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Aristóteles dizia que “o homem é um animal naturalmente político”. Nos dias que correm, em nossos interessantes tempos, há quem reclame de se falar do “homem” (“e a mulher?!” é a pergunta idiota que vem logo em seguida); há quem reclame de sermos contados entre os animais (e, claro, quem reclame de a racionalidade ser nossa diferença específica); há quem reclame de se dizer que o homem tenha uma natureza; e, finalmente, quem veja na política uma perversão do ser homem. Ou seja: agradar todo mundo é impossível, mas para desagradar a todos sempre se pode dar um jeito. Acrescentaria eu às sábias palavras do Estagirita que o homem é, do mesmo modo e muitas vezes no mesmo momento ou no mesmo ato, um animal naturalmente simbólico. Simbólico e ritualístico.
Nenhum animal entende símbolos, a não ser por associação direta pavloviana. Meus cachorros, por exemplo, entendem que o som “fora” é um sinal de que têm que sair. Mas eles seriam incapazes de entendê-lo no contexto duma frase. Por escrito, então, nem pensar. Do mesmo modo, ainda que haja no reino animal rituais específicos, muitas vezes voltados à reprodução, ou mesmo que se possa tratar como rituais comportamentos instintivos que não fazem sentido algum em dadas circunstâncias, como o dos cachorros que rodam em círculos antes de deitar no cimento. Ora, este é um comportamento instintivo que prepara um chão de terra nua para que nele se deitem, arrancando sua camada superior mais quente e quaisquer insetos desagradáveis, e evidentemente não tem uso algum no chão de cimento. Mas seria possível chamar de ritual o que não tem símbolo, ou, ao contrário, tratar de símbolo o que é desprovido de qualquer ritualização contextual? Afinal, qualquer bate-papo é, de uma certa maneira, um ritual.
Estas questões estão pipocando e quicando pelo ossudo interior de minha caixa craniana nestes dias, porque está aqui comigo uma amiga querida para que juntos bolemos e façamos as pinturas e relevos do interior da capela da nossa comunidade religiosa. A religião, dentre todas as atividades humanas, é provavelmente de longe a mais ritualística e a mais simbólica, até por tratar de algo que vai além do visível, audível ou palpável: a eternidade, a re-ligação entre Criador e criatura, a saída do universo cartesiano. Como ver Deus, se o próprio São João da Cruz ensina que no alto da subida do Morte Carmelo há, como canta o idoso poeta baiano, “nada, nada, nada, nada”? Só Ele é, e Seu Ser nos é incompreensível. E se não se O vê, se não se O tem como entender, é forçoso que recorramos a símbolos, sinais e rituais.
Uma capela ou igreja, que é o local de encontro do Bem em Si conosco, com esta multidão de pessoinhas minúsculas que do pó vieram e ao pó voltarão, precisa de beleza
E daí, no projeto duma capela, nos vemos às voltas com símbolos, muitos símbolos. Dum lado, no ambão de onde será um dia proclamada a Boa-Nova, a águia de São João. Ora, aquele que Nosso Senhor amava certamente não tinha penas ou asas, nem se lançou jamais do Céu para catar pro almoço algum bichinho do mato. Do outro, também emplumada, a fênix de São Paulo, do púlpito do lado da Epístola. Toda fênix é um símbolo, mesmo por ser um bicho que jamais ciscou por estas terras sublunares. E, como símbolo de São Paulo, é um sinal da Ressurreição de Cristo que ele tanto pregou.
E o altar, que é ao mesmo tempo túmulo (desta feita literalmente; há relíquias de santos mártires – “amostras de tecido”, no dizer do povo do IML – dentro da sua pedra) e degrau principal duma escada para o Céu? E o coro, donde vem, de trás e de cima, o som do órgão e de vozes aparentemente descarnadas por não serem vistas? Tudo é símbolo, tudo é sinal, e tudo tem uso no ritual. Como a capela será usada para cursos de liturgia voltados ao clero – tanto ensinando a celebrar a forma clássica do Rito Romano quanto a entender o sentido místico mais profundo da liturgia de qualquer forma ou rito –, ela tem de ser um livro de sinais. Ou, ainda, o que um quase inimaginável Le Corbusier com QI de três dígitos consideraria uma “máquina de celebrar”. Um lugar que se encaixe à celebração, e no qual ela se encaixe, como uma mão destra e uma boa luva.
