Não foi apenas a disputa pela Presidência; foi todo o espectro político brasileiro que finalmente retornou a um centro mais ideologicamente equilibrado, ainda que não condizente com a nossa cultura. Na eleição presidencial, deixando de lado os candidatos fantasiosos, como o Cabo Daciolo, o que se teve na prática foi um candidato de direita, Jair Bolsonaro, contra um punhado de ex-ministros do Lula. Já agora, no segundo turno, temos direita contra esquerda; em todas as eleições anteriores tivemos centro-esquerda contra esquerda, num país profundamente conservador como o Brasil. Simplesmente não fazia qualquer sentido, mas os mecanismos de perpetuação no poder instaurados pela medonha Constituição de 88 dificultavam ao extremo toda e qualquer mudança no panorama político. Desta vez, contudo, as regras anteriores não valeram. Alckmin fez das tripas coração e prometeu casa, comida e roupa lavada a uma renca de partidos para ter mais tempo de tevê e mais dinheiro público para gastar como quisesse. Mas o tiozão do WhatsApp conseguiu mais votos com memes e piadas que todo o seu mecanismo movido a dinheiro e conchavos.
A culpa da situação por que passamos nas últimas décadas, em que toda a política brasileira se desenvolvia no lado esquerdo do campo, é dos militares. Ao longo dos vários governos militares, todas as possíveis lideranças de direita foram sabotadas e retiradas do processo político, por medo de que viessem a cobiçar os cargos de mando maior, na mão dos militares e seus tecnocratas. Isto ocorreu porque os militares não entenderam o que é política; para eles, tratava-se apenas de administração, coisa a ser mais bem feita por um engenheiro ou um oficial superior que por alguém que ficasse de ouvidos atentos aos clamores populares. A voz do povo era uma irrelevância.
Assim, eles percebiam os políticos de direita, de que sempre houve muitos no Brasil, como gente que queria bagunçar o processo administrativo, enfiando no meio dele coisas irrelevantes e emocionalistas como clamores e desejos populares. Mais valeria um bom engenheiro com a mesa cheia de estatísticas. Mas era necessário haver pelo menos uma semelhança de apoio político; daí a proteção militar dada a chusmas de corruptos e venais, levando à ascensão de figuras lamentabilíssimas como Maluf ou Sarney, que no fim dos governos militares compunham o grosso da Arena/PDS (o partido de apoio ao governo). Gente que estaria do lado de qualquer um que estivesse no poder, como aliás aconteceu quando da redemocratização. Ao eliminar a concorrência no campo da direita, os militares eliminaram a representação política da direita e deram a luz ao famigerado “Centrão”, a ser comprado e amamentado com verbas públicas para que os governantes pudessem fazer o que quer que fosse. Evidentemente, o fato de a Constituição “cidadã” ter sido feita para um regime parlamentarista e ter acabado sendo usada no presidencialismo, criando o infame “presidencialismo de coalizão” brasileiro, só fez aumentar a fome de verbas públicas dos corruptos não ideológicos.
Ao mesmo tempo, a centro-esquerda, tolerada pelos generais (que a percebiam como irrelevante) e assim colocada na invejável posição de oposição única aos governos militares, foi aos poucos conquistando todos os espaços políticos, ainda antes da redemocratização, até por falta de adversários ideológicos. De um lado estava a esquerda; do outro, a combinação antipolítica de tecnocratas e venais que compunha a superestrutura do Estado militar. Depois da Lei de Anistia, com a volta dos exilados, a esquerda pôde compor-se completamente, com lideranças à extrema-esquerda compostas dos ex-terroristas, de volta com fome de poder, e uma ativa centro-esquerda composta de uspianos e agregados. PT e PSDB, a extrema-esquerda e a centro-esquerda, com algumas rêmoras partidárias trotskistas e stalinistas a pender-lhes das barbas, monopolizaram a política, comprando os venais do Centrão quando necessário (como para a emenda da reeleição, o mensalão etc.).
