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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Touro em loja de louças

(Foto: Roberto Schmidt/AFP)

O maior avatar do caos no mundo moderno é os Estados Unidos. Este tem sido o caso desde seu início, quando um grupo de treze colônias americanas declarou unilateralmente sua independência. A causa principal era sua revolta com o fato de a Coroa britânica ter assinado tratados de paz com as tribos indígenas que se situavam a oeste do território então ocupado pelos colonistas, proibindo ulterior expansão colonial por sobre os territórios nativos. De lá para cá aquela força para o caos espalhou-se primeiro para Oeste (invadindo o México e roubando 60% do seu território), até atingir o Pacífico. Por sorte dos mexicanos remanescentes no pequeno território que lhes foi permitido manter, o grande grupo de legisladores americanos que representava os Estados escravistas (em que cada três pretos valia um voto a mais para os brancos, inflando artificialmente as representações destes estados) não foi adiante com seu plano de invadir a América Central e escravizar todos os católicos. Atiraram-se os americanos então a ataques absolutamente sem provocação (exatamente como os que os levaram a abiscoitar o México) contra outras populações de maioria católica, invadindo as Filipinas e provocando o que até hoje é um dos maiores genocídios da História registrada, Cuba, Porto Rico (que hoje é território americano) e vários outros países.

No século 21, a especialidade americana tem sido provocar o caos no Oriente Médio, lugarzinho aliás assaz complicado por natureza. Isto é consistente com tanto seu plano de dominar o comércio de petróleo no mundo quanto com os interesses paroquiais de Israel, que poderia perfeitamente receber o título de 51.º Estado americano. O Estado judeu foi (felizmente) constituído em 1948, não tendo até agora ainda alcançado a longevidade dos Estados Cruzados estabelecidos no mesmo lugar cerca de um milênio antes. Ele tem uma linha geopolítica um tanto ou quanto curiosa, preferindo apostar no caos nos países de seu entorno a aceitar o perigo que seria haver neles ordem e paz que lhes possibilitasse efetuar eficazmente ações armadas contra seu território. No caos, naquela região, todavia, quem tende a prosperar são os grupelhos de terroristas ditos takfiri, ou seja, “excomungadores”. São aqueles que, aderindo a uma versão moderna e fantasiosa do Islã sunita, tratam de apóstatas os aderentes a qualquer outra linha.

O Islã (em suas diversíssimas formas) é a religião predominante naquela região, onde convive com dificuldade com minorias cristãs e de outras religiões (dentre as quais o judaísmo, ainda que após o estabelecimento do Estado de Israel a maioria das populações judaicas de outros países da região tenham migrado em peso para lá). Além do problema externo, sofre o Islã desde quase seu início de uma gravíssima divisão interna, entre os ditos sunitas (dentre os quais os takfiri) e xiitas, estes concentrados atualmente no Iraque e no Irã (novo nome da antiga Pérsia), mas igualmente presentes no Líbano, na Arábia Saudita, no Iêmen e em outros países. A Arábia Saudita, originalmente uma vasta extensão de deserto doada pelos colonialistas ingleses à família Saud (daí o nome) e hoje um grande produtor de petróleo, carrega consigo a vantagem de ser a localização das cidades de Meca e Medina, sagradas para os muçulmanos de ambas as principais vertentes. O objetivo da doação britânica foi justamente espalhar o pensamento dos takfiri pelo mundo muçulmano, com o patrocínio saudita. Os ingleses o viam como uma espécie de protestantismo muçulmano que esperavam que fosse levar a uma “modernização” do Islã semelhante ao que ocorreu na Cristandade europeia nos últimos 500 anos, em que a religião fez-se coisa irrelevante e ultrapassada e, para todos os efeitos, virtualmente destruída. O resultado é que a coroa da família Saud depende dos takfiri, e a pregação destes é em grande medida dependente da coroa saudita. Esta espalha mesquitas pelo mundo, todas em mãos desta linha teológica.

Para unir os árabes (dentre os quais não se pode contar os iranianos, que são persas, não árabes; outra cultura, outra língua), surgiu ainda no século passado um movimento pan-arabista, que formou o Partido Baath, de que faziam parte Saddam Hussein (ditador iraquiano deposto pelos americanos) e Assad (ditador sírio, que os americanos vêm tentando depor, sem sucesso). Pelas margens, ao pan-arabismo uniram-se diversos outros políticos, como Khaddafi, o falecido ditador da Líbia.

