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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Bebês e teorias

(Foto: murovas2016/Pixabay)

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Criei meus filhos em tempos mais propícios, creio eu. Não apenas eles tiveram a vantagem de ter uma mãe que era irmã mais velha e sobrinha mais velha, logo habituada a ajudar a criar de crianças e com poucas razões de incerteza, como ainda não havia a atual facilidade até exagerada de teorizar a puericultura. Quem tivesse teorias então teria de escrever um livro e divulgá-lo, competindo com talvez dois ou três outros teóricos da coisa mais natural que existe depois de como fabricar os tais bebês. Já hoje, às vésperas de me tornar avô pela terceira vez, acompanho entre fascinado e apavorado a infinidade de teorias que, num imenso arco entre o que minha geração acharia óbvio e aquilo que consideraríamos absurdo, orientam as mães. Ou, no coletivo, desorientam; afinal, a própria quantidade de teorias, bem como a seriíssima e entusiástica postura de quem as propaga (que chega a assumir dimensões inquisitórias contra quem não seja tão entusiasta), acaba tornando quase impossível distinguir o joio do trigo.

Há as que seguem o que qualquer mãe de meu tempo reconheceria como receita certa para criar bandido, recusando-se a dizer “não” aos petizes, por exemplo. Como o mundo lá fora tem justamente como especialidade dizer “não” (minha conta bancária anda rouca de mo repetir), o erro de tal postura me parece evidente. Quando a pessoinha ouvir um “não” pela primeira vez, afinal, há de ser da boca de alguém que não a ama e não está nem aí para a autoestima dela: um chefe, um professor, um policial. Sem ter sido preparada por infinitos pequenos “nãos” amorosos ao longo da infância, dificilmente aquele “não” inaugural vai ser bem recebido. As consequências têm tudo para serem péssimas. Aliás, mesmo na infância a coisa já fica preta, na medida em que mamãe não controla tudo o que há no mundo. Minha nora me contou de uma “mãe-sim” cujo fedelho teve de tomar anestesia geral para fazer tratamento de canal, porque nunca quis escovar os dentes e a mãe não o quis lhe impor. Tendo sido criado ouvindo que “les enfants doivent être vus, pas entendus” (“crianças devem ser vistas, não ouvidas”) e tendo criado os meus com tal provérbio sempre em mente, minha reação ao ouvir a historieta foi levantar os sobrolhos até a nuca e dizer “oi?!”.

A enorme quantidade de teorias sobre como criar filhos, bem como a seriíssima e entusiástica postura de quem as propaga, acaba tornando quase impossível distinguir o joio do trigo

Outra escola de puericultura, de que vim a saber há pouco, quer que a vítima, ops, a mãe coloque-se na posição de seu pequeno carrasco, ops, filho, e faça, por assim dizer, uma espécie de psicanálise das motivações dele em vez de dar-lhe a merecida bronca. “Você arrancou a orelha da sua irmãzinha com uma dentada por estar se sentindo alijado e desfavorecido de amor materno por ela estar sendo amamentada enquanto você é alimentado de todinho e danoninho, não é isso, meu filhinho querido?” – este tipo de coisa. Conquanto haja certamente algum mérito na ideia da punição por chatura psicanalítica, parece-me ser um momento um pouco precoce para tal.

Ainda uma terceira, que eu tive o desprazer de ver ao vivo e em cores na minha frente, faz da mentira deliberada uma forma de arte. É a que (des)orienta o povo que garante com cara séria às crianças que há de comprar sei-lá-que-besteira na volta, sabendo muito bem que não o fará. Receita certa para criar um filho mentiroso que não confia em uma palavra que saia da boca dos pais. O paroxismo de tal perversão puericultural eu vi quando uma mãe se enroscou como sucuri em volta das perninhas e bracinhos de seu moleque, enfiando-lhe na marra um remédio na boca, enquanto afirmava peremptoriamente que não lhe daria remédio algum. Uma dissonância cognitiva de fazer inveja aos redatores do Pravda no tempo de Stalin.

Outra, ainda, prefere subornar as crianças para que façam ou permitam que se lhes faça o necessário. Li numa coluna de jornalão do Sudeste a narrativa feita por uma senhora das dificuldades do processo de botar um aparelho ortodôntico no fruto de suas entranhas. Como se fosse a coisa mais normal do mundo, num dado momento ela suspira ao narrar que “teria” de levar o monstrinho para escolher o picolé que quisesse como “recompensa” por ter generosamente permitido que se lhe fosse posto o aparelho à boca. Quisera eu receber “recompensas” a cada pequeno dissabor da vida! Não é assim com ninguém no mundo real, em tese para o qual se estaria preparando a criança.