O resultado deste processo foi que da redemocratização pra cá simplesmente não houve direita, nem no Congresso nem no discurso político em geral. O falecido Álvaro Valle tentou montar um partido liberal, com direito até a cursinhos de liberalismo para os possíveis candidatos. Não conseguiu, e o partido acabou sendo vendido ao Edir Macedo depois de seu falecimento. A direita estava completamente órfã de representação política, enquanto a esquerda viu-se na invejável situação de dona dos dois lados do campo, podendo apodar de “direita” a centro-esquerda social-democrata e assim manter todo o debate político firmemente plantado no campo esquerdo. O próprio FHC já disse que as suas propostas eram as mesmas do PT. E o grosso da população, que não é nem de direita nem de esquerda, mas é profundamente conservador, continuava órfão.
O Brasil tem uma característica cultural que confunde mais ainda o meio de campo: não somos um país moderno, ou, melhor dizendo, nossa população não introjetou os valores modernos e ideológicos. Assim, os nossos partidos de direita e de esquerda sempre foram, na verdade, versões amputadas e engessadas de aspectos diversos de um mesmo pensamento conservador, personalista, tolerante e paternalista. Getúlio era o Pai dos Pobres, não um ideólogo fascista; Lula herdou o seu manto, personalizando o que seus próprios seguidores ideológicos intrapartidários percebiam de forma puramente ideológica. Daí os problemas dele com Frei Betto e José Dirceu, por exemplo, que são ideólogos puros e duros. Entre um e outro pai putativo dos pobres, do lado oposto do espectro ideológico, mas igualmente apelando apenas a ênfases diferentes (e engessadas) de elementos da mesma cultura, situou-se a direita desenvolvimentista e liberal de Carlos Lacerda ou JK, até ser castrada e ter as pernas cortadas pelos militares.
E eis que temos agora, como disse Requião, um “tsunami de direita” que chegou atropelando muita gente e enchendo o Congresso de caras novas. Continuamos sem ter representação legitimamente conservadora – que responderia mais claramente à visão de mundo da imensa maioria do país –, retornando ao padrão pré-ditadura de aglomerações políticas de esquerda e de direita, comandadas por ideólogos (é o caso do Novo, por exemplo, e de todos os partidos de esquerda), mas tendo votos por apelar na prática a este ou aquele aspecto do conservadorismo da massa. Alexandre Frota é um direitista, mas nem nos sonhos mais delirantes de um “progressista” ele seria conservador, por exemplo. O mesmo, evidentemente, vale para o puxador desse samba todo, Bolsonaro, outro direitista tecnocrático que de conservador não tem nada. Só há um detalhe: estamos em plena pós-modernidade, em pleno século 21, e o pensamento ideológico não tem como não cheirar a podre hoje em dia, de qualquer lado que ele venha. Seu tempo já passou; o tempo do conservadorismo brasileiro, todavia, é o mesmo e continua. Este não mudou em nada.
O que temos, no fim das contas, continua sendo uma população esmagadoramente conservadora que desde o império não tem representação política, e campos ideológicos traçados no século passado que se sobrepõem parcialmente a aspectos de um mesmo conservadorismo muito mais amplo que suas estreitas visões, apelando assim, na população, a quem dá mais importância ou ênfase a este ou aquele aspecto. Não há no Brasil, e nunca houve, em termos de massa, adesão ideológica pura. Os ideólogos são poucos, mas são ainda eles que dão as cartas nos partidos ideológicos, de esquerda ou de direita (taí o Novo, que não me deixa mentir).
Como escrevi acima, por terem os militares alijado a direita do campo político, toda ideologia que estava nele presente era de esquerda. Daí inventarem que Bolsonaro seria “de extrema-direita” e Lula meramente “de esquerda” (não “de extrema-esquerda”), quando qualquer um pode ver que Lula tem milícias armadas (o “exército do Stédile”), enquanto Bolsonaro tem grupos de WhatsApp. Quem é o extremista aí? Bolsonaro é meramente direitista. Mas o direitismo estava fora do campo político. Não havia direita. Era o panorama dos sonhos do PT, que podia contar com os aliados PSDB para fazer o papel de inimigo à direita e PSol para desempenhar o de inimigo à esquerda. Qualquer absurdo, qualquer loucura que o PT ou seus aliados propusessem para saciar a fome de poder das forças multinacionais que os apoiam – de equiparar o convívio sexualizado entre pessoas do mesmo sexo à formação de uma família, de onde virão as próximas gerações, à descriminalização do uso de drogas pesadas, passando pelas absurdas campanhas de desarmamento das vítimas – tinha apoio de “todos os lados”, que na verdade eram um lado só.