O xiismo, dominante no Irã – que é formalmente uma teocracia xiita –, é uma religião antiga e moderada, especialmente se comparado ao sunismo dos takfiri. Na estrita medida, claro, em que se pode ser moderado quanto se é orientado pelo Corão. Há ainda o minoritário sufismo que tanto atrai os perenialistas ocidentais, como Guénon, mas como este – como aliás o alauísmo de Assad – não tem expressão geopolítica enquanto religião, o que os tira do campo de interesse deste artigo. Mas no Irã xiita, por exemplo, todas as minorias religiosas tradicionais (dentre elas os católicos e mesmo os judeus) têm cadeiras reservadas no Parlamento, direito de celebrar de maneira relativamente pública suas liturgias e devoções, etc. Desde que paguem seus impostos (maiores que os dos muçulmanos) e não tentem converter muçulmanos, podem cultuar a Deus como acharem melhor. Enquanto isso, na Arábia Saudita dos takfiri a simples possessão de um tercinho, uma Bíblia ou uma imagem sacra é motivo para a pena de morte.

Este é o plano geral. E quais foram as ações americanas na região nos últimos anos? Em ordem de devastação, foram:

1 – A invasão do Iraque, e derrubada de Saddam Hussein. Tratava-se de um ditador como tantos outros, mas tinha a vantagem, tanto para os cristãos quanto para os ocidentais em geral, de ser laicista (linha oficial do pan-arabismo baathista), o que fazia, por exemplo, com que seu vice pudesse ser católico. Coisa impensável no resto do Oriente Médio, aliás. Com sua retirada do poder, o Iraque (outra invenção dos ingleses) dividiu-se na prática em várias zonas mais ou menos autônomas: uma zona curda (não-árabe, sunita) que atenta contra a integridade territorial da Turquia (não-árabe, sunita) e da Síria (árabe, com governo baathista liderado por um alauíta, com maioria sunita), por o território ancestral curdo estar dividido entre os três países; uma zona árabe sunita, transformada em terra de ninguém, de onde surgiu (com apoio saudita) o famigerado ISIS, uma tentativa de restabelecimento pelos takfiri do antigo governo central de todo o Islã sunita; e, finalmente, uma zona árabe xiita, agregada a uma pequena zona persa xiita, ambas sob controle indireto do xiismo iraniano. Há outras, mas estas são as importantes. Evidentemente, a situação ficou péssima para os cristãos, e a maior parte das Igrejas locais teve que simplesmente fechar por falta de fiéis. Os azarados foram para a Europa, os sortudos para o Céu. Poucos restaram.

2 – A derrubada de Khaddafi, com a subsequente (e inevitável) transformação da Líbia em terra-de-ninguém, com milícias armadas compostas em sua maior parte por remanescentes de seu Exército disputando migalhas de território. Algumas delas são ainda compostas por takfiri, e prestavam vassalagem ao “Califa” do ISIS. Para pior, era o governo de Khaddafi que segurava a população da África subsaariana, impedindo-a de aceder ao Mediterrâneo e, mal que bem, forçando a solução local de seus problemas. Sem ele, o Mediterrâneo se viu lotado de frágeis barquinhos carregando africanos rumo à terra de leite e mel que sonham encontrar na Europa. Muitos deles, todavia, se perdem ainda em plena África, sendo escravizados e vendidos pelas milícias líbias ou, no caso de não serem muçulmanos, martirizados pelos takfiri. É o caso dos mártires cristãos coptas que foram assassinados numa praia, com roupas cor-de-laranja, há relativamente pouco tempo atrás.

3 – A invasão do Afeganistão, que deu origem à guerra mais demorada na história americana. Originalmente com o objetivo de prender Osama Bin-Laden, anunciado como o responsável pelo ataque de Onze de Setembro, a invasão acabou transformando-se em uma guerra de extermínio, em que “drones” (na verdade robôs voadores assassinos de mais de 30 metros de envergadura; nada a ver com fofurinhas de quatro hélices) americanos atiram mísseis em festas de casamento, mas não conseguem dominar sequer o território ao redor de suas bases. Como os afegãos já haviam mandado para fora os russos (aliás com apoio americano e direção dos takfiri – o próprio Rambo é mostrado ajudando num de seus filmes), os ingleses, e até mesmo Alexandre, o Grande, era mais ou menos previsível que não daria certo aquilo ali. O resultado, todavia, os pobres cidadãos americanos estão sentindo na carne: com a retirada dos Taliban (governo de takfiri) de grande parte do território afegão, o plantio de papoulas para a extração de ópio – de que se faz a heroína – voltou a ser o cerne da economia afegã, com enorme parcela deste produto atingindo (via China e México) os EUA, que têm atualmente que lidar com uma tremenda crise de saúde, causada pelo consumo excessivo de heroína e outros opiáceos.

