Aqui estamos, em nosso aconchegante cantinho tupiniquim, felizmente localizado juntinho àquilo que o papa Francisco definiu como o fim do mundo. Estamos longe dos vastos poderes ora à solta no dito Ocidente (Europa ocidental mais países anglófonos). Mudou-se, porém, grande parte do mundo (incluindo este prestigioso órgão de imprensa) para uma realidade virtual, em que não há distância ou fronteira que não as de língua ou cultura.
Acabamos, curiosamente, descobrindo-nos por isso imersos em ambientes virtuais estrangeiros: as redes sociais, esses curiosos sucedâneos pós-modernos do footing na pracinha da cidade. É como se a pracinha estivesse dentro de uma daquelas “concessões” da Xangai no século passado; bairros estrangeiros, com leis estrangeiras e costumes tremendamente diversos dos nativos. A nossa cultura, o nosso modo de ver o mundo, simplesmente não tem lugar nessas “concessões” americanas virtuais, exatamente como a milenar cultura chinesa não tinha direitos nas que as precederam no mundo palpável. Sabe-se que nestas havia até mesmo cartazes proibindo a entrada de chineses e cachorros nos parques; somos agora os chineses, ou talvez mesmo os cachorros.
Os “gostos e desgostos locais” que fazem as vezes duma moral, nos EUA e na virtualidade, são na verdade totens e tabus
A coisa fica ainda pior quando nos damos conta de que nas redes sociais virtuais não só estamos sujeitos a regras perfeitamente insensatas e completamente diversas das de nossa cultura, mas que dentre os muitos tabus da cultura americana, cuja “concessão” virtualmente visitamos, está a enumeração dos tabus. As leis são secretas para quem não faz parte daquela cultura, mas ai de quem as violar! Isto não é novidade; coisa de 100 anos atrás o grande Chesterton (sempre ele!) escreveu uma curta crônica chamada “Da moral americana”, em que chega à rápida conclusão de que ela inexiste:
“Trata-se de um caos de associações e acidentes sentimentais e sociais; alguns esnobes, todos provincianos [...]. [n]ão se tem um padrão abstrato do certo e do errado, sim exatamente o seu oposto. Inexiste qualquer padrão abstrato do que é correto, substituindo-se-lhe certos gostos e desgostos locais.”
Mais ainda, diria eu: aquilo que faz as vezes de moral nos EUA é coisa infinitamente mais primitiva, já descrita a seu modo pelo mais famoso cocainômano de Viena. Vendo de fora o fenômeno, como Chesterton ou nós mesmos, fica evidente que os “gostos e desgostos locais” que fazem as vezes duma moral, lá como na virtualidade, são na verdade totens e tabus.
Estes elementos, aliás, são sempre dois lados duma só moeda. “Sacer”, a palavra latina de onde derivam “sagrado”, “sacrifício”, “sacrilégio” e tantos outros termos do nosso dialeto luso do latim, não traz apenas conotações positivas e confortantes. Afinal, o que é separado para a Divindade (o totem) é vedado aos homens: é tabu, tão tabu quanto a sexualidade de uma vestal (ou duma freira, aliás). O “sacer” é separado, isolado do resto, proibido. Superior, sim, num determinado sentido, mas venenoso ou contaminante ao mesmo tempo. Sabem-no bem os bem-intencionados hebreus que tentaram impedir a queda da Arca da Aliança aparando-a com as mãos, sendo imediatamente fulminados pelo contato com o “sacer”. Aprenderam da pior maneira que “o que é dos outros não se deve ter”, como já cantava meu talentoso colega de pernetice, mesmo se o que se queria era preservá-lo. Tocar o totem é tabu, como o nome da Divindade é impronunciável.
O sistema tabuístico da Gringolândia tem ainda outro problema para quem está de fora, que é a velocidade lancinante das substituições de tabus e totens. Curiosamente, hoje mesmo li, da pena dum americano anônimo, o seguinte:
“O resultado de tal modo de pensar é um emaranhado de regras e precedentes que se revelam incoerentes quando isolados, por existirem apenas em dado momento. [Os EUA são] uma terra em que se pode ser processado por discriminar os pretos em favor dos brancos, sendo-se simultaneamente processado por discriminar os brancos em favor dos pretos. Como não há regras fixas de aplicação constante, é possível que se seja condenado ao mesmo tempo, em ambos os processos, na mesma jurisdição.”
