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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Força instável e primitiva

"O rapto das sabinas" de Pietro da Cortona.
"O rapto das sabinas" de Pietro da Cortona. (Foto: Reprodução)

Num tempo de juízos de valor prefabricados, é por vezes necessário que haja alguém que aja como um “bobo da corte”, aquela figura clássica do Ocidente. Trata-se basicamente de alguém que não tem nada a perder, de alguém que pode ser ignorado em segurança (“é um palhaço, só fala besteiras!”), e que por isso mesmo pode dizer o óbvio àquele cujos ouvidos normalmente só ouvem as mentiras de seus bajuladores, o rei. O óbvio, muitas vezes, esconde-se hoje por trás de explicações retorcidas em que a realidade tem de se dobrar a uma ideologia. E esconde-se tão bem que grande parte das pessoas acaba incapaz de percebê-lo, mesmo quando ele deveria saltar-lhes aos olhos. E é nesta hora que nós, os bobos, dizemos para divertimento da multidão que o rei está nu. Ou que “[a] sexualidade é uma força instável e primitiva enraizada no instinto animal”, como disse Camille Paglia em recente entrevista a um jornalão paulistano.

Quem duvida disso? Quem poderia duvidar disso? Mas se duvida, e muito, por aí. Aliás, não apenas se duvida: nega-se, peremptoriamente, com a elite tampando os ouvidos e cantarolando “lá-lá-lá, não estou te ouvindo”. Finge-se que o sexo é uma diversão, apenas. Algo controlado de um lado pela pílula – que impediria, em tese, que nascesse dele uma criança; as tromboses e demais problemas de saúde decorrentes de seu uso são varridos para baixo do tapete – e, de outro lado, pela famigerada “camisinha”, que tenta criar uma barreira física entre seres humanos a apertar-se um contra o outro, de modo a que não se misturassem suas secreções. Evidentemente, como estas são quase líquidas e o álcool – que diminui tremendamente a habilidade motora fina, necessária para vestir tal “roupa” a contento – sempre foi e continua sendo o maior lubrificante da sexualidade humana, a coisa não funciona muito como previsto. De outro lado ainda, temos ainda, para tentar fechar a sexualidade no seu cercadinho de elefante de circo do século passado, os antibióticos e, hoje, o coquetel anti-HIV e a vacina anti-HPV (que parece, aliás, estar associada a uma brutal diminuição na fertilidade feminina, mas presumo que isso possa ser percebido como uma vantagem por quem faz tanta força para separar o sexo da reprodução, ou mesmo da conjugalidade). Para garantir a rotatividade, há sempre os aplicativos de celular, em que se pode encontrar um parceiro, parceira, parceirx, o que se bem entender, para sexo sem compromisso. Correndo por fora na tentativa de domar a “força instável e primitiva enraizada no instinto animal”, temos ainda a procriação assistida, que – como previsível – é provavelmente o ramo da medicina em que mais ocorrem abusos sexuais de médicos contra suas pacientes. “O que Deus uniu o homem não separa”, poderíamos dizer de modo algo irônico, mas bem verdadeiro.

Uma história de horror recente, ocorrida no Distrito Federal e mais ou menos escondida pela grande mídia por razões que se mostrarão evidentes ao longo deste texto, mostra bem os horrores de quando se brinca com algo que é pior que fogo, que é mais selvagem que os pobres leões e elefantes dos circos de minha infância. Duas companheiras do mesmo sexo assassinaram cruelmente o filhinho de 9 anos de uma delas, diante da filhinha igualmente pequena da outra. Ambas viviam juntas, pulando de cidade em cidade, de estado em estado, em fuga permanente dos pais das crianças, que – com razão – queriam tirar-lhes os filhos. Descobriu-se depois que o pobre menino já havia sido emasculado: coisa de um ano atrás, sua genitália fora cortada fora pelas suas assassinas, que tentaram ainda criar nele uma genitália feminina a golpes de lâmina de barbear.

