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Silêncio

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Dizem as más línguas que o silêncio seria a ausência de ruido. Nada mais falso; é um pensamento supersticioso, oriundo da péssima metafísica moderna que, contra tudo o que há de mais evidente, acha que reduzir as coisas a números nos faria de alguma forma conhecê-las melhor. Longe de ser algo negativo, uma mera ausência de ondas vibratórias, o silêncio na verdade é o estado natural das coisas, é algo realmente existente. Ele é o substrato da realidade intelectual e espiritual.

Já o ruído é uma destruição objetiva daquele silêncio realmente existente, um buraco-negro, uma negação de um bem realmente existente. O silêncio, como o ar e a água, é algo necessário à saúde e à própria sobrevida do homem. Sem silêncio, perde de vista o homem aquilo que lhe é mais essencial, mais íntimo. Nossa própria alma, poder-se-ia dizer, só consegue fazer-se ouvir, ou mesmo fazer-se notar, no silêncio que a torna audível e que permite, como boa ferramenta que é, que com ela dialoguemos.

Os físicos, pobrezinhos, presos àquele modelo de realidade tão distante da própria realidade das coisas que as reduz ao menos importante de tudo, que são suas medidas, percebem o silêncio como ausência de ondas sonoras. Para eles silêncio é o ar parado. Mas isso não é verdade, assim como não é verdade que saber o peso e o diâmetro de uma fruta madura nos aproximem mais das delícias de conhecê-la sumarenta e saborosa, afetando-nos num supra-sumo de delícias todos os sentidos que com ela entram em contato. Uma fruta-do-conde madura pode ter doze centímetros de diâmetro, mas dentre todas as informações que se possa ter sobre ela esta é sem dúvida alguma a menos importante. Pobres físicos, como é triste o mundo em que tentam viver! Ainda bem que há frutas maduras para arrancar-lhes de seu triste torpor.

Assim como a fruta é muito mais que seu peso ou diâmetro, o silêncio é muito mais que um ar parado como um copo de cerveja choca esquecido num balcão que a faxineira limpa pela manhã. Um pássaro que canta ao longe, na verdade, constrói silêncio a seu modo. Alguns pequenos ruídos, como a brisa que move uma folhagem ou a água que canta melodiosamente ao esgueirar-se por entre os seixos de um riachinho são componentes – para reduzirmos a realidade à triste ficção dos pobres físicos – “vibratórios” do silêncio.

O silêncio é, na realidade… Minto. O silêncio é que é a realidade, a própria realidade. É ele que cria as condições para a existência de tudo o mais que existe, fazendo-se de palco ou fundação elementar para as presenças, boas e ruins, de todo tipo de som, música e ruído. Um quarteto de cordas de Haydn só pode existir por sobre uma base, um “piso”, um “chão” construído de silêncio. Do mesmo modo, mas na mão inversa, é o nobre silêncio, a existência sutil e modesta do silêncio, que é violentado pelo escapamento aberto da moto de algum rapaz que substitui por ruído as capacidades sedutoras de que não dispõe. Uma mala de carro cheia de amplificadores e caixas de som não é apenas um atestado de impotência sexual e atrativa: é um instrumento destinado a destruir algo da própria tessitura da realidade, uma arma de destruição em massa que substitui por doloroso lixo sonoro o silêncio que faz o mundo ser mundo, que faz a realidade ser o ambiente adequado ao homem tal como desejado e planejado pelo seu Criador.

É por isso que é tão assustador ver o crescimento exponencial do ruído propositadamente buscado, do barulho cuidadosamente colocado para impedir a existência do silêncio, para destruir, obliterar esta parcela tão importante da realidade. Vai-se, por exemplo, a um consultório médico, lugar onde deveria, por tudo o que é mais sagrado, haver se não silêncio total, ao menos uma forte tentativa e uma respeitosa busca dele. Lá, todavia, encontra-se entronizada de tal modo que não há como escapar uma tevê ligada, fincando ruidosamente, nos mecanismos mentais e anímicos de todos os infelizes que esperam sua vez de serem atendidos, a risada (que parece apontar leves problemas mentais) de uma senhora de cabelos estranhos que se dedica a conversar com um papagaio de pelúcia. Anda-se na rua e o que se vê são miríades de jovens com os ouvidos ligados por fios a algum dispositivo que produz tamanho ruído que quem tem o desprazer de sentar-se ao lado deles é forçado a ouvir os estalos e chiados repetitivos que passam por música para as pobres criaturinhas, a quem foi negada a sua herança de direito e que não conhecem absolutamente nada da riquíssima tradição musical ocidental que lhes pertence como o formato de nariz que herdaram do avô.