E estamos no Brasil, Terra de Santa Cruz, criada ouvindo as histórias dos Doze Pares de França, onde sobreviveram medievalices e catolicagens que já há muito foram esquecidas na Europa original. Daí, como minha amiga definiu, com os olhinhos brilhando de alegria, nossa capelinha há de ser barroco-bizantino-armorial. Armorial como o movimento do grande mestre Suassuna, que morreu quando eu também morria numa UTI, mas teve a graça de ir ter com a Compadecida enquanto os médicos, à força de choques e drogas, me mantiveram bem pra cá do Empíreo, só vendo o Cristo e o Bom Samaritano nas auxiliares de enfermagem, nos médicos, na minha esposa ao meu lado. Bizantina por ser pintada, decorada, cheia de detalhes, de símbolos que apontam para o sentido do rito que nela há de ser amorosamente celebrado. E, finalmente, barroca por mineira, por ter curvas, doces e exageradas curvas em que a nossa brasilidade se perde e se encontra a cada momento.
Do alto, um sino dará, ele também, sinal do Eterno: um sinal desta vez sonoro. Vibrações do ar em belas ondas esculpidas pelo contato do bronze rígido com o macio oxigênio, levando a todos os habitantes da região a grata notícia de que o Eterno mais uma vez tocará o finito, que Deus e o homem, já numa só Pessoa, far-Se-á presente, misteriosamente, nas sagradas espécies do altar. São símbolos, são sinais – visíveis e eficazes –, são partes do Rito, do ritual pelo qual se comunicam o aquém e o além, pelo qual os Céus se abrem.
Cada detalhe, cada sinalzinho, simbolozinho – dum turbantudo Maomé dividindo o chuço luciferino com Lutero ao Sol divino e a Lua mariana, passando pela farta passarada de pelicanos, fênixes, pavões, águias e, quiçá, galinhas d’angola – deve apontar um mesmo fim; a mesma Causa Primeira que há sempre de ser também o derradeiro Fim. O mesmo do rito, o mesmo do prédio como um todo. E, autorreferenciando-se, São Tomás de Aquino, Doutor Angélico, o padroeiro, entronizado em asas de anjos por sobre o retábulo, carregará na mão a mesma capela em que foi colocado. Ideal seria que se pudesse olhar dentro dela e lá ver outro São Tomazinho, com outra capelúncula, dentro da qual, como num delírio de Escher, haveria outro retábulo, com versão ainda menor do mesmo santo já fractal. Pois é assim que funciona o rito: cada parte sua é maior que o todo, que por sua vez é infinitamente maior que a soma das partes. Como, não sei; só sei que é assim, grande e temível mistério.
Cada parte já nos vem “de fábrica”, como os programas que já chegam com o celular, para que a reconheçamos ao encontrá-la. Uma viagem de ácido, cogumelo ou daime faz brotar, desordenadamente, o que vemos ordenado nos sagrados mistérios, exatamente por tudo aquilo já estar lá dentro, escondidinho. Daí haver bobos que os chamam de “enteogênicos”, “geradores de divindade interior”. Bobagem: o que há cá dentro é um convite para a festa, não a própria festa. E assim na religião reconhecemos, diria Platão; reconhecemos por uma iluminação divina, completaria Santo Agostinho. Mas o fato é que nada criamos.
A religião, dentre todas as atividades humanas, é provavelmente de longe a mais ritualística e a mais simbólica
E quando nos metemos a fazê-lo, ai!, enfiamos os pés pelas mãos em grande estilo. Anos atrás tive o desprazer de ser submetido a um curso que deveria dizer-se de arquitetura sacra, mas cujo nome, mais politicamente correto impossível, era algo na linha de “espaço celebrativo”. E “espaço”, espaço nu, era o que pregava a freira de shortinho (que não se ajoelhava para a consagração, claro) que o ministrou. Tudo o que ela apresentava, e era mulher culta, servia apenas para ser apontado como démodé, ultrapassado, coisa arcaica de tempos primitivos. Nós, “adultos”, segundo ela, precisávamos era de um galpão calvinista, nu, brutalista, sem sinais, sem símbolos, sem nada que não o essencial duma liturgia já dessinalizada.
