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Líderes do Talibã dão entrevista após tomarem o controle de Cabul, capital do Afeganistão.
Líderes do Talibã dão entrevista após tomarem o controle de Cabul, capital do Afeganistão.| Foto: EFE/EPA/Stringer

A derrocada instantânea do governo-fantoche afegão assim que as tropas estrangeiras que o suportavam se retiraram após 20 anos de carnificina gratuita demonstra cabalmente o limite não apenas do pensamento moderno, mas de sua prática. Enquanto por um lado do palco saíam os soldados americanos – que perderam a guerra sem jamais perder uma batalha militar –, do outro entravam figuras vestidas como seus bisavôs: longas barbas, longas túnicas, longos panos enrolados como turbantes. A única diferença de monta entre um dos novos donos do Afeganistão e seus antepassados de séculos atrás é o armamento moderno. Um soldado do lado americano da Guerra da Independência, todavia, não reconheceria seu descendente, tamanha a quantidade de parafernália tecnológica – infinitamente maior e mais avançada que a dos afegãos – que recobre e esconde o corpo do soldado.

Para o moderno, afinal, é no mais das vezes a tecnologia que lhe dará domínio completo do mundo que habita, alvo incessante da sociedade moderna desde seus primórdios 500 anos atrás. Já para o afegão que derrotou a tecnologia americana, não é o domínio de tudo que lhe interessa, sim ser o senhor da própria terra. A mentalidade guerreira afegã é conhecida desde Alexandre, o Grande; desde então os afegãos lutam uns contra os outros, parando a contragosto apenas para unir-se na luta contra algum invasor estrangeiro. “Eu contra meu irmão; eu e meu irmão contra meu primo; eu e meu primo contra outra família; todas as famílias contra o invasor estrangeiro” poderia ser o lema nacional afegão. Estamos falando de uma terra cujo esporte mais popular é uma espécie de jogo de polo, jogado a cavalo com o corpo de um bode recém-decapitado como bola, taco e arma de agressão contra os demais jogadores.

“Selvagens”, diria o iluminista, e não lhe nego razão; apenas observo que mais selvagem ainda é quem chacina à distância, operando do outro lado do mundo robôs voadores assassinos para explodir festas de casamento e mesmo funerais. A questão não é de selvageria, sim de um seu correlato, ou mesmo causa: a natureza do ser humano do sexo masculino. É a mesma testosterona que faz crescer as fartas barbas dos talibãs que os leva a querer lutar e regozijar-se em fazê-lo, que lhes dá orgulho por sobreviver naquelas vastidões desérticas e inóspitas, e, finalmente, que os leva a ver a mulher como uma propriedade tão valiosa que deve ser mantida permanentemente trancada. A casa afegã típica é uma pequena fortaleza, com uma vasta e espessa muralha sem janelas nem portas (entra-se subindo por uma escada de mão), com os cômodos situados ao redor de um pátio central. A roupa feminina afegã típica é quase a mesma coisa, só que individual: um pano grosso que recobre a mulher por inteiro, com apenas um visor de renda pelo qual ela enxerga o mínimo necessário sem que se possa ver seus olhos. Uma cela ou fortaleza portátil, na qual a mulher até pode circular, desde que com guarda-costas familiares do sexo masculino. Tanta testosterona à solta, afinal, faz dela uma presa tentadora.

Para o afegão que derrotou a tecnologia americana, não é o domínio de tudo que lhe interessa, sim ser o senhor da própria terra

Não é que os afegãos tenham, por alguma razão, mais testosterona que os demais povos. Provavelmente outros a têm na mesma proporção. A diferença é que lá ela é festejada, enquanto na modernidade (e, mais ainda, na pós-modernidade) ela tende a ser deixada de lado em prol de uma racionalidade que também é masculina em sua essência, mas tende a sublimar e disfarçar a crueza de sangue e tripas da masculinidade plenamente tóxica de um povo que a celebra sem disfarces. É uma fina casca de uma suposta civilização evoluída, que não suja as mãos e mata à distância. Funcionar funciona, mas se o disfarce é excessivo ele tende a se tornar quase realidade. Não é à toa que nos filmes de ação os soldados hipertecnológicos americanos tendam a ser substituídos por sujeitos fortões suados, com as roupas rasgadas e salpicados de sangue: a tecnologia é prática, mas não indica a testosterona como a crueza de um homem no seu estado mais bruto e mais feroz. Soldados indistinguíveis de robôs, ou mesmo rapazes obesos comendo batatinhas fritas enquanto matam atirando mísseis com um controle de joguinho eletrônico do conforto de uma sala com ar-condicionado nos EUA, não são másculos, testosterônicos, selvagens ou ferozes o bastante para fazer suspirar as mocinhas. Eficientes na arte de matar, sem dúvida são; muito mais que o Rambo sozinho com sua faca, ou pastores afegãos com seus rifles copiados de modelos russos. Mas decididamente não têm aquela testosterona que flui.

A negação da natureza pela modernidade levou à sua substituição pela técnica. Antigamente edificava-se de modo a conviver com o clima; hoje os arquitetos espalham horrendos cubos de vidro preto em todos os climas, e o condicionamento de ar os esquenta ou esfria (enquanto espalha doenças, gasta energia como se não houvesse amanhã... Detalhes, meros detalhes). A técnica, todavia, como se pode ver perfeitamente na falsa aproximação trazida pelas redes sociais, é um isolante. Isola tanto do clima quanto de nós mesmos, de nossa natureza. Principalmente no que ela tem de bom, aliás: a técnica nos proporciona luxúria em doses inauditas, mas dificulta tremendamente o amor; faz-nos gastar o que não temos com inutilidades oferecidas pela sociedade de consumo, mas dificulta dar de comer a quem tem fome.

Na guerra, também, a técnica tem este mesmo efeito viciante e isolante. Tudo o que era dito em qualquer telefone celular no Afeganistão era gravado e ouvido pelos americanos, como vazou Snowden. Mas e daí? O que lá se tinha não era um inimigo tecnológico, dependente de telefones celulares. Era gente braba e brava que queria expulsar de casa os estranhos. Oficiais americanos denunciaram inúmeras vezes que o alto comando simplesmente se recusava a acreditar que a intensidade das ações da resistência afegã era claramente sazonal: as mãos que plantavam eram as mesmas que atiravam, e quando o plantio ou a colheita as demandavam havia menos ataques aos americanos.

Os americanos jamais conseguiram fincar pé no Afeganistão. Seus soldados – assim como os de seus vassalos, por eles arrastados à inglória guerra – habitavam espaços estanques, completamente separados da vida da população ao redor. Bases com franquias de lanchonetes americanas, internet rápida e ar-condicionado. Os poucos afegãos com que conseguiam falar eram os intérpretes, que diziam o que achassem que mais agradaria quem lhes pagava. Perto das tropas americanas no Afeganistão, até mesmo os seus avós que lutaram no Vietnã estavam mergulhados na população (como fartamente comprovado pelos inúmeros casamentos de soldados americanos e moças vietnamitas na época), e os alemães na Paris ocupada tornavam-se nativos. O ambiente artificialíssimo das bases americanas no Afeganistão era abandonado apenas em incursões armadas, com os soldados tão revestidos de penduricalhos de alta tecnologia que dificilmente seriam percebidos como humanos à primeira vista, com armas permanentemente engatilhadas e apoio aéreo (leiam-se bombas que caem do nada exatamente onde se pedisse) ao alcance de um botão.

Já os afegãos viam-se numa situação extremamente semelhante à de americanos em filmes de invasão extraterrestre: na mira de seres alienígenas encastelados em fortalezas plantadas da noite para o dia em seu território, matando e aleijando no atacado, sem lógica ou razão alguma. Até mesmo os afegãos mais próximos aos americanos lidavam com estes por uma lógica que aos americanos era incompreensível. O tal “exército” que os americanos bancaram e supostamente treinaram, a custo de literalmente trilhões de dólares, em grande medida não existia. Seus supostos comandantes estavam mais preocupados em inserir soldados “fantasma” na folha de pagamento e embolsar o salário, vender as armas extra (ao próprio Talibã, muitas vezes) e ordenhar ao máximo a galinha dos ovos de ouro gringa.

Os americanos jamais conseguiram fincar pé no Afeganistão. Seus soldados habitavam espaços estanques, completamente separados da vida da população ao redor. Bases com franquias de lanchonetes americanas, internet rápida e ar-condicionado

Era tudo – o governo, o exército, a democracia – uma vasta aldeia Potemkin. O próprio presidente-fantoche, significativamente, fugiu com uma pequena frota de automóveis e um helicóptero abarrotados de cédulas de dinheiro, deixando para trás alguns caixotes de verdinhas que não couberam nos veículos. Era para isso, e apenas para isso, que ele participava do teatrinho montado para os americanos. Ele, como qualquer outro afegão, sabia que o tal “exército” não existia. Sabia que seu “governo” era uma piada, um mero método de arrecadação de fundos para si e seus protegidos. Sabia que mais cedo ou mais tarde os americanos teriam de escolher entre sair com o rabo entre as pernas deixando o país a quem o tomasse, ou – como fizeram na Coreia do Norte – bombardear tudo até que não houvesse uma casa, ponte, cabaninha ou reservatório d’água inteiro para depois “declarar vitória” e sair do mesmo jeito. Era evidente a todos – que não os mais bobinhos dentre os americanos – que a participação de qualquer nativo no teatrinho de que o Afeganistão estava prestes a tornar-se uma democracia jeffersoniana servia apenas para encher as burras de dinheiro e fugir para um exílio dourado quando a brincadeira acabasse. É – em escala evidentemente tremendamente reduzida – também o caso dos intérpretes, que em sua esmagadora maioria asseguraram asilo em países do Primeiro Mundo.