Vê-se isto claramente em algumas curiosidades antropológicas do tabuísmo do momento: a palavra “nigger” (corruptela de “negro”) foi, décadas atrás, o termo padrão para referir-se à nação dita “Black”, ou preta. Hoje, todavia, criou-se tão forte tabu ao redor dela que é impensável até mesmo citá-la entre aspas; para referir-se a ela, diz-se “the N-word”, “a palavra com N”. Um jornalista no topo de sua carreira, trabalhando há décadas no jornal mais importante dos EUA (quiçá do mundo), o famoso New York Times, foi “cancelado” por a ter pronunciado, ainda que como entre aspas, numa citação.
Viajando pelo Peru com adolescentes americanos ricos, num desses programas culturais para filhinhos de papai, um destes lhe disse que um colega pronunciara a “palavra com N”. O jornalista perguntou do contexto, e os aborrescentes o pressionaram até que ele pronunciasse, sempre tentando entender uma situação, a palavra proibida. Mal sabia ele que estava sendo filmado. Quando o vídeo “vazou”, sua vida acabou. Os poderes maléficos atribuídos supersticiosamente a uma palavrinha de duas sílabas, quatro fonemas e seis letras o destruíram.
Por outro lado, aos ditos pretos a palavra é liberada. Ela – o “sacer” – é para eles, e só para eles. Nas letras de rap e quejandos ela é usada quase que com a frequência de outros termos mais universalmente chulos. É o outro lado do tabu, o totem. Aqueles que têm como totem uma suposta negritude (ou seja, os descendentes americanos de pessoas escravizadas na África) “ganham poder” ao pronunciar a mesmíssima palavra que destrói quem não faz parte da tribo, do clã do totem “nigger”.
Privacidade é algo que não existe mais. Nossos telefones celulares nos ouvem – e a quem está ao redor – todo o tempo, traçam nossos passos e nossa localização, sabem com quem andamos e o que nos interessa
São regras perfeitamente irracionais, além de supersticiosas e, em última instância, idolátricas (o totem é um ídolo, e o ídolo é tabu). Mesmo assim, é por elas – para nós invisíveis – que somos medidos e perdemos ou mantemos nossa sempre periclitante autorização de presentear aos mantenedores de redes sociais virtuais a infinitude de dados pessoais que comercializam.
É muito bom que estejamos aqui, tão longe dos centros do agonizante poder moderno; não fosse isso, nossos dados estariam sendo usados contra nós. No início do século, o governo americano bancou dois projetos, chamados “Total Information Awareness” (“consciência informacional total”) e “LifeLog” (“registro vital”), que visavam criar vastos bancos de dados dos cidadãos americanos, unificando informações governamentais e privadas (amigos, parentes, prontuário médico, o que fosse). A grita foi grande, e os projetos foram fechados. Curiosamente, contando com aporte financeiro direto dos serviços de inteligência americanos, foram lançados quase que ao mesmo tempo dois projetos “particulares” (termo que hoje em dia tem um sentido bastante elástico, mormente no que se refere a dados virtuais). Dum sabemos todos o nome: Facebook. O outro é menos conhecido, mas está umbilicalmente ligado a este: Palantir.
Na fantasia de Tolkien, Palantir era o nome dado a uma bola de cristal em que se podia vislumbrar o futuro, o presente e o passado. A companhia do mesmo nome dedica-se à construção duma espécie de equivalente virtual do objeto fantástico: a integração de bancos de dados de todo tipo, tornando possível a seus clientes (primordialmente serviços de inteligência e policiamento governamentais) descobrir instantaneamente uma imensidade de informações que até ontem seriam consideradas privadas.
Privacidade, todavia, é algo que não existe mais. Nossos telefones celulares nos ouvem – e a quem está ao redor – todo o tempo, traçam nossos passos e nossa localização, sabem com quem andamos e o que nos interessa. As redes sociais conhecem nosso rosto, sabem de nossa vida sentimental, de nossos amigos e interesses, projetos, gostos e desgostos. Cada prontuário médico – e agora cada vacina contra a Covid – estão também em bancos de dados diversos, assim como nossos hábitos de consumo, multas de trânsito, placas de carro, participação em empreendimentos comerciais e culturais, e o que mais for. Todos estes dados são rotineiramente inseridos em imensos bancos de dados comerciais, e a Palantir os unifica num sistema de fácil acesso, em benefício da Modernidade agonizante tal como representada pelo poder político e burocrático.
