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Totalitarismo tecnológico

Foto: Anthony Wallace/AFP (Foto: )

É apavorante o que pode acontecer quando se une um sistema totalitário de governo com a tecnologia hoje disponível. A China é um exemplo claro disso: a cada dia chegam mais más notícias acerca de como se intensifica o controle estatal sobre seus cidadãos. O auge disso está ocorrendo no leste chinês, na região “autônoma” (sic) de Xinjiang, habitada tradicionalmente pelos uigures, uma população muçulmana etnicamente turca (na verdade os turcos é que são originários daquelas bandas; o mundo é complicado mesmo), aparentada – e frequentemente unida por laços matrimoniais – com as populações igualmente muçulmanas dos países vizinhos, do Paquistão ao Cazaquistão. O governo chinês, há já décadas, vem implantando uma política de migração controlada, controladíssima, de chineses da etnia majoritária han para aquele território, com o objetivo de tornar os uigures uma minoria em suas terras ancestrais.

Como se isso não fosse ruim o suficiente, o controle por parte do Partido Comunista chinês vem crescendo e tomando proporções avassaladoras. Todos os cidadãos estão sendo obrigados a comparecer a uma delegacia de polícia, onde são fotografados, filmados andando, para que seu modo de caminhar fique registrado e possa ser reconhecido por inteligência artificial, e gravados lendo textos preparados para registro de voz. Seus telefones celulares recebem um programa que não tem como ser apagado, que confere em tempo real as imagens e textos que recebem e enviam, alertando a polícia caso algo “suspeito” passe por ele.

Os parentes de uigures no exterior vêm relatando casos medonhos de abuso, com as mulheres sendo forçadas a casar com chineses han, mais de 1 milhão de pessoas presas em campos de lavagem cerebral como os usados durante o regime maoísta, crianças sendo tiradas dos pais para serem criadas como chineses han, proibição de toda e qualquer prática religiosa etc. Evidentemente, os que têm parentes no exterior – muitos uigures costumam, ou antes costumavam, estudar na Turquia, devido à facilidade de língua e religião – são os que mais sofrem.

E mesmo os próprios chineses han sofrem tremendas violações de direitos, facilitadas pela tecnologia hoje a serviço do totalitarismo neocomunista. O Partido recentemente implantou um sistema de “confiabilidade”, em que as pessoas podem ser punidas de formas antes inimagináveis por “crimes” como ver uma imagem do Ursinho Puff (que supostamente seria parecido com o ditador Xi Jinping, e por isso é proibido na China). Por exemplo, uma pessoa pode ser impedida de comprar uma passagem de trem, de entrar em um lugar com ar-condicionado durante o verão… ou simplesmente ser presa. Para facilitar a prisão, ubíquas câmeras de vídeo ligadas a sistemas de inteligência artificial podem reconhecer uma pessoa a mais de um quilômetro de distância, alertando a polícia para apreendê-la. Em um teste recente feito por um jornalista, seu rosto foi incluído no banco de dados de procurados e em menos de dez minutos ele foi abordado e apreendido por policiais a serviço do governo comunista, numa das maiores cidades do planeta.

Os sistemas de reconhecimento facial dos chineses são os melhores do mundo atualmente e, sem haver qualquer restrição ao seu uso por parte do Estado comunista, a tendência é a coisa piorar. O que pode vir não se sabe; talvez sistemas que sintam o cheiro das pessoas, ou que sejam capazes de levantar impressões digitais a distância. O inferno, não o céu, é o limite neste caso.

O totalitarismo, afinal, é justamente isso: um controle total da vida de cada um. Os totalitarismos do século passado, comunista e fascista (que na verdade está mais próximo do modelo chinês atual), não tinham meios outros que não carteiras de identidade que os cidadãos tinham de exibir em controles policiais regulares. Hoje a carteira de identidade é quase uma relíquia, ainda que seu porte continue sendo obrigatório na China. O rosto de cada um é sua carteira de identidade, com “segundas vias” na voz e mesmo no modo de andar, e as câmeras de circuito fechado são muito mais eficientes que os controles policiais de antanho. É impossível fugir da ditadura totalitária armada com a tecnologia moderna. Basta ver a situação atual da CIA, o serviço secreto americano: todos, ou quase todos, os seus agentes na China foram identificados e rapidamente executados pelo governo chinês, com a bala que lhes perfurou o crânio sendo cobrada da família. Família esta que, evidentemente, também sofre fortes represálias.

O totalitarismo chinês é a apoteose atual do que pode acontecer. É o modelo dos sonhos de alguém como Maduro, o ditador da Venezuela, que aliás tem fortes ligações comerciais e políticas com a China. Ele é também o modelo dos sonhos de grande parte da extrema-esquerda brasileira. A vice de Haddad, Manuela D’Ávila, do Partido Comunista do Brasil, provavelmente acharia uma excelente ideia implantar algo semelhante no Brasil. Já o Haddad, tadinho, teria de perguntar ao Lula o que fazer, mas Lula aplaudiria a ideia manuelina. Cabe lembrar que, da redemocratização do Brasil para cá, tivemos três vice-presidentes assumindo o cargo, e nada impediria que Manuela seguisse a trilha aberta por Sarney, Itamar e Temer e, vendo-se no leme, o torcesse para a esquerda, rumo a um sonho totalitário.

