• Carregando...
(Foto: Marcelo Elias/Arquivo Gazeta do Povo)
(Foto: Marcelo Elias/Arquivo Gazeta do Povo)| Foto:

Passei três anos e meio fora de casa. Minha impressão é de um tempo muito mais longo, especialmente por terem sido estes os piores anos da minha vida. Saí de casa em julho de 2014 para passar um fim de semana fora; estava me recuperando de um infarto, voltando ao trabalho e pensando que pela primeira vez desde que meu coração se fizera notar eu estaria botando a cabeça para fora d’água. Subi na moto e peguei as três ou quatro horas de estrada que me separam da minha cidade natal, para visitar uma tia que acabara de perder uma amiga querida numa dessas estupidezes da criminalidade galopante que devasta o nosso Brasil. Na volta, encontrei-me de frente, em contato imediato do maior e mais doloroso grau, com uma picape que vinha na direção contrária. Peguei fogo da cintura para baixo, e quebrei ossos suficientes para garantir que nunca mais andaria ou sentaria normalmente. Fiquei sete meses e meio no hospital, com minha esposa e minha filha tomando conta de mim; tive até direito a bolo com o número de dias – 224 – quando tive alta.

De lá saí para ir me tratar na cidadezinha da minha esposa, para que ela estivesse mais próxima à família. Tentava salvar minha perna direita, além de acabar de cicatrizar as queimaduras. A proximidade da Patroa com a família aumentou tanto que ela me trocou por um primo, e os tratamentos de nada valeram: sem perna e sem esposa, estou de volta agora, três anos e meio depois. As árvores cresceram enormemente, a tal ponto que mal consigo ver um pedacinho do lago. Ainda não consegui chegar a ele; estou aprendendo a andar de muletas para poder passear pelo terreno.

Mas não é disso que quero falar. Estou aqui para falar de bichos, mais uma vez. Escrevi há algumas semanas sobre como é mais inteligente comprar um cachorro de raça, que se sabe como há de ficar e se comportar quando adulto, que pegar um filhote de vira-latas, cujo tamanho quando adulto e temperamento são sempre uma incógnita. Os viralateiros ficaram furiosos, mas esse negócio de ter gente furiosa com o que eu escrevo não é de hoje. Estou acostumado; já houve até quem quisesse fazer passeata contra mim, o que eu pessoalmente achei de uma gentileza incrível. Eu tomaria parte em uma passeata contra mim, mesmo não sendo dado a passeatas. Dessa não tenho como discordar.

O que os viralateiros pareceram não ter percebido é que eu dizia no texto que sempre tive vira-latas e cães de raça, sempre juntos. Adoro cachorros, de todos os tipos, raças (inclusive nenhuma) e cores. Eu posso me dar a esse luxo por morar na roça; aqui um vira-latas pode ser inútil e ficar de tamanhos desajeitados, mas espaço para ele, assim como carinho por ele, nunca há de faltar.

Quando saí para aquele fatídico fim de semana, eu tinha três cachorros, que apresento por ordem de nobreza só para chatear os viralateiros: o Max, pastor alemão puríssimo, com número tatuado dentro da orelha em tinta verde, filho do campeão alemão, comprado a peso de ouro em canil de outro estado; a Petúnia, vira-lata adotada no canil municipal, com sangue predominante de cocker-spaniel e uma curiosa coloração de gata tricolor; e a Preta (não fui eu que escolhi o nome. Sugeri trocar por “afrodescendente”, por conta das imposições da moda politicamente correta, mas fui voto vencido), a viralatésima que minha filha ganhou de um amiguinho, que jurava de pés juntos que ela seria um filhote de labrador. Disse-lhe eu, quando vi o filhote, que os pais dela poderiam pertencer a um lavrador, mas só isso.

O Max faleceu ainda durante a minha hospitalização. Ele saiu de casa e só foi encontrado, por vizinhos meus preocupados, no canil da cidade ao lado, já em estado grave. Alguma doença o derrubou, e sem dono para cuidar dele ela foi fatal. Eu soube da morte do bichinho no hospital e fiquei tristíssimo, mesmo com todas as drogas que ali me davam. Drogas que curam dores físicas podem abafar dores na alma, mas a dor era tanta que não conseguiram, neste caso.

A Petúnia pegou uma bicheira que escapava aos métodos um tanto primitivos de tratamento que meu caseiro tentou empregar. Ele a deu, com autorização da minha esposa (mas não minha), a alguém que disse que trataria dela. A notícia que tive quando cheguei e procurei por ela foi de que ela também morreu.

Sobrou a Preta, a mais vira-latas, a menos nobre e a mais resistente. E, nada miraculosamente, ela se multiplicou durante a minha ausência, dando à luz um cachorrão preto maior que ela, batizado Zidane pelo caseiro.

Na boa dúzia de gatos que a Patroa mantinha, também fez a natureza a limpa. Sobrou uma única gata, a mais velha, a mais vira-latas, a decana de todos os que por aqui havia. Ela não tem nome, porque eu não acredito em dar nome a gato. Nome serve para chamar o bicho; se ele não vem quando se o chama, para quê cargas d’água dar-lhe nome?

Os gatos machos eu já esperava não encontrar mais; gatos machos criados soltos não duram muito, pois vivem uma vida muito violenta, entrando em brigas e confusões o tempo todo. Já tratei muito de gatos seriamente feridos, e já vi muitos morrer. Outros encontramos já caídos em combate no meio de algum pasto ou na entrada da mata; outros ainda simplesmente desaparecem, certamente tombados em alguma liça. Um gatinho muito afrescalhado, de pelo comprido, que não entrava nas brigas dos outros gatos, eu pedira à minha esposa que levasse daqui para que ficasse comigo, numa das vezes em que ela veio buscar isso ou aquilo. Ela nunca me atendeu, e quando cheguei recebi apenas a notícia da morte do bichinho. As outras gatas todas sumiram. Sobrou apenas, como dentre os cães, a gata mais vira-latas.

Aos sobreviventes, a quem agora posso dedicar meu amor, juntaram-se os dois cachorros e uma gata que trouxe nos 300 km de Fusca que separam minha casa, onde agora tenho a graça de estar, do lúgubre tugúrio onde tentei salvar minha perna e tudo perdi. Um vira-latas, o mesmo que eu qualifiquei de problemático no texto anterior, por ter a mania de fazer longos passeios, passando semanas fora e deixando a casa desprotegida, e uma filhotinha de pastor canadense sem pedigree que consegui por lá. Fizeram, por enquanto, uma divisão territorial simples, com a Preta e seu filhão num lado da casa e os recém-chegados do outro. As gatas também se dividiram, com uma na cozinha e outra na sala. A da cozinha é a velhinha, sobrevivente, que encontrei cheia de vermes e esquelética, após três anos e meio se virando para conseguir comer no cocho dos cachorros, sem cuidado e sem almofada, ela que foi sempre tratada a leite de pera dentro de casa. Depois de uma semana de bons tratos, já está bem mais bonita.

Eu fico no meio, cercado do carinho dos bichos, que procuro reciprocar. Somos todos, no fundo, sobreviventes. Eu perneta e solitário (senão por meu filho amado, que veio comigo e toma conta de mim como eu deles) e eles com suas cicatrizes compartilhamos também a graça de sermos todos também vira-latas – pois não há povo mais vira-latas que o brasileiro, que por sorte nossa raça alguma jamais aceitaria.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]