Foucault, sempre obcecado com o poder, aplicou ao sistema social moderno a imagem duma espécie de cadeia em que os prisioneiros seriam vigiados a todo tempo, o panóptico (grego para “visão total”). Numa fotografia posada, a alta hierarquia da Palantir foi registrada trabalhando numa mesa, num ambiente corporativo neutro, todo em tons de cinza, em que a única decoração era uma enorme imagem da calvíssima catadura capirotesca de Foucault. Este é o objetivo, esta é a maneira de agir da firma: a vigilância total, a abertura total da vida privada de cada pessoa.
Aqui, neste nosso país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza, no entanto, temos a enorme graça de ser praticamente impossível que qualquer órgão governamental trabalhe de modo eficiente. Mas que beleza, mas que beleza! Quando foram instaladas câmeras numa orla com o fito de ajudar a impedir roubos, os funcionários encarregados de vigiá-las, descobriu-se, ignoraram solenemente os roubos e dedicaram-se a apreciar em zoom os traseiros das moças de biquíni. Não há panóptico possível se quem o maneja não se percebe como componente inumano da máquina de vigilância, e para a maioria esmagadora dos brasileiros seria impossível fazê-lo. Um belo traseiro – interesse sumamente pessoal, mesmo que em prol da benfazeja reprodução da espécie – sempre há de ser mais importante que a execução de projetos burocráticos.
Assim como cresceram e chegaram ao auge imensamente rápido, os EUA estão se desintegrando de modo igualmente célere
Os chineses e cachorros jamais participariam na administração da concessão em Xangai, pelo simples fato de não serem culturalmente compatíveis. A diferença “racial”, por mais que fosse enfatizada pelos concessionários norte-europeus, seria ao fim e ao cabo irrelevante se as culturas fossem compatíveis. Mas não eram, como não o são a nossa e a dos mantenedores do sistema de totens, tabus e bolas de cristal das redes sociais. Assistimos assim de fora, de camarote, ao crescimento do horrendo sistema distópico de vigilância total, de unificação e conexão dos bancos de dados, em desfavor dos infelizes membros da mais bem-sucedida experiência social da Modernidade.
Assim como cresceram e chegaram ao auge imensamente rápido, os EUA estão se desintegrando de modo igualmente célere. Afinal, a Modernidade que ora agoniza era sua origem primeira e fim último, e sem ela não há como manter em curso o processo de hipercentralização e uniformização da sociedade. Como em qualquer etapa final de qualquer sociedade anterior, o que era consensual e evidente passa a ter de ser escorado por vigilância e punição. É aí que entra Foucault, é aí que entra a unificação dos bancos de dados em bolas de cristal virtuais nas mãos das elites, e, finalmente, é aí que entram as punições feicebuqueanas a quem viola os tabus impronunciáveis daquela cultura em desembestada dissolução.
Assistimos, repito, de camarote. E podemos, a cada “punição” sentenciada pela hipervigilância algorítmica das redes sociais, suspirar aliviados por serem elas, para nós, algo totalmente distinto do resto de nossa vida. Por mais que a subserviência da esquerda brasuca queira importar todo o pior dos EUA, a incompatibilidade cultural é tamanha que é como se se tentasse rodar num computador um programa composto para outro sistema operacional. Os patéticos simulacros em terra pátria de “cancelamento”, a forma pós-moderna do velho ostracismo, são limitadíssimos em escopo em comparação com os horrores que ora ocorrem no norte das Américas. A legiferação judiciária de Pindorama só faz com que os três poderes tornem-se ainda mais impotentes. A ausência de policiamento aumenta a segurança, e o esgarçamento final da Modernidade a revela como tendo sido aqui apenas uma fantasia mal-ajambrada; um mero sucedâneo superficial de ordem social, cujo desaparecimento finalmente possibilita o retorno a um processo de real ordenação.
Sem totens. Sem tabus. Sem idolatrias.
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