E há ainda outras e outras teorias, algumas delas consistindo em uma espécie de metodização do que se fazia nos tempos d’antanho. Seria possível, talvez, reconhecer nestas alguma coisa do que sempre fora feito por ser evidentemente o certo, não fosse o estranho vocabulário pseudotécnico, um jargão incompreensível para os não iniciados em que permitir que um fedelho que aparece de madrugada com seu travesseiro à beira da cama dos pais fique por lá mesmo é dito “fazer CC” (não se trata do cheiro das axilas, mas de “Cama Compartilhada”). Há até cursos ensinando a dar de mamar, botar criança pra dormir, o escambau. O que neles é ensinado é muitas vezes o que jamais precisara de ensino organizado, por ter sido aprendido na prática da mãe, das tias, das avós.

Mas estamos num momento de dissolução e artificialização, e muito do que era orgânico se perdeu por separação das famílias. Mesmo ainda vivendo, via de regra, na mesma cidade (ao contrário do que ocorre em populações mais modernas que a nossa), a família acaba dissolvendo-se na prática em pequenos núcleos com quase nenhum contato com os demais que não a festa de Natal. Os pais de primeira viagem veem-se mais próximos de outros pais de primeira viagem – com quem convivem virtualmente e de quem aprendem modismos e teorias novas – que dos parentes mais velhos e mais experientes. Tem-se assim cegos a guiar cegos, com teorizadores honestos e desonestos competindo por um enorme mercado de gente ávida por respostas às inseguranças que sempre acometem quem se vê subitamente pai ou mãe. Afinal, quando paramos para pensar, tamanha responsabilidade em mãos tão despreparadas parece francamente absurda. Aos 20 e poucos, quando via de regra nos vemos em tal posição, não conhecemos nada do mundo. Estamos ao mesmo tempo construindo nosso lugar nele e acolhendo aquela frágil pessoinha que o Criador nos dá com a tremenda missão de transformar num adulto saudável em todos os aspectos. Um serzinho que nem ossatura a proteger o cérebro tem direito, que se for desconectado da mãe morre de fome, que não fala, não anda, não se defende...

Sem que a criança tenha sido preparada por infinitos pequenos “nãos” amorosos ao longo da infância, o “não” inaugural virá da boca de alguém que não a ama e não está nem aí para a autoestima dela: um chefe, um professor, um policial. E não vai ser bem recebido

Em comparação com os bichos, os seres humanos somos tremendamente prematuros ao nascer. Para que estivéssemos prontos como, digamos, um potrinho recém-nascido, teríamos de ficar coisa de dois a três anos na barriga da mãe. Afinal, o potro mal nasce já sai galopando, enquanto o bebê é tão bobinho que só começa a respirar quando um susto o faz cair no choro. Choro que, aliás, é a única forma de expressão que ele tem ou terá por um bom tempo. Dizem os biólogos evolucionistas que tal fragilidade neonatal, tamanha prematuridade, é o preço a pagar por podermos andar de pé. Aparentemente, para que o neném se desenvolvesse mais dentro do útero o quadril da mãe haveria de ser feito de outra forma, que só lhe permitiria andar de quatro patas, como a mamãe-égua. Pode ser.

O fato é que mal nos vemos adultos já temos a missão de tomar aquela bolinha de gente choramingante e indefesa e fazer dela um bom sujeito. Educá-la, alimentá-la, defendê-la de tudo o que a ameaça (inclusive e especialmente dela mesma, na medida que a capacidade que a criança tem de se enfiar em enrascadas é sempre maior que seu juízo). Ao longo da história humana, isto sempre foi um empreendimento familiar. Não estou, todavia, falando das famílias nucleares modernas, sim daquelas que atravessam gerações lado a lado, com mulheres experientes a guiar as mães de primeira vigem e homens experientes a acalmar galhofeiramente os novos papais. Tias, primas, avós, irmãs, todas juntas ensinando tanto o certo quanto o duvidoso (“um pedacinho de algodão molhado na testa faz parar de soluçar”, essas coisas).

É a ausência desse sistema orgânico que abre espaço à teorização. E é o enorme mercado de pais e mães de primeira viagem desesperados que abre espaço à picaretagem ou mera arrogância de quem se propõe a ensinar algo que mal e mal usou. Mães de crianças de 3 anos pontificando sobre puericultura sem se dar conta de que as besteiras que fazem e ensinam vão provocar malefícios com que elas mesmas não saberão lidar quando a criança chegar em idade escolar, por exemplo. Doidas que (com apoio do digníssimo) fazem das crianças peças de exposição, prodígios que expõem à veneração pública: “minha filha leu Os Lusíadas aos 5 anos”; “ensinei latim ao meu filho de 5 anos, mesmo não sabendo uma palavra”, essas maluquices. Crianças que, a julgar pela exposição instagrâmica de fotografias muito bem escolhidas, não têm meleca, nunca fazem manha, e certamente aprenderam a comer sozinhas sem sujar as bochechas de feijão.