Qualquer criancinha pequena, quando se tenta tirar-lhe da mão algo que segura, aperta com mais força e diz “meu”. É exatamente isto o que os afegãos sempre fazem e fizeram ainda agora, como haviam feito antes tantas outras vezes (Rússia, Inglaterra...). Fizeram-no, todavia, de uma maneira que suas fartas barbas indica ser impossível às criancinhas: com uma violência, uma estupidez e uma fanfarronada diante da morte que só um homem poderia ter. Coisa de “macho”. Cada míssil americano numa festa de casamento (e foram muitos!) levava dezenas de rapazes a pegar em armas e tentar pelo menos matar um americanozinho pra remédio na hora em que o trabalho da roça o permitisse. Cada bordel aberto para servir as tropas americanas garantia o ódio eterno de todos os que se vissem como “donos” passados, possíveis e futuros, das afegãs prostituídas: todos os homens da família, somados a todos os homens das famílias de região, que poderiam sonhar em casar-se com a moça caso ela não houvesse sido “conspurcada”, e por aí vai.

Chegou-se, em suma, ao lugar em que a calça jeans e camiseta não substituíram as roupas d’outrora. Ao lugar onde a técnica foi vencida pela “macheza”. Onde a Modernidade decadente foi vencida pela Tradição selvagem. É um ponto crucial na História, com o “H” maiúsculo: é o momento em que aquilo que se dizia (e parecia) fadado a dominar todo o planeta – um modo de pensar, de agir, de negar aprioristicamente a realidade e perpetuamente empregar-se na construção de um suposto mundo melhor – encontrou seu limite. O fim de sua até então inesgotável expansão. Tendo isto ocorrido, a tendência é a aceleração de seu desmanche. Convenhamos que o incentivo à ideologia de gênero nas Forças Armadas americanas dificilmente lhes aumentará a capacidade bélica.

Afinal, a Modernidade é muito mais uma narrativa – um cacoete mental – que uma força realmente unitiva, como a religião ou a família. Estas são o que vai – aos poucos, e dolorosamente – retomar seu lugar na base da organização social, na medida em que a Modernidade, em sua decadência final, tenta aumentar mais e mais o controle centralizado enquanto dispersa e divide mais e mais a população, atomizando-a em indivíduos sem laços. Evidentemente são metas irreconciliáveis, pois um sistema centralizado demanda uniformidade dos graus mais baixos. Basta ver qualquer exército moderno, em que até mesmo a roupa, o passo e o corte de cabelo de cada soldado são os mesmos.

O resultado é uma dissonância cognitiva extrema, que ninguém aguenta por muito tempo. Só é possível desviar da natureza à força um pouco, e depois opera-se um retorno ao tipo. E é isso que provavelmente vai acontecer, de inúmeras maneiras, pacífica ou violentamente, em todo o mundo tocado, com maior ou menor profundidade, pela praga moderna. A descentralização opor-se-á cada vez mais à centralização (seja tornando-a irrelevante ao agir em paralelo ou confrontando-a abertamente), e as forças unitivas tradicionais de família e religião tomarão cada vez mais força.

Slavoj Žižek não deixa de ter razão ao ver neste momento a ocasião para uma recrudescência do marxismo, sua religião de devoção. Tal crença nada mais é que uma religião ateia, com uma “Humanidade” imaginária divinizada no lugar do Criador e os bens materiais no lugar da graça divina. Mas, perto de qualquer religião milenar, ela é fraca, por ser fundamentalmente moderna. Sem base, sem raízes, sem comprovação empírica alguma. Não há uma diferença tão grande entre o marxismo e o pentecostalismo, por exemplo, no sentido de proporem-se ambos a organizar completamente o modo de viver, pensar e agir de seus devotos, sem contudo ter qualquer base nalguma tradição comprovada pelo tempo. São, ambos, religiões novas, experimentais, e por isto mesmo tão atraentes quanto rasas. Ídolos de pés de barro, com “deuses” construídos à moda da casa e “dogmas” mais efêmeros que chuva de verão. De alguma maneira, podem até desempenhar um papel de ponte para levar os mais lobotomizados pela modernidade a jogar fora seus antolhos e procurar algo com mais substância. Contudo, sem adesão a valores realmente provados – ainda que em sua selvageria, como é o caso afegão –, dificilmente serão a refeição substancial requerida por quem escapa do campo de concentração mental que é o pensamento moderno.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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