Vejam bem: o problema não é o sexo das assassinas, ou mesmo o sexo entre as assassinas. Isso é assunto particular delas, e a convivência afetuosa de duplas de mulheres na mesma casa é coisa que sempre aconteceu, com sexo ou sem sexo. E, se com sexo, é questão particular lá delas, não assunto público. O problema é que, ao tentar domar algo tão radicalmente feroz e interno quanto o sexo, de modo tal que a esta fera fosse permitido passear por entre a plateia do circo, ocorreu o previsível, e um dia o leão comeu uma criança. A nossa sociedade criou para si uma monomania sexual, como aliás qualquer sociedade em decadência (Calígula estaria em casa hoje em dia, e Nero não se espantaria em rigorosamente nada se fosse apresentado a Pabllo Vittar); fixou-se em sexo. Fez do sexo o assunto dominante, um vício, uma necessidade visceral quando, na verdade, ele é algo quase completamente domável numa sociedade em bom estado de funcionamento. Não o é completamente, veja bem o meu caro leitor: sempre houve quem pulasse a cerca, enfiasse o pé no balde, ou qualquer outra pitoresca expressão que se queira usar para o desregramento sexual.

Dentro de um quadro normal, de uma sociedade que não esteja em decadência terminal, todavia, sexo é algo que interessa aos cônjuges (e/ou amantes), e só a eles. Não é algo que se discuta em público, nem – muito menos – algo de que se faça propaganda, por vezes absurda. Já na nossa sociedade é difícil, para não dizer impossível, passar os olhos nas notícias sem que se tenha várias vezes a atenção atraída para a sexualidade de alguém. Programas de tevê se propõem a ensinar a fazer safadezas de corar um frade de pedra. A esmagadora maioria da população masculina declara abertamente assistir regularmente a pornografia, de que é mais difícil fugir que encontrar. Novelas são anunciadas pela presença de personagens “trans” ou duplas do mesmo sexo. Ridiculariza-se a mera ideia de alguém casto, como deveria ser qualquer solteiro ou qualquer pessoa divorciada – para não falarmos de quem fez um voto de celibato (acerca do qual lembro que “celibato” é um sinônimo de “solteirice”, não de castidade, que deveria ser apenas uma consequência da condição de solteiro). Ora, que se pergunte aos casais casados de longa data se seu leito conjugal continua sendo o lugar movimentado que certamente há de ter sido nos primeiros meses. Aliás, hoje nem isso, na medida em que, em geral, a festa de casamento é feita depois de anos de coabitação.

Mas não. Na fantasia pregada pelas elites, a vida é feita de sexo. Todos têm relações sexuais ao menos duas ou três vezes por semana, do contrário (imagina-se) definham e morrem. A genitália masculina aparentemente infla-se como um balão, explodindo se não esvaziada algumas vezes ao dia (daí o atrativo da pornografia, aliás, este eficaz treinamento para não gostar de ter relações com a própria esposa). Os solteiros têm como objetivo único na vida arranjar parceiras sexuais, e tudo o mais não passa de meio para isso. Os casados devem convidar terceiros para o leito conjugal, para “apimentar” sua vida sexual quando as compras de mês no sex shop já não dão pro gasto.

E, coisa infinitamente mais preocupante, a sexualidade não apenas é separada da reprodução, o que levou já a acontecer tudo o que Paulo VI previra décadas atrás, mas ela se desvencilha, finalmente, de sua conexão com a própria biologia. Ora, a sexualidade é biologia em ação. Ela é o mecanismo de reprodução da espécie (pudera que quanto mais rico – logo decadente – é um país, menos filhos as pessoas têm, levando a Europa a ter de importar rapazes pobres do Terceiro Mundo para trabalhar e bancar as pensões dos nativos estéreis). Para este fim biológico, o prazer é apenas um atrativo, exatamente como o sabor da comida é o atrativo para que nos alimentemos e como o aparelho digestivo é o mecanismo pelo qual nos apropriamos da comida. Mas hoje há quem tome vodca pelo reto ou pelo olho, e há quem também confunda o aparelho digestivo com o reprodutivo e use um para estimular o outro. E tome programas de tevê dando ideias para “apimentar” mais e mais o tal sexo, forçosamente cada vez mais insosso! E tome comidas dietéticas, com as quais as pessoas podem se entupir de sal e gordura, com sabor mais doce que melado, sem – dizem – engordar um grama!

