Dentre todas as besteiras que o politicamente correto fez virar moda, uma das que mais me agastam, pessoalmente, é a mania de referir-se às pessoas consecutivamente no feminino e no masculino (“todas e todos”, “amigas e amigos” etc.), com a desculpa esfarrapadíssima e ignorante de que usar apenas um gênero, como manda o bom português, seria de alguma forma machista. Trata-se de uma besteira rematada em tantos níveis diferentes que chega a cansar apenas a ideia de tentar explicar todos. Como, contudo, este é um problema que se espalha cada vez mais, massacrando a beleza de nossa língua e espalhando um feíssimo vício de linguagem, disponho-me a explicar, ainda que perfunctoriamente, algumas das razões pelas quais se deve fugir ao máximo da tentação politicamente correta de cometer este erro de português.
Só para começar, vejamos como funciona isso de gêneros em nossa língua. “Gêneros” são as categorias em que dividimos palavras a partir de contrastes como o masculino, o feminino e o neutro.
(Aliás, outra besteira muito grande da moda é isso de achar que gêneros seriam o mesmo que sexos, e, mais ainda, que eles seriam como que um degradê infinito; ora, bolas, gêneros são justamente as categorias que existem em função de contrastes! Nem como analogia a palavra serve para o que o povo da “lacração” quer fazer com a coitadinha.)
O português é, histórica e gramaticalmente, um latim errado, um latim de cozinha que foi aos poucos se afastando do original. Em latim, como em inglês, temos os três gêneros citados acima. Em português, o neutro e o masculino se misturam. Isto ocorreu porque, na passagem do latim à nossa língua atual, tomamos como modelo para a terminação das palavras masculinas formas em que não havia diferenciação entre o masculino e o neutro. Em latim, o masculino é no mais das vezes terminado em “us”, e o neutro em “um”. Tanto um quanto o outro, entretanto, terminam em “o” quando estão no caso dativo, usado para objetos indiretos, e em “os” quando estão no acusativo, usado para objetos diretos. Assim, nestes casos, neutro e masculino são exatamente iguais. E foram estas as formas que guardamos do latim, jogando fora todas as que marcam esta diferença. Seria até interessante fazer (outro!) excurso sobre como a cultura lusa privilegia as ações feitas sem sujeito definido, ao ponto de usar para o sujeito o que em latim se usa para o objeto, mas não seria este o momento.
O fato é que nós, na prática, confundimos neutro e masculino, o que dá alguma oportunidade para confusão. Afinal, o neutro é o que se usa quando se trata de palavras (ou pessoas) de ambos os gêneros de uma vez só. “As cadeiras” é feminino, assim como “as moças”. “Os bancos”, do mesmo modo, é masculino, assim como “os rapazes”. Quando, contudo, vamos juntá-los ambos, masculinos e femininos, em uma palavra só, usamos o neutro: “eles” inclui bancos e cadeiras, ou rapazes e moças. “Eles”, neste caso, não é masculino; é neutro. Assim, quando dizemos “bem vindos, queridos amigos” a um grupo misto de pessoas, estamos usando termos desprovidos de gênero masculino ou feminino, por serem neutros. “Bem vindos e bem vindas, queridos e queridas amigos e amigas”, como já vi usarem alguns ignorantes (mesmo de batina, hélas!), é mais que uma reiteração: é um erro. Isso porque o “bem vindas” já está incluído no “bem vindos”, que, neste caso, é neutro. Dizer “bem vindas e bem vindos” é como dizer “as cadeiras e os móveis”, ou “as motocicletas e os veículos”. É enfileirar a parte e o todo a que ela pertence, como se fossem coisas diferentes.
Outro problema dessa triste mania de massacrar o vernáculo em benefício de uma suposta correção política é a negação de um merecido privilégio feminino. Afinal, é belo que na nossa língua tenhamos de um lado o masculino confundido com o neutro e, do outro, o feminino puro, imaculado como a beleza de uma donzela de 16 anos. Se temos 400 mulheres, usamos o feminino. Se temos 399 mulheres e um homem, o caldo já estragou. Não temos mais a beleza de um conjunto puramente feminino. Neste caso usamos o neutro (que, repito, confunde-se com o masculino, apesar de não o ser). Ora, as mulheres merecem que seu conjunto seja proclamado como único, merecem ter para si o privilégio que falta aos homens de terem uma forma gramatical exclusivamente delas. Nenhum homem chega aos pés de uma mulher; nenhum homem poderia tomar o lugar de uma mulher e fazer por merecer o uso do feminino, que é só delas.
Outro problema, ainda, desta triste mania é a confusão entre o que é gramatical e o que é da realidade dos fatos. Gêneros são categorias gramaticais, que podem ou não exprimir fatos do mundo real. Nem tudo tem sexo, mas toda palavra tem gênero. Não há nenhuma razão racional, por exemplo, para que uma faca – um objeto perfeitamente assexuado, a não ser para os freudianos mais radicais – seja “feminina” (ou seja, para que se use o gênero feminino para tratar de facas) e um garfo seja “masculino” (ou seja, que se use o gênero masculino para tratar dele). Em francês, por exemplo, usa-se o contrário, “o faca” e “a garfo”. Em outras línguas, por vezes o mar é feminino (o que faz enorme sentido) e a lua, masculina (o que não é uma ideia tão interessante e tão rica; afinal, a lua e as mulheres têm uma ligação essencial) ou neutra. Ao usar o gênero feminino para as mulheres e o masculino para os homens, estamos, por outro lado, expressando algo que faz pleno sentido no mundo real: mulher é mulher, homem é homem. Mas, ao termos um conjunto que engloba tanto mulheres quanto homens – um homenzinho que seja para estragar tudo –, nós deixamos de lado esta conformidade entre sexo e gênero e usamos o neutro. Isto é da língua, e de uma certa forma expressa também uma realidade. Que califa quereria que houvesse um homem imiscuído em seu harém?!
Afinal, um conjunto de pessoas de ambos os sexos não é mais um conjunto de mulheres ou um conjunto de homens: é outra coisa. Não se pode falar a um conjunto de pessoas de ambos os sexos do mesmo modo como nos dirigiríamos a um conjunto composto exclusivamente por gente de um ou de outro sexo. De uma certa forma, ao não haver mais um sexo único em todos os elementos do conjunto, acaba-se por não ter sexo algum ali. E é isso que expressamos ao usar o neutro.
Quando um pobre ignorante da língua a esbofeteia com um “bem vindas e bem vindos”, ele está a negar não apenas o fato de ter diante de si um conjunto formado por pessoas de ambos os sexos, mas também o fato de estar a lidar com um conjunto único. Dizer “bem vindas e bem vindos” é separar homens e mulheres, ao menos na noção ignara do pobre simplório que pensa que “bem vindos” dirige-se exclusivamente aos homens. É negar que as pessoas estejam juntas, é separar as famílias, é traçar uma linha mental com as mulheres de um lado e os homens de outro. Ainda que as mulheres sejam mais bem vindas que os homens, pelo menos para alguns dentre nós, é no mínimo uma falta de cortesia para com os membros de um grupo único traçar separações de gênero onde elas não deveriam existir.
Há um padre, cujas homilias tenho o desprazer de ouvir quase todos os domingos, que leva às últimas consequências seu compromisso com a imbecilidade gramatical do politicamente correto, a tal ponto que estranhei quando outro dia ele se referiu às crianças sem dizer “crianças e crianços”. Doem-me os ouvidos regularmente aos domingos. É evidente que o pobre sacerdote não acha que esteja fazendo algo errado. Na sua cabeça, ele provavelmente há de pensar que está “prestigiando” de alguma forma as mulheres ao somar um feminino ao neutro. Mas realmente não é o caso. Além de um atentado ao vernáculo, trata-se, como tentei explanar acima, de uma forma de diminuir a beleza do feminino, de uma confusão entre o gramatical e o real, de um erro que só faz dar a quem o comete um atestado evidente de ignorância da própria língua.
Espero que meus leitores (termo que inclui ambos os sexos ao usar o gênero neutro) jamais caiam na triste tentação de enfileirar gêneros como quem enfileira patinhos numa barraca de tiro ao alvo de feira. As mulheres merecem mais que isso.
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