Foi isso que acabou. A política brasileira reverteu finalmente à situação pré-ditadura, com representantes de ambos os lados do espectro ideológico. Infelizmente, todavia, o maior problema da situação política de então continua na que está prestes a se instaurar: a população brasileira não é ideológica. Ela não é nem de direita nem de esquerda. Ela apoia auxílios aos mais pobres por ser conservadora, e detesta o desarmamento das vítimas ou a ideologia de gênero por exatamente a mesma razão. E essa população continua sem representação, e isso em um tempo em que o ar é rarefeito demais para as ideologias respirarem. Já disse, e repito: o tempo das ideologias já se foi.
No quadro do Executivo, em que a vitória de Bolsonaro só não virá se ele fizer alguma asneira muito grande ou for morto (já tentaram…), por outro lado, o personalismo da cultura brasileira pode ser-lhe de serviço, se ele conseguir equilibrar a tentação ultracapitalista de seu guru econômico, da mesma Escola de Chicago que orientou Pinochet na recuperação econômica do Chile (hoje um país rico), com os pontos de campanha que lhe conquistaram amplo apoio por parte do povo e, principalmente, continuar a ouvir a voz das ruas. Há de ser um equilibrismo dificílimo, mais ainda para alguém formado pela mesma mentalidade desenvolvimentista e tecnocrática que orientou os vários governos militares que nos deixaram nesta enrascada. Ao menos, contudo, ele tem a seu lado um Congresso em que a esquerda não reina mais absoluta. Já é um primeiro passo.
O que cabe fazer agora, para começar a desmanchar o imenso mal feito pelo centralismo da esquerda, é devolver aos cidadãos os poderes que lhes foram roubados pela República. Descentralizar tudo, respeitar a autonomia das famílias, dos municípios, dos bairros, das formas de organização social não governamentais. Respeitar não significa comprar apoio para medidas centralizadoras, como na pseudodemocracia plebiscitária chavista, e sim deixar agir, deixar fazer, retirar entraves. Eliminar impostos e simplificar tremendamente os existentes. Reformular os mecanismos obscenamente burocráticos de legalização de iniciativas privadas, que na prática geram hoje um teto de vidro para os empreendedores de classe baixa. Jogar na lata de lixo da história os padrões curriculares do MEC, ou mesmo o MEC inteiro.
Em suma, o que Bolsonaro pode fazer, mas que não é de modo algum garantido que faça, é violentar a própria formação para evitar o erro de seus professores e deixar que a sociedade civil se organize como bem entender, desmanchando a imensa teia de aranha em que estamos todos enganchados. O Brasil, diz-se, cresce à noite, enquanto o governo está dormindo. Compete ao próximo presidente fazer com que possa crescer de dia, tirando o paquiderme governamental do meio da estrada. Não sei a leitura que Bolsonaro faz das razões pelas quais as pessoas votaram nele; não sei se percebe o voto como ideológico ou como simplesmente um voto de protesto contra as barbaridades dos desgovernos de esquerda que o antecederam, quando a esquerda estava sozinha em campo, marcando um gol atrás do outro enquanto ele, bandeirinha único, tentava marcar os impedimentos sem conseguir. Mas o fato é que o grosso do voto dele foi – como todo voto no Brasil, com a exceção de pequenos agrupamentos de ideólogos nos bairros de classe média das capitais – um voto profundamente conservador. Se ele conseguir perceber isso e deixar de lado as ideologias em que foi formado, do tecnocratismo ao desenvolvimentismo, passando por um nacionalismo desordenado; se ele conseguir ouvir a voz do povo que o levou para o segundo turno e, ao que tudo indica, o levará ao Planalto; se ele conseguir, em suma, ser o primeiro presidente democrático da história da República, seu papel nos livros de História estará garantido.
A bola é dele.