A dissociação do sexo e da biologia, quase corolário da dissociação do sexo e da reprodução, levou à criação de identidades sexocêntricas. Em outras palavras, como já tive ocasião de mencionar em outros textos, as pessoas passaram a se definir pelo que elas desejam imediatamente, ou seja, pelo que elas percebem não ter, por aquilo de que elas sentem falta. É como se uma grávida com desejo de morangos subitamente passasse a ser, ela mesma, alguém cujo “ser” gira ao redor de não haver morangos à mão. Como se ela deixasse de ser Fulana de Tal, esposa de Beltrano, filha de Sicrano e Sicrana, mãe espectante de Bellana, formada em tal e tal coisa pela faculdade tal, etc., e passasse a ser apenas um gigantesco vazio em forma de morango, orientada a preenchê-lo com o fruto ausente. É o que ocorre com quem se define pelo que deseja, não pelo que efetivamente é: a pessoa passa a tentar basear o próprio ser, o próprio estar-no-mundo, num desejo, numa fantasia, numa sensação de que só se sabe ser externa ao sujeito (que desta forma se torna objeto, reificando-se em atenção à ausência categorizadora).

Pois as duas mulheres que assassinaram assim o pobre menino viviam assim. Do corte de cabelo à roupa e sapatos, passando por todos os demais aspectos de seu modus vivendi, elas se haviam dado uma identidade que não era elas, mas seus desejos. Quem estava ali já não era um par de pessoas que (a seu modo) se amavam, mas "duas lésbicas contra o mundo". Como também já escrevi alhures, defino a minha sexualidade (que nem é da conta de ninguém; uso-me como exemplo para não ser ainda menos gentil e usar terceiros) ao redor de minha esposa: não tenho o direito de apontá-la para outro alvo. Assim, não sou homossexual ou heterossexual; sou minhaesposassexual. E, se minha esposa está ausente, eu que tenha a decência de sublimar minha sexualidade para outros finas mais altos, em vez de atirá-la contra pessoas que não têm nada a ver com isso. Não era o caso das psicopatas que mataram o menino para “começar uma vida nova sem ele” – sem aquele machinho. Havia o pai dele a procurá-lo como um louco, mas provavelmente o medo de descobrirem a mutilação por elas perpetrada as impediu de devolver o filho ao pai. Quanto a como elas lidavam com a própria identidade, e, mais ainda, com a própria feminilidade, basta ver as fotos delas. Elas se percebiam como lésbicas, como pessoas com um vazio em forma de mulher no próprio ser, e é isso que elas buscavam transmitir, mais que qualquer identidade própria ou que qualquer amor que houvesse entre as duas. Elas haviam perdido a própria identidade.

Mas a biologia nunca se afasta. Excitar o corpo sexualmente é excitar a pessoa para a reprodução. Por mais que duas mulheres (ou dois homens, ou duas pessoas com roupas de astronauta e camisinhas, ou qualquer outra combinação que as pessoas usem no intuito de masturbar-se a dois) venham a suscitar-se orgasmos uma com a ajuda da outra, seus corpos estão sendo enganados. Assim como uma pessoa que masque chicletes o dia todo provavelmente vai acabar com uma úlcera, pelo simples fato de que aquela atividade prepara o estômago para digerir uma comida que não vem nunca, quem se excita e não se reproduz, e não se une como casal, terá inevitavelmente problemas. O sexo, todavia, consegue ser uma fera mais perigosa que a fome. Poucas pessoas devoram cadáveres, mesmo quando não há mais nada para comer. Raras, contudo, são as pessoas que jamais deixaram o tentáculo da própria sexualidade abraçar um alvo errado (da proverbial mulher do próximo ao que já tenha pesado em sua consciência, meu bom leitor; não quero saber. Ninguém quer, e se quer é mal-educado).

Assim, as duas mulheres, já presas de uma fantasia vendida pela sociedade, projetaram psicoticamente no pobre menininho, e só nele, que era quem estava à mão e insultava com sua masculinidade o “lar” sempre transiente em que viviam, um ódio à masculinidade que também absorveram da mídia, do discurso, das “explicações” públicas do que seria essa "identidade lésbica". E, lâmina na mão, mutilaram o menino para tentar efetuar nele a mágica que a tevê não cansa de afirmar mentirosamente possível, fazendo de um menino uma menina. Qual a diferença entre essa dupla de psicopatas, vivendo profundamente enfiadas na ilusão que as elites lhes vendem, que saíram do Acre para perpetrar suas barbaridades no Distrito Federal, simbolicamente o coração do Brasil (pelo menos é o que queria JK), e os médicos que fazem mutilação extremamente semelhante em nossos hospitais, com o dinheiro de nossos impostos? A primeira diferença, claro, é que médicos usam anestesia, assepsia, são pessoas com treinamento cirúrgico, e tudo o mais. Mas o que eles buscam é exatamente o mesmo que a dupla de mutiladoras buscava: fazer magicamente de um menino uma menina. Fantasiar cirurgicamente uma pessoa de um membro do sexo oposto, como se cada célula de seu corpo não gritasse o sexo a que realmente pertence.

