fuja do campo do mensurável, logo, do científico. Certamente há laboratórios dedicando-se a tais coisas em países orientais, onde a moral cristã nunca penetrou, ainda que em deferência aos resquícios dela nas instituições globalizadas tais pesquisas sejam feitas, por enquanto, em segredo.

O retrato que temos, então, da ciência na virada do milênio é curioso, correspondendo em ampla medida a um processo de decadência (parcialmente vislumbrado pela presciência de Ortega y Gasset). Não é exagero comparar a situação social da ciência do século passado à da teologia escolástica tardia da virada inicial da Era Moderna. Esta teologia via-se “engessada”, encarangada por velha e inativa, um pouco como estivera a teologia de base neoplatônica antes da abertura a Aristóteles feita pelo grande São Tomás de Aquino. Não havia outro São Tomás à mão, todavia, e na virada do século 15 para o 16 digladiavam-se puritanismos alucinados (um pouco em volta ao neoplatonismo), como o de Savonarola, contra uma abertura ao paganismo antigo (inclusive em aspectos morais). Ela, por sua vez, gerou uma espécie de neopaganismo que acabava por ser quase um culto da decadência. A esta praga convencionou-se chamar “Renascimento”.

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Foi neste contexto que surgiu, das brenhas obscuras da periférica Alemanha, a heresia luterana, que tomava, fora de contexto, o Novo Testamento e fragmentos do Antigo – um dos muitos elementos que compõem a cosmogonia cristã e dão à sua teologia uma sólida base na interpretação e leitura da Verdade revelada – e fazia da parte o todo. Imediatamente após a abertura da Caixa de Pandora de todas as heresias por Lutero, surgiram por todo lado (mormente no seu norte europeu) religiões pseudocristãs novas. Todas se diziam, claro, a verdadeira. Cada uma, todavia, tomava um pequeno, um minúsculo fragmento da Verdade revelada, muitas vezes uma parte ainda menor das Escrituras já mutiladas por Lutero, e o elevava à rarefeita condição de única coisa que importa.

Uns não batizavam crianças, outros não aceitavam (de novo!) o casamento; uns negavam o sacerdócio ministerial, substituindo-o por uma releitura alargada do papel do sacerdócio comum dos fiéis, enquanto outros criavam comunidades autônomas; uns proclamavam repúblicas, enquanto outros viam-se como reis messiânicos. Foi um período de intensa loucura religiosa, tornado pior, evidentemente, pela multitude de guerras que inevitavelmente surgiam quando os interesses de gente armada eram violados por alguma nova religião, ou quando a gente armada tentava aproveitar o manto de pseudolegitimidade que a adesão a uma nova religião lhes conferia para conquistar pela força o que desejavam desde havia muito.

É simplesmente como se a porta do hospício houvesse sido aberta, soltando aqueles que acham que sua opinião (baseada em duas horas de vídeo no YouTube) vale tanto quanto a do consenso de gente que dedicou a vida a estudar algo

Provavelmente, houvesse sido Lutero formado numa tradição teológica mais viva que a de então, ele não teria jogado o bebê fora com a água do banho. Provavelmente, se os inquisidores que foram ao seu encontro tivessem uma visão teológica mais nítida e mais aberta a outras formas de apresentação da mesma Verdade única, sua revolta pudesse ter sido sufocada ainda em seu início ou, melhor ainda, transformada em algo bom. Foi o caso de São Francisco, que soube transformar o pauperismo neoplatônico que grassava pela Itália de seu tempo em uma instituição e uma espiritualidade não apenas perfeitamente ortodoxas, mas, mais ainda, necessárias à Igreja de então e de agora.