Mas aqui nós temos uma enorme vantagem em relação à China: nossa cultura é uma cultura de liberdade e tolerância, e um totalitarismo brasileiro seria sabotado por aqueles mesmos que seriam encarregados de implantá-lo, como de certa forma todos os atos governamentais são. Nosso funcionalismo público é incapaz de montar algo assim, por razões culturais. A eficiência dos chineses, sua capacidade de obediência cega e irrestrita, aqui são impensáveis.

Nossa cultura tem muito em comum com a cultura cubana. Lá foi implantado um sistema totalitário. A diferença, o que causou a possibilidade de isso ocorrer, foi o êxodo maciço da população cubana, de que enorme parcela fugiu da ilha-prisão. O fato de se tratar de uma pequena ilha cercada de mares revoltos e cheios de tubarões (que não assustaram muitos dos fugitivos) também ajudou em muito. Aqui no Brasil, um êxodo equivalente faria com que as populações de muitos países fronteiriços passasse a ser minoritária em relação ao enorme número de emigrantes brasileiros. Seria necessário tentar exercer controle pela força sobre uma população gigantesca e espalhada por um território enorme, contra seus hábitos culturais. E quem o faria? O MST?

A nossa cultura, ao contrário da chinesa, não preza a obediência como um valor em si. É impossível imaginar uma competição entre duas cidadezinhas brasileiras para ver quem consegue bater uma meta de produção, com as pessoas passando fome para atingir o resultado estatístico desejado. Em Cuba isso também não aconteceu, o que explica que só agora, com o turismo receptivo, Cuba tenha conseguido alçar os cidadãos que não fazem parte do Partido Comunista acima do nível de fome. Nós também somos bons em turismo, aliás; como disse, temos culturas parecidas, e ambas são muito distantes da chinesa.

Um sistema como o chinês poderia ser implantado facilmente no Norte europeu, especialmente na Alemanha. Na Inglaterra, que com todos os seus problemas ainda é uma democracia, uma vasta teia de câmeras de circuito fechado cobre grande parte do país. São quase 6 milhões de câmeras, num país menor que o Ceará. É uma câmera para cada 11 habitantes! Essas câmeras, contudo, não são ligadas a sistemas de inteligência artificial, e só servem para ajudar a identificar criminosos depois do fato, não para achar pessoas em tempo real. É um passo relativamente pequeno, mas que não foi dado ainda.

Aqui no Brasil nós sofremos as sobras do modelo americano de vigilância digital. Lá os órgãos de informação gravam todos os telefonemas e copiam todos os e-mails. Como nós usamos e-mails americanos (Gmail, por exemplo) e nos comunicamos por redes sociais americanas (Facebook, Twitter, Instagram, WhatsApp), somos vigiados por grandes empresas ligadas ao governo americano todo o tempo. O nível de vigilância também é assustador; após conversar com meu fisioterapeuta, com o telefone presente, sobre anti-inflamatórios, comecei a ver anúncios destes remédios ao navegar. E isso porque eu desliguei o mecanismo de assistente oral. Em tese o microfone do telefone deveria estar desligado, mas lá estava ele transmitindo o que se dizia no ambiente para fins comerciais.

Menos mal; melhor ter anúncios de anti-inflamatórios na tela que ter a polícia do Partido Comunista (da China ou do Brasil) batendo na porta. Como se trata de um governo estrangeiro que faz a leitura, seria muito difícil para um governo brasileiro (ainda mais com a incompetência cultural que caracteriza brasileiros tentando agir de forma moderna e impessoal, graças a Deus) usar esses dados. Do mesmo modo, o governo americano não tem como agir aqui. No máximo eles serviriam para negar a entrada de alguém nos EUA, o que evidentemente é um direito do governo de lá.

Em suma: os meios já existem para que o totalitarismo atinja um grau de controle que faria Mussolini ou Stálin suspirar de desejo. Mas é necessário que haja uma cultura que seja receptiva a esses meios, e é preciso que haja um grande contingente de pessoas dispostas a agir em favor de um regime totalitário e, mais ainda, a agir de forma impessoal (prendendo o próprio pai ou mãe, por exemplo). Isso nós não temos. Somos, graças ao bom Deus, profundamente refratários a qualquer sugestão de impessoalidade. Nossa cultura é radicalmente personalista, o que nos impede de absorver e introjetar os sistemas de valor da modernidade que ora finda.

O ressurgimento dos totalitarismos do século passado é apenas um estertor, uma tentativa de manter vivo um cadáver. Mesmo o chinês dificilmente conseguirá se manter por muito tempo; algo vai acontecer para quebrar o sistema monolítico e permitir a volta de modos de organização social ordenados de baixo para cima, como é o natural.

O problema destes estertores da modernidade agonizante é que eles podem ainda fazem muito mal a muita gente. Eu não gostaria nem um pouco de ser um uigur agora. Precisamos ficar alertas contra esse tipo de coisa e fazer o possível para dificultar e impedir que se tente implantar algo do gênero no Brasil. Muita gente morreria tentando fazer ou tentando fugir disso, mais ainda por ser um sonho (ou antes pesadelo) impossível. Mas não se há jamais de conseguir: quis a Divina Providência que fôssemos culturalmente incapazes de totalitarismo. Felizmente, por razões culturais, nosso governo sempre foi e sempre será incompetente demais para conseguir fazer algo assim funcionar.

Viva nossa incompetência!

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