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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Tantas maravilhas

(Foto: Pexels/Pixabay)

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Tive a alegria de maravilhar-me assistindo a um curto vídeo sobre Dona Colette Maze, uma linda senhorinha de 107 anos(!) que toca piano desde os 5. Mais de século criando beleza, fazendo tremer o ar de formas complexas e agradabilíssimas! Treina quatro horas ao dia, mesmo na idade em que está, e do alto de sua sabedoria centenária dá-nos um conselho que na verdade é eterno: é importante maravilhar-se a cada dia. Etimologicamente, maravilhar-se é deparar-se com mirabilia, milagres. Mas os “milagres” que nos maravilham não são extraordinários, e estão por toda parte. Maravilhamo-nos com a boa música, com a beleza da Criação, com o bebezinho que faz com que o amor dum casal jovem se torne uma nova pessoinha.

Uns poucos anos atrás, eu costumava ter o privilégio de atravessar uma estrada belíssima, cercada de árvores e plantações, para ir ao trabalho. Hora e meia de viagem, hora e meia (ou quase) de maravilhamento. Cheguei a impor-me a disciplina de dar graças a Deus pela beleza da floresta na luz do amanhecer ao menos três vezes por viagem, para que as preocupações de cada dia não me levassem a deixar de reparar no milagre quotidiano da luz do dia que volta e revela, ainda permeada de nevoeiro, a vida das árvores e dos campos. Tenho ainda o privilégio de morar na roça e poder atrair pássaros com as frutas do pomar, cortadas e abertas para eles. Como não se maravilhar ao ver, por exemplo, a dinâmica de casal dum par de saís azuis? O macho é azul com detalhes pretos, e parece ter surgido dum sonho multicor. A fêmea, menorzinha que o esposo, é predominantemente verde, e some no meio das folhas. O macho sempre a protege, sempre vela por ela, sempre confere primeiro se não há perigos ao redor das frutas com que os alimento.

A invenção mais complexa do engenho humano não chega aos pés dum mero passarinho em complexidade e beleza

Essas vidinhas, como as dum filhote de gato ou qualquer outra criaturinha que nasce, cresce e fenece, são uma fonte incessável de maravilhamento. A invenção mais complexa do engenho humano não chega aos pés dum mero passarinho em complexidade e beleza. Uma folha viva tem mais complexidade que um Boeing. Mas é justamente por serem assim quotidianas essas fontes de maravilhamento que facilmente nos vem a tentação de ignorá-las. Agimos como um adolescente idiota que, ao ver uma grandiosa floresta pela primeira vez, diz “mato. Já vi na tevê”, e retira-se à mediocridade de suas telas.

Mas mesmo o que é nosso, o que vem dessa maravilhosa capacidade do homem de construir coisas engenhosas, também deveria nos maravilhar. Um navio de sei lá quantas toneladas de ferro, cheio de carga, vem boiando da China. Um avião enorme, com centenas de pessoas dentro, divide os céus com toneladas de água flutuante em forma de nuvens. Uma bicicleta multiplica e coordena a força dos nossos músculos para que possamos ir mais longe e mais rápido. Uma rede nos descansa as costas tortas, e um comprimido faz cessar nossa dor.

Tudo isso, e muito mais, é maravilhoso. Até mesmo a feiura dum cânion de concreto numa megalópole, com centenas de carros com quatro assentos vazios em cada a soltar fumaça, barulho e calor ao nível do solo, já é algo espantoso. Maravilhoso.

O próprio ser humano, então, com seus talentos díspares, não deveria jamais nos passar desapercebido. A mão humana, instrumento de tal precisão e complexidade que acaba virando o pesadelo do desenhista iniciante, de tantas posições que toma. A capacidade duma mão treinada, como a de Dona Colette, de fazer sair música divinal daquela outra invenção maravilhosamente complexa que é o piano. Fico tão maravilhado com o mecanismo do meu piano, tão complexo quanto um motor de automóvel, mas feito de madeira, feltro e couro, que troquei por um vidro a madeira que o escondia, só para poder ver os martelinhos de madeira e feltro fazendo soar as cordas metálicas que produzem as notas. E assim, claro, ficar mais uma vez maravilhado.

Perder-se do maravilhoso, entediar-se, tudo isso é uma tristíssima tentação

Ensina Dona Colette que é importantíssimo não cair na tentação de ficar blasé. Nada mais idiota que o tédio, que a indiferença, que a insensibilidade ao maravilhoso que nos cerca por todos os lados. O ar que respiramos – transparente de perto e azul de longe, com os gases exatos que nos mantém vivos... – já é espantoso. Maravilhoso. A água que compõe a maior parte de nosso corpo, o sem-número de criaturinhas microscópicas que habitam nossas entranhas e simbioticamente nos ajudam a retirar nutrição do que comemos. Nossa memória, nossa capacidade de traçar enlaces de razão entre os fenômenos que nos cercam. Os complexíssimos movimentos de músculos de que nem sequer tomamos conhecimento, mas que ocorrem o tempo todo, garantindo que nossa vida continue; são mirabilia, “milagres”, “maravilha”. Maravilha pura, como o movimento das folhas que o vento embala.