Aí vêm os pobres pais e mães de primeira viagem e engolem aquilo tudo como se verdade fosse. Como se as crianças-prodígio defecassem bombons de rosa e realmente entendessem Os Lusíadas aos 5. A insegurança naturalíssima a quem se vê privado da rede familiar de auxílio com cuja existência nem sonham, claro, dispara ao ver a diferença entre os bebês-johnson do Instagram e aquele serzinho ranheta e melequento porém real que conceberam e que, aos trancos e barrancos, criam com um amor que não conceberiam possível anteriormente.

Ainda que os pais tenham tomado a decisão consciente de virar “influenciadores”, os filhos entraram nessa de gaiatos. Sem terem tido o azar de nascer na família real britânica, tornaram-se rostos conhecidos e por muitos e muitos anos terão de lidar com isso

Algumas famílias instagrâmicas vão expondo a prole perfeita à veneração pública anos a fio, e ainda não temos como saber o que acontecerá com elas quando as crianças tiverem algum direito a voz. Afinal, enfatiotar peralvilhos e fazê-los posar para uma fotografia é bem diferente de fazer o mesmo com aborrescentes, por mais bem-educados que tenham sido. Nos EUA, donde vêm as modas, já houve alguns casos bem famosos de casais de “influenciadores digitais” que viviam de gigolotar a suposta perfeição de seus lares e crianças e subitamente “explodiram” quando divergências ocultas aos seguidores tornaram-se irremediáveis. Não acompanho tão a fundo tais coisas; se até eu já fiquei sabendo é que a coisa deve estar ficando comum. Minha preocupação maior, todavia, não é com os pais, que são maiores de idade e vacinados (ou não: há toda uma escola de puericultura que proíbe as vacinas, luxo que só é possível numa população majoritariamente vacinada), mas com a petizada.

Dentre as crianças que passaram a infância servindo de vitrine para as teses dos pais, tendo tido cada etapa do crescimento exposta e festejada publicamente, tornando-se conhecidas por multidões de desconhecidos, imagino que não há de ser pequeno o porcentual dos que se revoltarão ao finalmente entender a dimensão daquilo tudo. Com razão: afinal, ainda que os pais tenham tomado a decisão consciente de virar “influenciadores”, os filhos entraram nessa de gaiatos. Sem terem tido o azar de nascer na família real britânica, tornaram-se rostos conhecidos e por muitos e muitos anos terão de lidar com isso.

Alguns entrarão numa revolta tremenda, em que farão o possível para se tornar o oposto da imagem que seus pais venderam por tantos anos. Outros, quem sabe, podem gostar da brincadeira e passar a tentar fazer carreira solo como influenciadores. A maioria, no entanto, provavelmente não estará nem tanto ao mar nem tanto à terra. Em todos os casos, contudo, haverá algum tipo de “acerto de contas”, de retomada de posição quando as crianças crescerem e não mais puderem ser usadas como manequins de vitrine dos métodos e teorias dos pais.

A despeito de todas as teorias, de todas as curadorias de imagem, de todos os problemas, ainda há jeito. As gerações ainda se sucedem, como sempre se sucederam e sempre se sucederão

Este é um dos maiores problemas desse mecanismo pós-moderno de puericultura, aliás: ao contratar fora da família o que sempre havia sido transmitido dentro, as crianças deixam de ser apenas crianças e se tornam, duma certa forma, “casos”. Casos de sucesso ou casos de fracasso das teorias vendidas ou compradas pelos pais, cobaias de ideias novas – muitas das quais de jerico –, modelos de criança que outros pais de primeira viagem, unidos virtualmente num amplo grupo de gente insegura à espera de quem os guie, vão usar como medida do próprio “sucesso” ou “fracasso”. Ainda que muito menos expostas que os supostos filhos-modelo dos influenciadores, a exposição dentro de grupos de pais e mães já há de fazer com muitas crianças se tornem “famosas” naquele meio.

Quando há um grupo real, físico, palpável, de conversa e auxílio mútuo, a coisa é mais simples. Afinal, ao vivo não há como manter a curadoria de imagem que acaba sendo mais ou menos automática nos instagrams da vida; quem posta fotos de criança remelenta chupando meleca, afinal? Uma coisa que não deixa de alegrar meu pobre coração e esquentar-lhe os stents é ver na saída da Santa Missa tantos casaizinhos conversando, cada um com seus pacotinhos de gente, cada um com seus problemas, e todos na mesma, e linda!, realidade. Lembro-me sempre da alegria intensíssima que eu tinha na mesma fase da vida, a meu ver a mais bela, e convenço-me, cada vez mais, que a despeito de todas as teorias, de todas as curadorias de imagem, de todos os problemas, ainda há jeito. As gerações ainda se sucedem, como sempre se sucederam e sempre se sucederão, e mal as crianças deixam de ser crianças já se atiram com gosto à tarefa de fazer outras crianças. Graças a Deus.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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