4 – A tentativa frustrada de derrubada do ditador sírio Assad. Os EUA conseguiram unir uma quantidade obscena de gente que não presta em torno de um objetivo que só poderia interessar a quem odeie o cristianismo oriental. Sua coalizão unia comunistas curdos (interessados em tomar para si uma parcela do território sírio que abriga gente desta etnia e uni-la ao Estado curdo de facto que fizeram no Iraque, para a partir daí avançar sobre a Turquia. Esta, com razão, não gostou nem um pouco da brincadeira) e radicais takfiri, inclusive membros do ISIS e até mesmo da Al-Qaeda (a organização de que teria feito parte Osama, responsável pela destruição das Torres Gêmeas de Nova Iorque). O resultado é que o que seriam normalmente duas insurreições pequenas – uma de curdos e outra de takfiri – tornou-se uma guerra complicada ainda pelo apoio aéreo israelense aos amiguinhos dos EUA, que só veio a acalmar um pouco quando os russos – que com razão preocupam-se com o crescimento do Islã radical nos países que faziam parte do Sul soviético, e que hoje são o que separa a Rússia do Oriente Médio – entraram em ação, derrubando um ou dois aviões e mandando todo mundo ficar quieto. Enquanto durou a confusão, todavia, quem mais sofreu foram os cristãos, como sempre; as antiquíssimas Igrejas sírias, muitas delas traçando sua linhagem aos próprios Apóstolos, esvaziaram-se pelo martírio e emigração dos fiéis, mormente para a Europa (ainda que aqui na minha cidade brasileira tenhamos podido acolher um cristão sírio).

5 – As diversas ações subversivas americanas no Norte da África (ditas “revoluções coloridas”) que no mais das vezes resultaram na instauração de ditaduras takfiri e, como sempre, em um tremendo aumento da migração para a Europa.

6 – O auxílio americano à chacina genocida ora sendo perpetrada pelos sauditas contra a minoria xiita do Iêmen, paupérrimo país que tem o azar de ter as costas para a Arábia e a frente para a África. Os sauditas estão tentando obliterar essa minoria, por ver nos xiitas iemenitas possíveis aliados da minoria xiita saudita, aliás tremendamente perseguida. Os xiitas iranianos, claro, os apoiam com armas leves, mas estas de pouco adiantam contra aviões a jato sauditas controlados por radares americanos e sendo empregados até mesmo contra ônibus com excursões escolares.

E isto é apenas o que faz parte do quadro geopolítico atual.

Neste quadro, assim, temos uma estranha troica, composta dos EUA – que não deveriam ter nada que fazer tão longe de casa –, Israel – que, como escrevi acima, prefere apostar no caos, o que faz com ajuda americana – e a Arábia Saudita, que deseja basicamente abrir espaço para os takfiri na região, em detrimento dos sunitas tradicionais, xiitas, cristãos, alauítas e o que mais for. Esta notabilizou-se há pouco tempo por assassinar em seu próprio consulado um jornalista saudita-americano, picando o cadáver (levaram um legista para a macabra tarefa) e fazendo-o desaparecer. Para não voltar ao tema do Iêmen. Mas poucos esperariam algo mais civilizado da parte deles; o que assusta é ver países que, em tese, deveriam ser civilizados, unindo-se a tais monstros.

O Irã, então, virou a bola da vez, na mira do eixo acima. Mas o que é o Irã?