É quase a Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, em que um cientista louco – louco, mas ciente das melhoras práticas cirúrgicas de seu tempo, claro; um louco eficiente, altamente profissional – criava híbridos de homens e feras. Um homem castrado, com sua genitália literalmente virada do avesso para simular uma genitália feminina, não é uma mulher, nunca foi uma mulher e jamais será uma mulher. Ele pode beber aos galões hormônios femininos; pode usar maquiagem, deixar crescer os cabelos e as unhas, usar saltos altíssimos; pode mudar os documentos; pode exigir que todos o tratem no feminino, sob penas medonhas. Mas não pode, não consegue, jamais alcançará ser uma mulher. “Mulher é outro bicho”, já dizia Tom Jobim. Do mesmo modo, uma pobre moça que tem a sua ilusão auxiliada por um mau médico (primum non nocere!, a prioridade é não fazer o mal, manda o juramento hipocrático) que lhe retira as glândulas mamárias como se fossem peso extra, não o local do amoroso preparo da alimentação de um seu filho, e lhe dá venenos hormonais para tomar até que lhe cresça uma barba; mesmo que inventassem (creio que ainda não exista, mas confesso que não faço muita questão de me manter tão a par do que os Drs. Moreaux de nosso tempo estão fazendo) uma genitália masculina falsa, quiçá uma que subisse como um zepelim ao apertar de um botão, ela jamais seria um homem.

Mas a dupla de psicopatas de que falo, dominada por um ódio à masculinidade que “vem com o território” da pseudoidentidade que assumiu, tentou fazer num fundo de quintal o que os Senhores Professores Doutores Moreaux fazem às abertas nos hospitais. E daí, claro, o pobre molequinho continuou sendo um molequinho (e molequinho é uma espécie bastante característica, que proponho seja tido como o famoso elo perdido entre o homem e o sagui), só que um molequinho sob cujas calçolas jaziam as evidências (ou melhor, evidenciava-se triste ausência por conta) do crime cometido pela sua mãe e a companheira. Só havia, então, uma solução para criar o paraíso sem homens com que sonhavam para sua microcomunidade nômade: matá-lo. E esquartejá-lo, e livrar-se do cadáver. E, presume-se, em breve mudar-se de novo, para algum outro lugar onde ninguém jamais as tivesse visto com o pobre molequinho.

Tudo isso vem do efeito que teve sobre uma dupla de pessoas – já evidentemente dotadas de psicopatia em grau avançado – uma ilusão venenosa que a nossa sociedade prega: a de que sexo não é nem biologia, nem algo relacionado à reprodução. Que, ao contrário, é um alegre brinquedo a brincar com desconhecidos, algo transformável de lá pra cá e de cá pra lá, sem que jamais haja consequências indesejadas. Outras pessoas, com outros problemas mentais, vão provocar outras tragédias com o mesmo veneno: desde os pais que – legalmente, com absurdas autorizações judiciais – envenenam os próprios filhos com hormônios e outras poções-de-bruxa médicas para evitar que chegue à puberdade ou para trocá-la pela puberdade do sexo oposto, fantasiam-nos de pessoas do sexo oposto ou mesmo levam-nos para que os Doutores Moreaux de hoje os mutilem. Tudo, claro, legalmente. E com os aplausos dos televisivos, das autoridades, de toda a elite e de suas claques. A diferença é que, enquanto uns aproveitam para “sapatear na cara da sociedade” (ou, diria eu, do bom senso, da biologia e de outras vítimas de tal sapateado) ao fazer tudo legalmente e, via de regra, pelo SUS, as loucas do DF preferiram o caminho da iniciativa privada, do fundo de quintal. Não deu certo, mas em nenhum caso poderia dar certo.

Esta visão tresloucada da sexualidade é apenas um sintoma de um corpo social em avançado estado de putrefação. Como já disse, em Roma era muito semelhante; a diferença é apenas a nossa técnica cirúrgica e farmacêutica, mais eficaz que a deles. A putrefação de uma sociedade leva a tragédias. Algumas delas a visão fantasiosa das elites consegue transformar em supostas vitórias; é o caso da “visibilidade trans”. A outras não se tem como fazê-lo: é o caso da morte do pobre menino no DF. A loucura foi a mesma, as pseudossoluções mutiladoras foram as mesmas; só variou a visibilidade da sociopatia de quem as perpetrou.

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