É espantosa a ignorância da natureza humana de quem propõe estes espaços, ou outros que lhes parecem contrários, mas recaem no mesmo erro, como as capelas de paredes de vidro pelas quais se vê lá fora o mato ou a grama, com uma mesa nua de altar. Tentei apontar isto para a freira, que nos levou para ver uma igreja em barroco primitivo como exemplo do que não se deveria fazer. Saindo de lá, mostrei-lhe como as casas pobres, barracos paupérrimos, tinham pisos frios com desenhos rebuscados, ainda que as paredes não houvessem sido emboçadas ainda. Afinal, mostrei-lhe, não é ser enganado que deseja o vulgo, sim ser embalado pelo Belo. E uma capela ou igreja, que é o local de encontro do Bem em Si conosco, com esta multidão de pessoinhas minúsculas que do pó vieram e ao pó voltarão, precisa de beleza . As suas imagens mesmas são a Escritura do analfabeto, como se diz, e quando se sabe que mais de metade dos universitários de nossos tristes trópicos são analfabetos funcionais, mais importante ainda é a sua presença.
Tudo que o homem faz tem por base, de alguma forma, a sua natureza. Mesmo a graça divina não a nega, mas a aperfeiçoa. E quando o altíssimo e altissonante simbolismo do gregoriano, que o Concílio Vaticano II recomendou que fosse ensinado ao laicato, é substituído por violões ou – horresco referens – baterias e guitarras, num power trio mefistofélico que abafa e nega o divino silêncio, o que se nega ao homem é nada mais nada menos que Deus. Deus está no silêncio, não no ruído. Deus está na imagem pia, não na parede desnuda ou – o que talvez seja ainda pior, por mais sutil – no vidro pelo qual a beleza exterior afasta da beleza que tenha sobrevivido no simbolismo ritual da liturgia. Deus, que é invisível, torna-Se para nós, para nosso benefício, visível em aparência de pão, com Sua graça sendo sinalizada pela própria aparência (e realidade!) humana dos santos representados nas imagens.
São Lourenço com sua grelha, mostrando que, se os romanos o quiseram fazer de picanha, Deus o fez super-homem. São Pedro com sua cruz de ponta-cabeça, por se ter considerado indigno da mesma Cruz de Nosso Senhor (não lhe nego a razão; afinal, o próprio Senhor teve de barrar-lhe o caminho quando tentava fugir ao martírio). São Paulo e a espada que conseguiu por carteirada de cidadão romano, escapando ele também da mesma cruz. Cada um deles sinal da graça invisível, apresentados a nós como exemplo para que tentemos encontrá-la. No silêncio do coração, e na voz dos vitrais e imagens; jamais o contrário!
Pois a estética minimalista do modernismo de esquerda, com sua forte influência gnóstica e nominalista, visa justamente evitar que se “cale a voz” que o mesmo poeta baiano nos explica, sempre com São João da Cruz, ser precondição para falar com Deus. Ao contrário, mesmo: quanto mais nuas as paredes maior o diálogo interior, maior a efervescência do imanente introjetado. Desprovido de símbolos, sinais e rituais, o homem se entrega ao papagaio interior que currupaqueia sem parar, como uma dúzia de rádios transmitindo diferentes jogos de futebol ou corridas de cavalo. Lembramo-nos, imaginamos, planejamos, e fazemos vivo e quase palpável dentro de nós o mundo exterior que nos cega à presença do Altíssimo, que cobre de ruído a Sua suavíssima voz. Só no silêncio interior, que se alcança pela profusão de sinais exteriores que nos guiem no reto caminho, é possível escutá-l’O. Só ali o que é puramente humano pode ser depurado e elevado, conduzindo-nos no mesmo estreito caminho por que nos precederam aqueles que do alto de suas imagens nos contemplam, não como os 40 séculos contemplavam os soldados de Napoleão, mas como o Eterno contempla o contingente, como o Amor contempla o pecado, como o Sinalizado contempla o sinal.
Voltemos, pois, à riqueza tão humanamente necessária e tão divinamente adequada a nós dos sinais. Da beleza ritual. Dos símbolos que elevam a mente para que ela puxe a alma e possamos, finalmente, pelo “nada, nada, nada” de que fala São João da Cruz, chegar Àquele de Quem tudo vem e a Quem tudo deve ir. Sem sinalização, é impossível não se perder na viagem. Sem silêncio, é impossível ouvir a voz do GPS da graça, que nos sussurra, quietinha para não nos obrigar, que a estrada certa é a do meio. A estreita.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos