Um sinal ineludível de decadência é o abandono do patrimônio cultural da civilização, preferindo a ele as últimas invenções do populacho inculto. Isto pode ser visto, por exemplo, na preferência das classes médias e altas pelas mesmas porcarias sonoras que envenenam os ouvidos e o cérebro das classes mais baixas, empacotadas e vendidas como obras de gênio pelos meios de comunicação de massa. O funk, surgido das mesmas favelas que nos deram o chorinho, tem hoje uma penetração muito maior nas classes mais altas que esta modalidade tão mais civilizada de música teve no seu apogeu.
O mesmo pôde ser percebido de forma dramática e desastrosa na destruição quase completa do Museu Nacional. Quando, na hora do incêndio, eu vi as fotografias da obscena deflagração do antigo Paço Imperial de São Cristóvão, comentei com meu filho que só sobraria o meteorito de Bendegó. E foi quase isso. Já tive ocasião de circular pelas áreas do museu que eram fechadas ao público; as coleções eram espantosas em sua diversidade. Literalmente milhões de borboletas, uma diferente da outra, por exemplo, serviam de padrão para a identificação de espécies brasileiras. Gravações de línguas extintas. Fósseis. Pedras de todo tipo. Múmias. Insetos. Era o Brasil e o mundo, ali presentes para estudo e conhecimento passado, presente e futuro. As áreas abertas ao público eram a minúscula ponta de um enorme iceberg.
O Museu Nacional foi, desde seu início, um trabalho de amor à ciência e de amor ao conhecimento organizado, erigido pelo esforço incansável de milhares de cientistas, começando ainda na Corte de dom João VI e vindo até nossos dias. Dois séculos de coleta e pesquisa de elementos datando, por vezes, de milhões de anos no passado. E tudo isso tornou-se literalmente fumaça e cinzas.
Quando trabalhei lá, décadas atrás, a má conservação do edifício já era evidente. As paredes, todas elas, eram descascadas. Fios elétricos corriam pelo chão e pendiam do teto, muitos deles evidentemente ressecados e prontos a causar um curto-circuito como o que provavelmente ocasionou o incêndio que consumiu esta enorme fração das fontes primárias do conhecimento científico brasileiro.
A ciência avança, e com ela os meios de exame. Uma múmia fechada no caixão, como lá havia, hoje pode ser submetida a exames não invasivos que poucas décadas atrás existiam apenas nos sonhos dos cientistas. Do mesmo modo, as coleções de fósseis, aracnídeos e o que mais houvesse não haviam cessado, e jamais cessariam, de oferecer novos insights científicos. Do passado, dos elementos coletados carinhosamente ao longo dos séculos, vem o futuro do conhecimento e da pesquisa. O assassinato do Museu Nacional – pois é disso que se trata; o país deixou de dar-lhe o essencial para sua sobrevida, como alguém que lentamente mata de fome e sede seu próprio pai – não foi apenas uma perda do passado, mas a negação de um futuro que agora jamais poderemos conceber.
Ao mesmo tempo, o governo gasta fortunas com luxos, besteiras e pura degeneração. Os gastos com o bufê dos aviões que levam políticos para lá e para cá foram maiores que a verba do museu. Fortunas são dadas a artistas cuja popularidade faz com que elas não sejam necessárias. Oficinas de bateção de tambor e hip-hop são levadas às favelas com dinheiro público, como quem afirma que preto e pobre só é bom para bater tambor e enfileirar xingamentos num microfone. E, enquanto isso, o nosso passado, fincapé do nosso futuro, arde em chamas por não haver dinheiro para a troca da fiação. Para a pintura das paredes. Para a proteção da magnífica biblioteca de Antropologia Social, que virou um imenso cinzeiro sujo.
Não se trata apenas de desmazelo do governo Temer, do governo Dilma ou do governo Lula. É muito mais que isso. Trata-se de um abandono completo daquilo que nos faz ser quem somos, do passado sobre o qual se erige o nosso presente e que deveria orientar e iluminar nosso futuro. O museu não ardeu por mera incúria política, ainda que esta seja indubitavelmente a causa imediata das condições em que estava, que causaram o incêndio. Ele ardeu porque o Brasil esqueceu quem é. Esqueceu a glória do Império. Esqueceu nossas profundíssimas raízes na cultura da Civilização Ocidental. Esqueceu, em suma, o próprio nome, o próprio rosto. Ao olhar-se no espelho, o Brasil atual não vê mais as glórias lusas, não percebe mais o brilhantismo polimático de dom Pedro II – a quem tantas das peças perdidas foram dadas –, não ouve mais a voz de Padre Antônio Vieira (ou mesmo a de Antônio Conselheiro, que a seu modo lutou pelo nosso passado). Ele vê apenas estrelinhas da tevê e cantoras de funk carioca, modas efêmeras sobre as quais nada se pode construir. Só resta o vazio, a quem esqueceu quem é. Só resta a triste solidão de quem não se reconhece mais no espelho, espelho de que enorme parte se esfacelou domingo passado, na Quinta da Boa Vista. O Brasil ficou órfão esta semana.
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