Perder-se do maravilhoso, entediar-se, tudo isso é uma tristíssima tentação. É o outro lado da moeda, em nossa natureza caída, de nossa capacidade de entender as coisas racionalmente. É a substituição simplificante da coisa pelo termo, como apontava Krishnamurti: deixamos de apreciar cada árvore por reduzirmos todas ao termo “árvore”, e ficarmos por aí. Cair nessa triste tentação é o que leva a perder o gosto pela vida, pela beleza. É uma redução ainda mais absurda que as perpetradas pelas ideologias que no homem só veem sua capacidade econômica. A pessoa que se deixa cair na armadilha do tédio está de olhos fechados e ouvidos tampados, lidando com seu entorno apenas enquanto amontoados de categorias, elas, sim, entediantes.

Basta ver como a capacidade (se é que se pode chamar assim tamanha negação de si mesmo) de entediar-se é diretamente proporcional ao hábito de reduzir o mundo a cópias falsas e simplificadas dele mesmo. É o que ocorre com a pessoa que fica horas por dia perdida em suas telas, acompanhando atento o que é basicamente nada. Que assiste a filmes e séries aos borbotões em telas luminosas, em que uma realidade já pronta é apresentada na sua forma sensorial mínima: três cores mal e porcamente combinadas bidimensionalmente nalguns tantos centímetros quadrados, uma caixinha de som fazendo o ar vibrar em tons de lata, e nada mais. Já o mundo lá fora tem cheiro, tem gosto, belezas inacreditáveis. Cada folha duma árvore é diferente da outra, mesmo sendo elas ainda mais diferentes das de outra árvore. Cada pelinho no braço é diferente do outro, e a seu modo cresce e vive ali, modestamente, sem esperar ser notado.

É por estas e outras que não consigo acreditar em tédio. O tédio, para mim, é simplesmente a recusa de aceitar o quanto há de maravilhoso em nosso entorno. A pior tristeza, a mais amarga depressão, não conseguem, por si, impedir-nos de reconhecer o maravilhoso. Já o tédio é a recusa de fazê-lo; é o hábito de aprisionar-se aquém dos próprios sentidos, de viver num mundo falso, unidimensional e reduzido, em que só o que conta são impulsos fortes o bastante para nos balançar. Daí, talvez, o crescimento, paralelo ao fenômeno social do tédio, dos ditos esportes radicais e outras maneiras complicadas de proporcionar fluxos novos de adrenalina. Este hormônio, que deveria estar ali para nos ajudar a correr ou lutar quando confrontássemos uma ameaça real à própria vida, acabou por tornar-se sucedâneo precário do maravilhamento. Fuga do tédio. A vida, como um estranho termômetro de adrenalina, parece nas vítimas desse vício (pois o tédio é exatamente isto: um vício, um mau hábito internalizado ao ponto de tornar-se a regra) resumir-se àquilo que um soldado de verdade já falou da guerra real: longos períodos em que nada acontece, entremeados por momentos do mais puro terror.

A pior tristeza, a mais amarga depressão, não conseguem, por si, impedir-nos de reconhecer o maravilhoso. Já o tédio é a recusa de fazê-lo; é o hábito de aprisionar-se aquém dos próprios sentidos

Convenhamos que é péssimo sinal estar mentalmente tão longe das tantas maravilhas que nos cercam que uma simulação da guerra, a estupidez humana por excelência, possa parecer bom negócio. Como todo mau hábito, todavia, o tédio tem jeito. Basta substituí-lo pelo hábito saudável, pela virtude, do maravilhamento. Evidentemente isto não ocorre (nem poderia ocorrer; tal é a natureza dos hábitos, afinal) de modo instantâneo. Forçando-se umas tantas vezes ao dia a reparar, a abrir os olhos, contudo, já é um bom começo. Aprender fotografia, para poder capturar a beleza e, movido por este desejo, acostumar-se a buscá-la de modo ativo em nosso entorno, é outro bom passo.

Afinal, o maravilhamento deveria ser a condição natural do homem; é o tédio que exige o tremendo esforço de se trancar a tudo aquilo que nos cerca, e mesmo àquilo que somos. No fim das contas, aliás, é espantoso que consigamos entediarmo-nos. Maravilhoso, mesmo, diria.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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