Irã é o novo (e antigo) nome da Pérsia. Trata-se de uma das regiões mais civilizadas e há mais tempo no mundo inteiro. A ocupação do território em cidades por lá é a mais antiga no mundo, datando de cerca de nove mil anos. É do Irã que temos, por exemplo, o jogo de xadrez, uma invenção persa. A antiga Pérsia foi tradicionalmente o local onde se encerraram muitas aventuras militares; Alexandre, o Grande, teve seus probleminhas por lá, os espartanos perderam para os persas, e o Império Romano tinha na fronteira com o Império Persa a sua fronteira oriental. O Império Persa aquemênida foi o maior Império do mundo, dominando trechos de três continentes. O Islã, contudo, conseguiu dominar o Império Persa, islamizando-o e causando uma forte queda no zoroastrismo, interessante religião pagã que vê como deuses os demônios do hinduísmo, e como demônios os deuses daquela religião. Até hoje há zoroastristas, protegidos por lei e dotados no Irã de representação fixa no Parlamento. A monarquia iraniana, que durou mais de 2500 anos ao todo, praticamente não sofreu interrupções do início do século 16 até o século passado, quando os Estados Unidos organizaram e bancaram um golpe contra o então primeiro-ministro Mossadegh, que desejava estatizar a produção de petróleo local. O Rei persa, que usava o título de Xá, já havia sido posto no trono no lugar de seu pai graças a uma intervenção unida britânico-soviética, durante a Segunda Guerra Mundial. O golpe americano, em 1953, derrubou Mossadegh e instaurou em seu lugar um general, auxiliado por, literalmente, criminosos. Criou-se uma ditadura como poucas já houve, com uma das polícias secretas mais temidas do mundo.

Em 1979, contudo, uma revolução (extremamente) popular dos muçulmanos xiitas, liderados pelo Aiatolá Khomeini (então exilado em Paris), derrubou o Xá e fez do Irã uma teocracia xiita. A embaixada americana, que continha no regime anterior mais de mil empregados, após a Revolução estava com poucos, mormente por já ter havido várias invasões temporárias. Finalmente, um grupo de xiitas radicais tomou a embaixada e fez reféns, com apoio do Aiatolá Khomeini, os 52 americanos ali presentes, numa crise internacional que durou 444 dias, afastou ainda mais os EUA do Irã e vice-versa, e ajudou tremendamente na eleição de Ronald Reagan nos EUA, devido à imagem de incompetente de seu antecessor Jimmy Carter. O pedido original dos protestadores era que o Xá fosse-lhes entregue para ser morto. Contudo, mesmo após a sua morte natural nos EUA eles continuaram com a ocupação. Curiosamente, é devido a este incidente que no Brasil o termo “xiita” passou a ser usado com o sentido de “radical”, “extremista”, que continua mesmo depois dos xiitas se haverem acalmado e os takfiri sunitas terem assumido a dianteira do radicalismo islâmico.

Durante praticamente toda a década seguinte, o governo baathista (portanto laicista) do Iraque, liderado por Saddam Hussein e ajudado financeiramente e com armas pelos EUA, Inglaterra, União Soviética e França (além de basicamente todos os Estados árabes sunitas), serviu de procurador militar americano, movendo horrenda guerra contra o Irã, na qual foram usadas armas químicas e biológicas por ambos os lados. A medonha “moda” muçulmana de afirmar serem mártires destinados ao céu os suicidas que levam consigo muitos inimigos, hoje fartamente empregada pelos takfiri (são eles que se explodem Europa afora, por exemplo), aliás, começou em meio xiita, com decretos do Aiatolá Khomeini declarando o “martírio” dos soldados iranianos que levassem consigo muitos iraquianos na guerra. Depois os xiitas pararam com isso (até a próxima guerra, quem sabe?) e os takfiri a adotaram em bando, sendo a tática suicida hoje a principal de seu arsenal.

Curiosamente, na guerra contra o Irã, algumas milícias curdas sunitas iraquianas ajudaram o governo iraniano, com o objetivo de liberar para si seus territórios ancestrais na ponta do Iraque oposta à que faz fronteira com o Irã. Eu disse que aquilo era complicado, não disse? A guerra acabou em 1988, com um cessar-fogo organizado pela ONU, em uma situação que acabava sendo bastante parecida à anterior, com nenhum dos lados tendo conquistado grande território do outro. Foram, contudo, perdidas centenas de milhares de vidas, entre soldados e pessoas que estavam simplesmente na hora errada e no lugar errado. Guerra é um horror, e um horror que o governo e a população do Irã conhecem bem.

O governo teocrata iraniano, após os primeiros excessos revolucionários, todavia, acabou se revelando bastante civilizado, passando após a guerra a assinar tratados de paz, de não-proliferação de armas químicas, biológicas e nucleares e submetendo-se a inspeções regulares por organismos internacionais. Suas ligações comerciais ancestrais com a Índia e a China (a Pérsia fazia parte fundamental na Estrada da Seda que ligava comercialmente os Impérios Chinês e Romano, dois milênios atrás) o levaram também a uma situação comercial bastante favorável, possibilitando-lhe vender seu petróleo ao mercado oriental. Em suma, o Irã acabou revertendo ao seu tipo natural, e tornando-se um Império relativamente pacífico e rico, fazendo uso dos dons naturais do petróleo e da excelente localização geográfica.

Dada a divisão religiosa do Oriente Médio, contudo, o fato de o Irã ser uma teocracia xiita o fez considerar-se no dever de proteger a relativamente grande parcela de xiitas ditos palestinos (descendentes dos ocupantes da parte do Protetorado britânico que foi dada pela ONU a Israel ou conquistada por esta). Assim, o Irã armou e ajudou a organizar uma vasta milícia xiita, o Hezbollah, que no Líbano tornou-se basicamente um Exército autônomo, tendo em grande medida sido o responsável pelo fracasso da invasão israelense daquele país, ainda que esta tenha sido apoiada pelas milícias cristãs da região. Na região sul-americana dita da Tríplice Fronteira, em que Brasil, Argentina e Paraguai se encontram, há uma forte presença xiita, na qual há por sua vez forte presença do Hezbollah. Descoberta recente da polícia fluminense, inclusive, parece indicar uma ligação entre o Hezbollah e traficantes brasileiros que agem naquela região. De resto, contudo, no Brasil jamais houve problema sério causado por esta milícia. Na Argentina, ela já atacou com uma bomba um centro judeu, assassinando dezenas de pessoas. Sua atuação principal, contudo, é no Líbano (onde faz oficialmente parte do governo, representando os xiitas), Síria (onde apoia o governo contra as milícias de takfiri bancadas pelos EUA e Arábia Saudita) e Israel, onde age como grupo terrorista clandestino e aonde lança mísseis a partir de suas posições nos Estados vizinhos.

Na relação com o Irã, evidentemente, a animosidade entre sua milícia “terceirizada”, o Hezbollah, e o Estado de Israel – que os EUA defendem quase incondicionalmente – tem enorme importância para a política externa americana. Além disso, basicamente, os americanos não querem deixar por isso mesmo a perda do governo fantoche do Xá. Do mesmo modo, a invasão da embaixada em 1979 jamais foi esquecida por eles, que chegaram ao ponto de lançar filmes de propaganda a respeito. O comércio livre do Irã com seus parceiros ancestrais, ainda, parece aos americanos uma violação do controle que desejam ter sobre o mercado mundial de petróleo. O problema maior é que nem a China nem a Índia são fracas e pequenas o bastante para poderem sequer parecer um alvo fácil. Já o Irã é outro caso.

Uma guerra de verdade, no chão, dificilmente seria vencida pelos americanos; afinal, as forças armadas que o Irã – país com uma população jovem e um governo que pode apelar à conscrição maciça – pode colocar em campo são muito mais numerosas que as americanas. A geografia do Irã tampouco é convidativa a uma invasão, com montanhas altas e outros territórios facilmente defensáveis. Do mesmo modo, há décadas que os EUA não lançam um modelo novo de tanque, o novo avião de caça F-35 parece que jamais vai ficar pronto, eles não têm estaleiros suficientes para construir navios novos enquanto consertam navios danificados em batalha, etc. É-lhes, contudo, possível ainda destruir enorme parcela das cidades e da infraestrutura do Irã do ar, à distância, como foi feito no Iraque (país que desde a invasão americana sofre com problemas sérios de infraestrutura, além de envenenamento maciço da população pelo urânio usado em munições americanas).

As bases disponíveis para as forças americanas, todavia, vêm minguando: a Turquia, aliada oficial e membro da Otan, acaba de comprar dos russos seu sistema de defesa antiaérea mais recente, e os EUA não querem que seus aviões novos passem perto do sistema russo, temendo que ele aprenda como sobrepujar suas capacidades de defesa. Mesmo havendo uma base americana na Turquia, no clima atual dificilmente ela poderá ser usada por eles contra o Irã. A Arábia Saudita havia retirado todos os militares americanos de seu território para aceder a uma demanda antiga dos takfiri, que não suportam ver soldados “infiéis” na sua “terra santa”. Os EUA acabaram de mandar 500 soldados para lá, no que é provavelmente um teste: se estes forem aceitos, outros se seguirão. No Iraque devastado há ainda várias bases novas americanas, bem como no Afeganistão semiocupado.