Nos dias de hoje, a Ciência religião de Estado que vigorou ao longo do último século encontra-se na mesma situação calamitosa. Não se pode apontar um Lutero, porque o próprio método científico pressupõe reviravoltas cosmogônicas a partir de novas descobertas, que via de regra restringem a aplicabilidade do antigo paradigma (como com a física newtoniana) ou simplesmente o abandonam de todo (como a teoria dos miasmas). Aconteceu, todavia, o mesmo fenômeno, com uma instituição mais ou menos monolítica, ao menos monolítica na aceitação do paradigma do momento em cada uma das miríades de ultraespecializações em que ela se subdividiu, passando a ser atacada de toda parte por outras “verdades” concorrentes. Em alguns casos pode-se culpar a politização do próprio “consenso” acadêmico, tendo sido este construído a partir de pressupostos agradáveis a poderosos e sem deixar tanta margem de manobra para visões contrastantes dentro do mesmo campo. É o caso, por exemplo, da mudança climática e de suas causas possíveis. Em outros, é simplesmente como se a porta do hospício houvesse sido aberta, com o homem-massa de Ortega y Gasset, aquele que acha que sua opinião (baseada em duas horas de vídeo no YouTube) vale tanto quanto a do consenso de gente que dedicou a vida a estudar algo. É o caso, para pegar o exemplo mais bizarro, do terraplanismo. Outras ainda estão no meio termo, com enorme grita política sufocando a perfeita compreensão do que está em jogo. É o caso, por exemplo, dos antivacinistas, em cuja grei encontram-se desde loucos que negam o efeito de toda e qualquer vacina a médicos respeitáveis que têm sérias preocupações em relação aos efeitos colaterais de excipientes empregados em vacinas, passando por outros que têm problemas de ordem moral em relação aos métodos empregados na produção delas.

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O fato, todavia, é que a Ciência enquanto religião de Estado não tem como não sucumbir a este ataque furioso, na medida em que ele ataca sua base social, que é o fato de serem os cientistas uma elite, na acepção de Ortega y Gasset. Não se trata de questões científicas reais (terraplanismo?!), exatamente como nas guerras de religião da Europa no século 16 a religião era no mais das vezes desculpa antes de crença real para muitos dos envolvidos. As lutas por poder geram, aumentam e guiam em enorme medida os ataques e as defesas da instituição monolítica ora sujeita à morte por cem mil picadas. A neodireita americana (e, em menor medida, europeia), por exemplo, faz da negação da mudança climática (ou, entre os mais moderados, de sua antropogenia) uma pedra de toque da ortodoxia político-científica de seus seguidores. A neoesquerda, fartamente financiada pelos metacapitalistas, lança-se no ataque contrário, fazendo do uso de carros elétricos uma virtude e da maconha panaceia universal, por exemplo.

A guerra anticiência, todavia, como a guerra anti-Igreja no século 16, opera em diversos planos. Ontem mesmo foi defenestrado do bolsogoverno um terraplanista, ali colocado em alinhamento à neodireita americana. Ora, este era público; certamente os há ocultos, e tenho até medo de saber qual seria o porcentual de terraplanistas entre as autoridades governamentais, congressistas etc.

Chegamos finalmente ao momento que Ortega y Gasset temia: o homem-massa descobriu a Ciência, e fez dela um joguete para suas fantasias de preguiçoso intelectual

O mesmo ocorre com o antivacinismo, que já conseguiu fazer com que ressurjam algumas doenças que se acreditava praticamente debeladas. E o mesmo, sem dúvida, há de ocorrer em diversos outros pontos, desde os que pregam uma dieta exclusivamente composta de carne aos veganos, passando pelos devoradores de doses industriais de vitaminas e outros seguidores de “seitas” (pois só pode ser este o nome do que se separa – “secto” em latim – de uma religião de Estado) pseudocientíficas.

O fato é que chegamos finalmente ao momento que Ortega y Gasset temia: o homem-massa descobriu a Ciência, e fez dela um joguete para suas fantasias de preguiçoso intelectual. Doravante esperamos ver cada vez mais teses alucinadas sendo pregadas a sério e mesmo – como creio ter sido o caso com o terraplanismo – serem pregadas como brincadeira apenas para serem depois adotadas a sério por ignorantes, que passam a defendê-las com unhas e dentes.

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Por um lado tenho pena, muita pena, dos cientistas de verdade. Vejo-os hoje na mesma consternante situação dos teólogos sérios do início do século 16, sabendo que aquilo tudo é loucura, mas incapazes de encontrar um meio de fazê-la parar. Por outro, todavia, vejo nisso a justa paga dos horrores perpetrados pela Ciência como religião de Estado, desde o racismo dos nazistas (que era “científico” na época, não nos esqueçamos) à ressurgência da eutanásia e do aborto, passando pela devastação ambiental causada por uma ciência (ou técnica científica) voltada apenas a fins, sem se importar com os meios, e por tantas outras barbaridades que seria impossível enumerá-las exaustivamente.

O fato é que os tempos mudaram, e hoje não se sabe mais se a pessoa de jaleco branco a pontificar passou décadas estudando aquilo ou é simplesmente o pipoqueiro.