A música, a boa música, é ela também uma espécie de silêncio. É um silêncio harmonioso, um silêncio construído de pontos e contrapontos que delicadamente somam-se uns aos outros e tornam a realidade mais real, a terra mais telúrica e o céu mais celestial. Mas música deve ser ouvida ativa e atentamente, não usada como mero artifício destrutivo para negar a realidade tão superior do silêncio desejado pelo nosso Criador. Não é música real encher o ar com vibrações sonoras que na verdade não interessaria muito se fossem produto de vozes humanas falando coisas absoluta e completamente desinteressantes ou melodias pegajosas entranhando-se no nosso cérebro ao ponto de parecer ser necessária uma intervenção cirúrgica para ver-se livre daquela “minhoca de ouvido”, como dizem os alemães. Ao contrário; isto é uma bomba, um vazio destrutivo, uma negação, uma negatividade em estado bruto que impede a existência de algo que – repito-me propositadamente por ser importante – é tão crucial para a nossa alma, para o nosso espírito, quanto a água e o ar o são para o nosso corpo.

Silenciar o ambiente externo é apenas o prelúdio para o necessário silêncio do ambiente interno, da nossa alma, do nosso espírito, daquela parte absolutamente essencial do nosso ser que vai além do meramente animal. Tamanduás, hipopótamos e amebas não entendem música, ainda que – também eles – tenham necessidade de silêncio. Para o homem, todavia, o silêncio vai além. Há todo um processo construtivo de si mesmo, um mecanismo pelo qual tijolo após tijolo da própria individualidade é erigido dentro do homem no silêncio, naquele silêncio interno em que calamos as vozes incessantes que nos perturbam com irrelevâncias sobre política, vaidades, fofocas e demais temas que na verdade só são objeto de conversação pela incapacidade do vulgo de subsistir ao silêncio.

No silêncio exterior – que, repito, pode tomar a forma do canto de um pássaro ou de um concerto de Mozart – abre-se espaço para o silêncio interior do homem. E é neste silêncio, ou melhor, neste espaço cuidadosamente alicerçado no real e nobre silêncio da Criação, que o homem pode crescer. Um ser humano que ocupe os ouvidos incessantemente é alguém condenado a não amadurecer, um Peter Pan bigodudo e com azia perpétua, que se torna chato e desagradável como os adultos do conto por não ter em si aquela Terra do Nunca que só pode existir quando o silêncio lhe proporciona sólidas bases de existência. O ruído que nela aparece é um ruído que oferece sempre um perigo: é o crocodilo que emite sons do despertador que um dia comeu.

É por isto que é necessário, que é crucial, que nos demos sempre este presente tão necessário que é o silêncio. Sem ao menos algumas horas de silêncio real por dia – ainda que um tapa-ouvidos se faça necessário para tal, dada a potência das aparelhagens de som, em relação via de regra inversa à capacidade intelectual e ao bom-senso de seus proprietários – o homem não cresce. Não se aprimora. Não se torna um homem real, permanecendo preso àquela parte abominável do processo de amadurecimento que é a adolescência, em que a capacidade de fazer imbecilidades é máxima e a capacidade de perceber o quanto elas são imbecis é mínima. Afinal, só o que há de bom na adolescência é que um dia ela acaba. Ou, antes, pode acabar; afinal, se a vítima desta fase cair no erro de negar-se o silêncio que é seu direito, ela há de passar décadas presa àquele pesadelo em que não há mais nem as delícias da infância nem as conquistas da maturidade.

O silêncio, repito, existe. Ele é o habitat de nossa alma, o alimento do nosso espírito, a condição básica e elementar na qual pode se desenvolver realmente a natureza humana. Faça a experiência. A princípio por um final de semana, arranque da tomada todos os produtores de ruído – tevês, computadores, aparelhos de som –, tampe os ouvidos de alguma maneira e vá para a cozinha preparar algo, cuide de suas plantas, escreva ou desenhe ou, ainda, deite-se no sofá e leia um bom livro. Faça disso aos poucos um hábito, e dê-se regularmente férias do ruído incessante de nossa sociedade. Vai ser nelas que você conseguirá ir além, vai ser nelas que você conseguirá tornar-se plenamente quem você é chamado a ser. Em silêncio.

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