O Irã, contudo, tem em mãos basicamente todo o tráfego de petróleo que sai do Oriente Médio (a maior parte do petróleo do mundo), pois domina estrategicamente o Estreito de Ormuz, uma passagem apertada e congestionada por onde passam os petroleiros que saem da Arábia Saudita, Iraque e demais países da região. Cabe lembrar que navios de petróleo são em geral grandes demais para passar pelo Canal de Suez, a alternativa para as demais cargas. Se os iranianos simplesmente plantarem minas no Estreito, está paralisado o tráfego de petróleo no mundo. Se começarem a fazer tiro-ao-alvo nos navios que passam, então, a coisa fica mais feia ainda. E tudo isso é possível, assim como é possível e mesmo provável que os russos, temerosos de uma guerra na região, tenham vendido aos iranianos em segredo os mesmos sistemas de defesa que venderam aos turcos, dando assim ao Irã a capacidade de limpar os céus da aviação inimiga. A capacidade de resposta militar do Irã é também relativamente vasta; além do Exército propriamente dito e da Guarda Revolucionária, ambos dedicados à defesa territorial, em caso de guerra aberta o Irã certamente apelaria ao próprio Hezbollah, com sua prática de guerra irregular, para atacar as bases americanas e os governos aliados dos EUA na região, especialmente a Arábia Saudita.

Neste contexto, percebe-se o absurdo das ações americanas. Primeiro, os EUA bloquearam comercialmente o Irã, proibindo que firmas que fazem negócio com o Irã façam negócios com os EUA. Isto levou os europeus e os russos a criarem novos mecanismos de transferência de fundos internacionais, mas mesmo com esses há prejuízos sérios. Em seguida os EUA saíram unilateralmente do acordo nuclear que haviam firmado com o Irã, mesmo com todas as inspeções regulares e de surpresa mostrando que o Irã estava respeitando o acordo. Depois, tentaram impedir o comércio iraniano com a China, o que lhes valeu uma resposta bastante forte do país asiático (de que aliás depende a economia americana; os EUA não têm como se dar ao luxo de antagonizar abertamente a China). No começo deste mês, os britânicos (agindo a mando dos EUA) tomaram um navio petroleiro iraniano que passava pelo Estreito de Gibraltar. Ainda que afirmando não se tratar de resposta, os iranianos tomaram, do mesmo modo, um navio-tanque britânico sexta passada. Os americanos perderam um “drone” (avião telecomandado grande às pampas, lotado de equipamento de espionagem) que estava voando por cima de território iraniano, e derrubaram um outro “drone” que dizem ser iraniano (os iranianos negam).

A situação, em suma, é esta: os EUA estão tentando ao mesmo tempo controlar o comércio mundial de petróleo, agradar a Israel atacando os financiadores do Hezbollah e agradar à Arábia Saudita atacando os inimigos figadais dos takfiri. Para isso, estão fazendo ameaças que em alguma medida têm capacidade de cumprir (a destruição da infraestrutura e o assassinato em massa de iranianos inocentes), às quais se une um discurso absolutamente mentiroso (guerra de solo, invasão, etc., são impossíveis para os EUA neste caso), antagonizando seus aliados europeus e seus competidores asiáticos (inclusive e especialmente a China, à qual a economia americana está atrelada).

E o governo brasileiro escolheu aliar-se “automaticamente” aos EUA. Os militares e diplomatas, com razão, estão furibundos. Afinal, a prática tradicional do Brasil seria colocar-se em cima do muro, ainda que reconhecendo a razão do Irã. Afinal, uma guerra lá longe, de que nada de bom pode sair, muito menos pro Brasil (ainda que uma subida espantosa do preço do petróleo, que certamente tal guerra causaria, poderia fazer com que valesse a pena extrair o famoso pré-sal, os prejuízos seriam maiores que os lucros), não deve ser algo em que nos metamos sem ser obrigados. É conveniente ter uma boa relação com os EUA, pois é sempre prudente ter uma boa relação com um vizinho louco e violento. Mas andar atrás deles é uma péssima ideia.

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